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Este mundo é dos loucos

Infinito: este é o número de neuroses à disposição dos seres humanos. A variedade é tanta, que as personalidades indecisas podem ficar tontas, sem saber o que escolher, eufóricas com as ofertas no bazar-armazém das neuras. Claro, o diagnóstico se aplica às neuroses felizes, aquelas que dão prazer. Ainda que, digam alguns, talvez loucos dos loucos, que todas as neuroses dão prazer… ou não seriam desposadas!

Na classe teatral, por exemplo, viceja forte a neura de desejar ver a alma humana. Sim, em carne e osso! Pois, mesmo enclausurados, perdidos do mundo, muitos artistas expandiram esta inclinação ou descobriram a sua potência. O resultado? Basta saltitar na internet, nos teatros online da vida, para constatar a que ponto eles chegaram – se os extraterrestres conseguirem acesso às redes wifi, terão uma imagem afortunada de nossa espécie.

Mas há muito mais. Dá para ir bem além. Os tempos de clausura trouxeram ou sublinharam muitos outros caminhos curiosos, não convencionais, das mentes. Posso citar o meu exemplo pessoal – historiadora, tenho uma compulsão consolidada para a pesquisa. Qualquer espirro me leva longe, por descaminhos de palavras e práticas. Por isto, tenho mania de ler dicionários – vagar pelas páginas sem compromisso.

Ainda estes dias, me perdi no meio de admiráveis verbetes de um dicionário francês, de Agnès Pierron. O subtítulo é tentador – palavras e costumes do teatro, em tradução ao pé da letra. Não, eu não li o dicionário inteiro, ainda não: sou apenas neurótica, não sou maluca. Mas o volume é tentador.

Saí do flerte avançado sob intenso estado de exaltação – descobri coisas de que jamais ouvira falar e vi diante de mim um teatro inteiramente novo. Perdão, uso aqui a palavra teatro com uma extensão não dicionarizada, ela abrange o edifício, a arte, a linguagem, as rotinas e a história. Quer dizer, tudo.

Quando falamos teatro não temos ideia do universo fervilhante que nos escapa pela boca – tanto está latejando o assoalho da cena, como as especialidades surpreendentes dos atores, quanto a paixão desmedida das plateias. Descobri, surpresa, que já existiu nos teatros o ensaio de lenço das claques. A frase é clara ou enigmática?

Pois bem, desdobremos os sentidos, para fazer aflorar algo desta arte grandiosa da cena. A partir sobretudo do século XVIII e em particular no século XIX, o teatro incendiou as almas e instaurou paixões, um pouco como acontece hoje com ídolos pops, das canções.

Estes seres magnetizados pelos palcos podiam ser reunidos em grupos espontâneos ou induzidos, neste caso até mesmo pagos, as claques. De certa forma, seria a avó do fã-clube. A claque podia ajudar a fazer um sucesso ou derrubar uma obra.

Vale destacar o fato de que a claque era parte de uma plateia teatral, uma massa integrada por frequentadores assíduos dos teatros, amantes da arte. O contorno geral desta comunidade era claro – era o novo cidadão urbano moderno, o filho da revolução burguesa e dos direitos humanos, fosse pequeno burguês, operário, burguês ou nobre de nascimento, não importa. Surgia um ser humano liberto, que cogitava tentar pensar com a sua cabeça e andar com as suas pernas.

Era um formato novo do ser humano, recém criado pela história, ansioso por se conhecer e saber de si. Então, eram espectadores que adoravam ver a humanidade em desfile na cena. O seu olhar pedia gente, carne, dramas cotidianos – em lugar de deuses, espíritos etéreos e inclemência do destino.

Assim nasceram os gêneros lacrimejantes – ao que tudo indica, avô das telenovelas. O vale de lágrimas se instalava em cena e o adereço mais importante para o elenco era o… lenço! Do palco, o aguaceiro tomava a plateia. Por isto as claques precisavam fazer ensaios de lenço!

Confesso a iconoclastia: ri um bocado destes estranhos costumes, em particular ao imaginar o tamanho do aguaceiro. Os teatros eram enormes – diante do palco, sem microfone, tinha a plateia, as frisas e camarotes, as galerias e as torrinhas ou poleiros. Devia ser inacreditável o espetáculo de toda esta gente chorando… por causa de um mal entendido cênico…

Parei de rir ao lembrar dos nossos teatros atuais – quando existem, são pequenas cascas de nozes. Se acontecer uma choradeira coletiva, periga derrubar o prédio modesto. E pensei que, no armazém das neuras, decididamente figuramos como espécimes estranhos.

Daqui a pouco, no Brasil, teremos pouquíssimos edifícios teatrais tradicionais. Sem a rotina cotidiana essencial para os grandes palcos, sem dicionários registrando nossos vocábulos e costumes teatrais, em breve não saberemos como fazer teatro nestes grandes teatros restantes do passado. Serão edifícios fantasmas. Ou darão espaço para condomínios de algum luxo – por sinal, o destino do Teatro Fênix.

Melhor mudar a pesquisa, fora assombração. Ainda como neurose de pesquisa histórica da quarentena, inventei de localizar antepassados da minha família cuja lenda familiar sempre me pareceu forte. Ah, foi um baile, flanando por arquivos e papelórios virtuais. A missão mais difícil, ainda não encerrada, foi tentar localizar a minha bisavó que, segundo histórias de família, seria indígena, Puri.

Pois bem, fui parar em Bom Jesus de Itabapoana – quase no fim do estado. Até agora, encontrei uma mulher, Henriqueta Teixeira Nunes, que se casou com um tal Adolfo Brandão em meados do século XIX. Seria ela! Mas, pense bem, uma indígena chamada Henriqueta?!

A pesquisa empacou… Sim, tenho muitas dúvidas se ela é indígena. Contudo, a paralização não foi só fruto da queda da taba sob um nome de peso. Uma outra emoção me desviou da pesquisa – exatamente, o teatro. Descobri que a pequena cidade lá longe, que só conheço graças às andanças do Google, conta com um grupo de teatro batizado com um nome lindo: Companhia Corre Coxia.

Na página da cidade há um pequeno histórico da equipe. Ela é dirigida por Pedro Salim Júnior, estreou em 1999, com a peça Além de Belém, uma história de Natal ao som da MPB. Trata-se portanto de um coletivo dedicado aos musicais, com mais três textos no currículo: Canções e Momentos, sobre cem anos da música popular brasileira; Corações, registro dos caminhos de uma relação de amor, e Show Anos 70, uma história dedicada ao resgate da década.

Os integrantes do coletivo são amadores – exercem diversos ofícios, não conseguem viver de teatro. Sem fins lucrativos, o grupo se preocupa com a formação de plateia, a consolidação do hábito de ir ao teatro. E tenta oferecer uma cena atraente para a comunidade, graças à mistura de linguagens.

Como assim?…, me perguntei. Em vão andei pela internet e cacei o google. Descobri apenas estes poucos dados sobre o coletivo, mas foi o suficiente para avivar um sonho antigo, a possibilidade de construir uma Rede Teatral Fluminense, a integração de todos os coletivos, grupos e espaços teatrais do Estado numa comunidade online e – no futuro pós pandêmico – real. 

A primeira etapa precisa ser um censo, tarefa fácil para o governo do Estado. A segunda, mais trabalhosa, a articulação e a animação das partes encontradas. Finalmente, a terceira, o desejo secreto dos grandes neuróticos teatrais destas terras tamoias – o funcionamento teatral rotineiro da engenhoca. Um caminho de mão dupla, para lá e para cá.

Sim, confesso que pensei no Sesc. Quem poderia, em colaboração com o governo do Estado, impedir que esta neurose se tornasse letra de hospício? O Sesc, claro, pois, além da fortaleza da casa, os hospícios estão ultrapassados…

A lembrança do Sesc não surgiu espontânea ou abrupta. A atividade de pesquisa, apoio e fomento à memória das artes segue a todo vapor no Sesc. Para esta terça-feira, eles programaram um debate com J.C. Serroni, Raul Teixeira e Beth Accioly, sobre a encenação de Gilgamesh, de Antunes Filho, pelo canal youtube.com/cptsesc.

O evento foi pensado para marcar a incorporação do acervo de Gilgamesh às Coleções e Acervos Históricos CPT_SESC. O projeto espetacular em todos os sentidos da palavra é uma série de registros de figurinos, imagens de cena, materiais gráficos de montagens, entre outros itens do acervo, disponíveis na plataforma Sesc Digital.

Já estão no acervo as coleções de Antígona (2005), Medéia (2000) e Medéia 2 (2001), Fragmentos Troianos (1999), Xica da Silva (1988), A Hora e Vez de Augusto Matraga (1986) e A Pedra do Reino (2006). 

Com certeza o público conta, neste caso, com uma verdadeira política cultural. A proposta é densa, rigorosamente formulada – além da incorporação, preservação e difusão da memória, a dimensão do acervo tratado é ampliada a partir de debates com profissionais que integraram as montagens.   

Graças à  atividade, que integra o Círculo de Debates – Memória, Acervo e Pesquisa, as memórias dos artistas e dos participantes da elaboração da obra são registradas e partilhadas. Está sob o foco a construção de um museu teatral vivo, dinâmico e muito peculiar, capaz de recompensar com louvor a visita à coleção.

Museu? A palavra seria esta? De certa maneira, o Sesc está construindo um dicionário, ou uma enciclopédia, registro precioso de uma parte importante da cena teatral brasileira contemporânea. O passeio pelos locais, recantos e arredores é muito ilustrativo, coisa para aplacar o desejo por teatro de impacto em qualquer fã exaltado da arte.

Afinal, os fatos são objetivos, produtivos. E até singelos. Queiram ou não, gostem ou não, grassa nestas praias teatrais uma neurose muito particular, imensa, continental, de incontáveis matizes. É a obsessão de fazer a felicidade humana. O.k., não consta nos dicionários, porém, não é delírio, tudo indica que o teatro serve para isto: tornar a vida mais feliz. Seja lá o que possa ser o significado da palavra felicidade…

Fotos:       . Gilgamesh. Luis Melo e Raquel Anastasia, 1995. Foto: Paquito 

                  . Companhia Corre Coxia, site de Bom Jesus do            Itabapoana       

                  .  J.C. Serroni, Beth Accioly e Raul Teixeira | Foto: divulgação

 Serviço:

Companhia Corre Coxia

Endereço: Rua Apiacá, 316 – Lia Marcia, Bom Jesus do Itabapoana – RJ
Telefone: (22) 3831 5870 / (22) 9214 7493 (Pedro Salim Júnior)
Email: artesalim@yahoo.com.br

Serviço  

CÍRCULO DE DEBATES – MEMÓRIA, ACERVO E PESQUISA: GILGAMESH 

Com J.C. Serroni, Raul Teixeira e Beth Accioly 

Apresentação e Mediação: Tiago Marchesano 

Dia 20 de julho de 2021, às 18h.   

Atividade on-line em youtube.com/cptsesc 

Classificação: livre  

GILGAMESH – Coleções e Acervos Históricos do CPT_SESC  

Figurinos, objetos de cena, materiais gráficos em coleção digital que apresenta o acervo do espetáculo Gilgamesh, montado em 1995 pelo CPT, com direção de Antunes Filho.  

[disponível na plataforma Sesc Digital]  

 Coleções e Acervos Históricos CPT_SESC     

Programação completa em  www.sescsp.org.br/cpt e nas redes sociais:     

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