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Um oratório para chamar de seu?

Não hesite. Responda rápido, sem pensar. Existe um recanto na sua vida que se tornou para sempre o abrigo sereno do seu coração? Ah, é o teatro? Natural, se você conhece esta deslumbrante maravilha da civilização. Ela não está entre as sete maravilhas de qualquer tempo: simplesmente, ela é uma maravilha eterna.

E qual é o seu recanto mágico? Um autor, um palco, um elenco? A alquimia inusitada de uma atriz? Um topos qualquer, digamos – capaz de emanar uma energia eletrizante na sua direção e, assim, recuperar o seu ânimo vital ?

Falo de um lugar sagrado. Veja bem, não é religioso. Mas é um lugar impregnado por uma força restauradora absoluta, capaz de virar a alma pelo avesso, desatar os nós do cérebro, derreter os núcleos mais densos das crises emocionais. Vamos falar claro: trata-se de uma espécie de excriptonita, criptonita ao contrário. Talvez uma humanita, para inventar um nome dotado de uma sonoridade bem adequada.

Você vai até lá em farrapos, tão estraçalhado quanto um molambo velho, superhomem derrotado, disfarçando como pode a sua coleção interior de caquinhos. Finge uma altivez escassa nestes tempos vadios. Circula por entre estranhos, alguns tão ansiosos como você, todos secretamente absortos na esperança da salvação.

Logo você encontra o seu lugar, se acomoda, dispensa a bala e a pipoca, respira fundo, abençoa as luzes que se apagam. E a vertigem redentora vem. Vem e tudo o mais é nada: você se apagou, flutuou no ar, voou para um espaço emocional de pura invenção. Vamos lá, reconheça: é lindo.

Quando tudo acaba, o seu ser volta a si sob as luzes indiscretas da sala. Resta aplaudir, para agradecer a aventura tão emocionante, e sair para a noite escura, à procura das suas ideias mais claras a respeito  desta caminhada tão particular, tão nossa, a possibilidade de renovação interior radical, diante de um mundo hostil de coisas, mercadorias, mesquinharias e vilanias tantas.

Sim, desconfie do teatrismo – uma crença enferrujada nascida no século XIX que teimava (e teima) em aproximar a elevação oferecida pela arte ao mecanismo de alienação vigente na linha de produção capitalista, nas cirandas mentais de submissão social e política ou nos rituais religiosos de bloqueio do pensamento. O teatrismo é filho do artismo, uma forma estúpida de desqualificação da arte que infelizmente ficou robusta dentro do marxismo. Sinto muito, camaradas, mas arte, mesmo a arte comercial, não é alienação. Nem ideologia. Arte é outra coisa, um espaço vago entre a sensação e o pensamento.

Outrora, diziam – Deus salve o rei. Claro, não tinham teatro ao alcance de todos, o palco era um prazer eventual e irregular. As companhias, compostas por seres mal vistos e até amaldiçoados, eram como ciganos, errantes, nômades da ordem urbana. O teatro ainda não podia proteger a espécie. Agora, devemos dizer – Deus salve o teatro.

Tchekhov, foto de autor ignorado.

Pois é lá que encontramos abrigo para restaurar nossa humanidade e respirar poesia – no teatro, mais do que em qualquer outra arte, mais até do que na música ou na dança, nos perdemos de nós numa profunda imersão poética. Diante da cena teatral, não temos trégua: não podemos tamborilar com os dedos, pensar compassos, cantar refrãos, rebolar o corpo, medir harmonias, avaliar passos e piruetas. Nos contam uma história e a tal história nos suga para o seu interior de forma total. Por isto os teatros didáticos e épicos correm muitas vezes o risco de virar uma suprema chatice. Ali, no escuro, adoramos mesmo é o fato de sermos abraçados, lançados no espaço sideral mais sideral de todos, o espaço arquitetado pela poética.

Não tenho vergonha de confessar: o meu recanto, epicentro de todo o meu encanto secreto maior, é Tchekhov (1860-1904). Diante dele, a minha alma serena, se aquieta e se recompõe, encontra o seu ponto de equilíbrio, como se uma estranha poção mágica ancestral infalível banhasse o meu ser.

De certa forma, os textos de Tchekhov me levam para o lugar do indizível – aquele encanto paralisador, mudo, que estrutura as almas apaixonadas. O autor me transporta, deixo de ser potência expressiva, capacidade de escrita, me transformo em pura levitação. Parece que aquele tal truque de camarim, o preferido de Madame Morineau, o pseudo elogio diante de uma peça ruim, vira, comigo, realidade: não tenho palavras para dizer o que vai pelo meu ser.

Claro, você que lê estas confissões tão delicadas e profundas me entende. Tenho a certeza cristalina de que algo semelhante lhe acontece, em especial se existe, da sua parte, uma identidade com o teatro. Há no seu interior também um delirante lugar de amor, filho do teatro, fundamental para a rotina da sua pessoa.

Na verdade, também sofro deste arrebatamento diante do Teatro Municipal. Viceja ali dentro, enraizada nas suas paredes, madeiras, veludos, mármores, cristais e demais artefatos multicoloridos, uma força teatral enlouquecedora, ainda que o Teatro pouco programe teatro. Porém, eu confesso. Se a tal força soa amplificada por uma orquestra – numa ópera, opereta ou teatro musical – a minha alma precisa lutar desesperadamente contra o impulso de rezar sem ficar ajoelhada, quer dizer, vivenciar o momento de arte numa atitude capaz de provocar um espanto monumental nos colegas de plateia.

E quando por lá acontece simplesmente um grande teatro, ah, o efeito é devastador. Uma prova? Eu vi A Gaivota, de Tchekov, direção de Jorge Lavelli, em 1974, no Teatro Municipal. O elenco contava com a deusa poeta Teresa Rachel, infelizmente pouco celebrada, na sua grandeza extrema, pela posteridade. Uma atriz magistral. Mas o meu arrebatamento maior se deu, ali na pureza dos meus vinte anos, através da emoção singela, quase virginal, límpida como uma emanação na véspera do pecado, irradiada pela força inebriante de Renata Sorrah. A sua Nina é uma das minhas lembranças teatrais mais gratas, se não for a maior de todas. A atriz estava em estado de graça e nos levava junto para os céus.

Renata Sorrah, A Gaivota, 1974.

Pois então – Tchekhov é isto, um convite esmerado para ser interrogação humana apaixonada diante da possibilidade dos maiores sonhos. A Gaivota, este delicado pássaro, hábil para ligar o infinito mar e a ampla terra, talvez simbolize a enorme potência dos nossos sonhos diante do desafio que é viver.

Pensam que o novelo acabou? Estão bem enganados, pois  agora temos uma gaivota em cena, mais uma vez, uma gaivota renovada, vestida com as roupas da nossa época, portanto uma gaivota plural. A escolha é natural, pois a peça russa é um texto obrigatório, incontornável, deveria ser leitura compulsória em todas as escolas do mundo e cartilha iniciática de todas as mulheres da terra.

Para atestar a sua permanência,  ele nos honra com mais uma visita, agora pelas mãos do excepcional autor  (ou leitor?) Matéi Visniec. Sim, o romeno assinou uma bela homenagem ao russo. E uma leitura de seu texto Nina ou da fragilidade das gaivotas empalhadas vai estrear no próximo dia 30 de junho, no Teatro Poeirinha, sob um novo nome: Gaivotas.

Gaivotas, Bibiana Rozembaum, foto Nando Chagas.

Trata-se de um projeto da atriz e produtora Bibiana Rozenbaum e do diretor Fernando Philbert, com o objetivo de homenagear os 125 anos da primeira encenação da peça de Tchekhov.

Na sua visita ao original consagrado, o autor romeno mudou um dos pontos vitais da ação: Konstantin sobrevive ao próprio furor, fracassa na sua tentativa de suicídio. Para expandir o olhar acerca das relações humanas e das contradições dos sujeitos, o texto de Visniec reúne Nina, Konstantin e Boris quinze anos depois da situação de desfecho da peça de Tchekhov.  

Em Gaivotas, no entanto, os idealizadores do projeto caminharam um pouco adiante, rompendo algo da moldura temporal, pois acrescentaram à trama um texto de Domingos Oliveira e um trecho de uma entrevista de Visniec cujo tema é a democracia. A peça esteve em cartaz online durante a pandemia e agora será apresentada ao vivo. Ao lado da atriz produtora, integram o elenco Sávio Moll e Antonio Gonzalez.

Gaivotas, Sávio Moll, foto da Nando Chagas.

Nos seus enfrentamentos, além de olhar os caminhos do passado, eles lidam com três temas caros para a definição dos indivíduos no nosso tempo: a revolução, as perguntas a respeito da própria identidade e da vocação, ou o elo sutil que associa o ser e a sociedade.

Não sei se teremos em cena um oratório arrebatador, comparável ao texto original de Tchekhov, uma peça capaz de simbolizar radicalmente o embate entre sonho e materialidade, poesia e vulgaridade, amor e desprezo, devoção e indiferença, delicadeza e brutalidade… Enfim, uma lista impossível. Afinal, como sintetizar em palavras a grandeza do indizível?

Tenho, no entanto, a certeza clara de que esta montagem irá reavivar nas suas plateias a percepção de que existe um valor maior ao nosso alcance que precisa ser cultivado com afinco. É o amor ao teatro.

Apesar de suas eventuais desventuras no presente, sua aparente redução de alcance, parece evidente que o teatro é a religião do nosso tempo. Uma religião social, presidida por um deus pagão bastante difuso, o amor. Uma religião dedicada ao culto do mais elevado humanismo: o abrigo ideal para o cultivo do ser. Então, não hesite, vá ver – quem sabe você encontra por lá um abrigo-de-alma para chamar de seu?

Sergio Britto e Teresa Rachel, A Gaivota, 1974.

Montagem Histórica

A Gaivota, de Anton Tchekhov – 1974

Produção – Sergio Britto e Tereza Rachel
Direção: Jorge Lavelli
Iluminação: Jorginho de Carvalho
Elenco:

Teresa Rachel, Sergio Britto, Renata Sorrah, Carlos Augusto Strazzer, Cecil Thiré, Monah Delacy, Luís de Lima, Helio Ary, Renne de Vielmond e David Pinheiro.

Figurinos e cenografia: Cláudio Segóvia.

Iluminação : Jorginho de Carvalho  

Sonoplastia : Enzo Miglietta e Plinio S. Barreto.

Fotos Programa : R. Sasso  

Assistentes de direção : Hector Grillo

Execução dos figurinos : João Jorge Trintah  

Contra- regra: Edgar dos Santos

Cabelos : Luis de Lima.


Teatro: Municipal do Rio de Janeiro, cuja área de representação foi radicalmente transformada para a criação de um espaço intimista. Temporada a seguir no Teatro Teresa Rachel.

Fotos: Acervo Sergio Britto, CEDOC – Funarte.

Gaivotas, Bibiana Rozenbaum, foto Nando Chagas.

GAIVOTAS

Ficha técnica

Adaptação da obra de Matéi Visniec

Direção e adaptação – Fernando Philbert

Com Bibiana Rozenbaum, Sávio Moll e Antonio Gonzalez

Direção de movimento – Marina Salomon

Direção musical – Marcelo Alonso Neves

Iluminação – Vilmar Olos

Cenário – Natália Lana

Figurino – Marieta Spada

Visagismo – Mayco Soares

Cenotécnico – André Salles

Comunicação visual – Barbara Lana

Assessoria de imprensa – Alessandra Costa

Direção de produção – Júnior Godim e Bibiana Rozenbaum

Idealização – Bibiana Rozenbaum e Fernando Philbert

 Fotos: divulgação.

Serviço

Temporada de 30 de junho a 28 de agosto

Local: Teatro Poeirinha

Endereço: Rua São João Batista 104, Botafogo

Sessões: de quinta a sábado, às 21h; e às 19h, aos domingos

Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia)

Indicação etária: 14 anos