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Vamos brincar de teatro no Brasil?

Uma provocação, claro. Ou, antes, uma constatação. Pense dois minutos e responda rápido: o Brasil faz teatro ou brinca de teatro? Existe por aqui, consolidada, a compreensão do sentido profundo da velha arte para a sociedade?

Não posso dizer qual é o pensamento de quem lê este texto. A minha resposta às perguntas, no entanto, é objetiva. Defendo a ideia de que um bocado de gente (definitivamente uns loucos) se dedica ao teatro no Brasil desde os inícios do século XIX, mas, apesar de sua garra, todos sempre “brincaram de teatro”. E qual seria a diferença entre fazer teatro e brincar de teatro?

Não se iluda, ela não foi pensada aqui como algo positivo. Muito ao contrário. Brincar de teatro significa trair o compromisso da arte com a sua razão de ser. Na sua essência mais refinada, o teatro existe como uma necessidade social para viabilizar, para cada pessoa, em diálogo com o seu íntimo, a oportunidade de ser uma pessoa melhor.

Em tais condições, o primeiro compromisso do teatro nasce de uma ligação profunda com a mudança social – mas não se trata da mudança em larga escala, de barricadas, tiros e revoluções, e sim da mudança interior dos seres. O teatro é a arte do diálogo social, que se torna diálogo interior. Lady Macbeth em delírio, por exemplo, demonstra os limites que os projetos de poder devem obedecer para não lançar os postulantes no caos interior.

O exemplo rápido, decididamente didático, ainda que merecesse ser desenvolvido, obedece a um cálculo cego: todo personagem de teatro é, no fundo, em último grau, um ser social. E existe para servir a esta causa. O teatro cujo objetivo é apenas servir ao teatro, como pesquisa de linguagem, exercício de expressão, demonstração narcisista, foge de sua função definidora primeira e trai a sua essência.

Entretanto, existem nuances. Sem dúvida a construção do mercado de teatro no nosso tempo – quer dizer, desde o século XIX – determinou o aparecimento de um fenômeno curioso. O teatro se tornou instituição social, uma peça ou engrenagem permanente da vida coletiva, tal como a igreja, a escola, o mercado, o museu. O palco deixou de ser eventual, como acontecia por toda a parte até então.

Este jogo trouxe uma obrigação inusitada, a necessidade de erigir caminhos de renovação da rotina da arte. Cada peça pode passar a existir como repertório, uma vitrine da sensibilidade com vida longa. Então, brincar de teatro, fazer teatro por fazer e para fazer, para servir ao teatro, se tornou uma necessidade, mas numa escala específica, claro, de garantia de renovação da arte. Neste caso – e só neste caso – há uma conotação positiva para o ato de brincar de teatro.

Ao lado do teatro de cal e pedra essencial para a respiração social, foi preciso contar com discretas válvulas de escape, bolsões estratégicos de oxigênio, para dotar o palco de fôlego compatível com a caminhada do tempo. Então, a vanguarda, a brincadeira, o teatro pelo teatro. A invencionice se afirmou para garantir sempre a expansão da capacidade da cena para entender o humano ao redor, permitir a sua atualização, sacudir o risco de mumificação da cena.

Alugar coisas, terras, casas, pessoas..

No caso brasileiro, no entanto, o caminho deu errado de saída. Não pudemos, no século XIX, estabelecer o sentido pleno do humano na nossa sociedade – escravocratas, escravistas, escravos são impossibilidades humanas, horrores sociais impossíveis de contemplar. O teatro não podia se tornar uma eficiente instituição social, só podia ser brincadeira teatral no sentido mais pejorativo e negativo da expressão, pois não havia como se chegar a ter uma dimensão clara do ser humano na sociedade.

Um detalhe. Chama a atenção, nos jornais do século XIX, o tom dos anúncios das peças de teatro: são reclames sempre sensacionalistas, surpreendentes, chocantes, como se o palco tivesse a obrigação de causar uma reação de escândalo ou surpresa. Para sobreviver – como mais tarde entenderam muito bem Nelson Rodrigues e Sandro Polônio – o teatro precisava enfileirar sucessos de escândalo. Tal significa, evidentemente, a sobrevivência no precário. Por ironia cruel, nos anúncios dos jornais, peças eram as de teatro e, muitas vezes na mesma página, escravos humanos – peças à venda, fugidas, para alugar.

Sensações fortes, na cena e no salão de carnaval.

Neste cenário de extrema miséria humana, uma cadeia de situações de dependência se cristalizou: o teatro se viu obrigado a mendigar verbas públicas, em especial a concessão de extrações de loterias, no caso do império, sem nunca ter a coragem de propor políticas de Estado para a afirmação social decidida da arte, como, aliás, a classe teatral faz até hoje. Em lugar de uma trama política de ações contundentes para viabilizar a existência do teatro como instituição, se impôs o pires furado mendicante, garantidor de cada temporada.

E assim atravessamos o século XX, um século que viu nascer e morrer o teatro moderno, sem que ele se tornasse uma prática estável por aqui. Um fato paralelo, bem curioso, surgiu com a insistência cada vez maior na prática do teatro como vanguardismo. A escolha submeteu o palco ao diálogo com um segmento restrito da classe média e ampliou a entrega do teatro a uma existência de brincadeira. O teatro caminhou para existir como prática de gueto.

Em consequência, a cena teatral brasileira foi se transformando num surpreendente deserto. A penúria não é maior graças à ressurreição, em especial a partir do início do século XXI, dos grandes musicais. No palco convencional, não existem montagens de grandes textos, nem encenações com grandes elencos, desapareceram as companhias estáveis, não são construídos nem preservados grandes teatros, não há estímulo para o lançamento de novos autores. As políticas de preservação da memória se tornaram pífias.

Distante da busca do diálogo com as forças estruturantes da sociedade, o que se faz no palco é puro teatro de brincadeira. Dolorosamente, este teatro de brincadeira, do qual uma classe inteira depende para sobreviver, se revela, então, como teatro de mera sobrevivência. Um teatro de resistência, mas resistência cega, pois nenhum movimento se faz em prol da mudança profunda da forma social da arte.

Seria preciso, mais do que reivindicar verbas públicas, propor debates límpidos, honestos e profundos, ousados mesmo, a respeito das condições da arte no Brasil. Mas, o mais importante, debates concebidos sempre sob a pergunta incômoda que estremece a nossa violenta sociedade de castas – quem é o brasileiro, quem é o cidadão nacional, a quem o palco deseja dirigir as suas perguntas mais contundentes a respeito da nossa humanidade?   Somos todos humanos?

E ainda mais. Qual a geografia do teatro nas grandes cidades? O coletivo de brasileiro é Brasil? Somos uma coletividade de verdade? Destaque-se a predominância absoluta, neste palco atual em crise, neste teatro de mera sobrevivência, dos monólogos e das peças de elenco mínimo. A cena brasileira se tornou o abrigo dos monólogos. Trabalhos fortes, ousados, intensos, sem dúvida – porém, a cara de um teatro nacional forte pode ser esta?

Sim, existe brincadeira à vera. Muitos artistas se submetem à imposição histórica de fazer este teatro nosso de brincadeira esperneando, como crianças birrentas. E atingem resultados dignos de destaque. Alguns textos surpreendem ao cutucar corajosamente os pontos doloridos da alma nacional.

Márcia Santos em cena.

É o caso de Pessoas, texto e atuação de Márcia Santos, sob a direção de Rogério Fanju, que fará uma curta temporada no SESC Tijuca, de 08 a 11 de dezembro. O trabalho se estrutura a partir de uma pergunta estratégica – de quem falamos quando dizemos, nas nossas falas coloquiais, que as pessoas são isto ou aquilo? Que parte da nacionalidade rege o nosso hábito de julgar o outro, atribuir a terceiros atitudes corrosivas, nas expressões tais como “as pessoas não se enxergam”, “as pessoas não sabem votar”, “as pessoas não colaboram” …? Como explicar a nossa mania de nos vermos distantes das tramas da falência humana nacional?

No palco, a peça materializa a personagem Zelma, a um só tempo provocadora e arredia, interessada em revelar a sua solidão, gerada por sua inadequação ao mundo. Cercada por caixas e livros, Zelma tenta construir uma muralha simbólica, um esforço canhestro para se esconder. Aciona, então, um rol de indagações interessadas em levar para o público perguntas de autoquestionamento.

Pagu

Ao mesmo tempo, em São Paulo, a homenagem a uma grande pensadora da vida no Brasil, até agora muito silenciada se considerarmos a voltagem de sua produção, chega à cena. Estreia no dia 9 de dezembro, no Centro Cultural São Paulo, a montagem de Parque Industrial, adaptação do romance de Pagu, de 1933, assinado então sob pseudônimo.

Escrito pela multiartista Patrícia Galvão, o romance pouco conhecido inovou ao abordar a vida de mulheres operárias no processo inicial de industrialização em São Paulo. Eram três figuras femininas concebidas para expor os impasses brutais que cercavam as lutas de emancipação, apenas iniciadas. A versão em cena contará com onze personagens.

Elenco de Parque Industrial

Assim, se o foco da obra incide sobre as condições da vida da mulher na sociedade, a peça parte do texto original para atualizar o debate da questão. Com uma equipe integralmente feminina, a encenação assinada por Gilka Verena, também responsável pela adaptação, atualiza a visão de velhos problemas – machismo, exploração da mulher, assédio sexual, violência doméstica, desigualdade de classe e gênero, racismo estrutural.

Para o debate a respeito da inserção social do teatro na sociedade, ao lado do engajamento em questões objetivas, a montagem traz um outro dado importante – a temporada da peça conta com gratuidade de ingressos. Isto significa que a encenação, realizada com uma ficha técnica alentada, contou com formas oficiais de financiamento. Para a Prefeitura da cidade de São Paulo, o projeto foi considerado relevante e, assim, pode ser apresentado sem cobrança de ingressos.

A reflexão, a partir deste caso, pode ser ampliada para o tema da cena de qualidade e de custo elevado bancada pelos cofres públicos. Vale perguntar: esta política pode ser conduzida para favorecer a afirmação da arte como instituição social? Quais os segmentos do “mercado” que devem receber dotações? O ideal é persistir na política tradicional de subvencionar trabalhos ou o poder público deveria mudar de orientação, ser levado a investir na infraestrutura da arte?

Dito de outra forma, o capital público importa para financiar espetáculos isolados a fundo perdido ou teria mais impacto se custeasse a construção de teatros, as políticas efetivas de formação de plateia (práticas semelhantes às escolas de espectadores argentinas), bancasse a difusão escolar do teatro, apoiasse a estabilização de grupos e coletivos, favorecesse a circulação nacional de montagens, subsidiasse as publicações de textos, consolidasse as políticas de preservação da memória e da documentação…?

Com certeza o Brasil precisa com urgência de teatro, muito teatro. Os níveis de violência e de estresse social da atualidade andam preocupantes. Atenuar o grau de conflito na nossa sociedade, agir contra a barbárie, é uma conquista interessante para todos. Mas não adianta insistir na arte simplesmente para sustentar a mecânica de consumo, sem uma transformação política profunda do fazer, no sentido de sua inserção social.

Fazer um teatro de perguntas herméticas, fechadas em si, é claramente brincar de teatro, em especial quando sequer existe diálogo com um grande teatro ao redor, para tecer as tramas das cenas, e as perguntas surgem como simples abstração solitária. É a vanguarda pela vanguarda, arte ociosa. Dialogar com Nova Iorque, Londres ou Paris pode ser um prazer enorme, mas o nervo da arte precisa entrar em sintonia com as mazelas da alma nacional.

Há mais dificuldades, porém. Manter um teatro localizado, restrito a pequenas plateias, em temporadas relâmpago, por mais que envolva montagens densas, acaba conduzindo a arte para o mesmo labirinto sem eco da vanguarda pela vanguarda – também é brincar de teatro. Pois a diversão, aqui, não se torna fato social – persiste sendo o passatempo de uma fração social ínfima da população, numa sociedade de castas assustadora.

Se convivemos com uma população nacional estimada em 213,3 milhões de habitantes, a que fração deste número espantoso o teatro fala? Esta fração áurea – quer dizer, privilegiada, abençoada por Dioniso – permite afirmar que o teatro é algo diferente de uma brincadeira de iniciados, algo forte, relevante, em sintonia com um jeito nacional de ser? Ou, afinal, estamos engajados, sem consciência, num ritual insano de morte objetiva do teatro?

As Pessoas

FICHA TÉCNICA

Texto, atuação e produção: Márcia Santos

Direção: Rogério Fanju

Iluminação: Paulo César Medeiros

Cenografia: Daniel Leão

Trilha Sonora: Marcelo Alonso Neves

Figurino: Wanderley Gomes

Preparação vocal: Jorge Maia

Preparação corporal: Édio Nunes

Design gráfico e arte da janela cenográfica: Rômulo Medeiros 

Assistência de Direção e Produção Executiva: Leandro Mello

Operador de Luz: Rafael Tutti

Operador de Som: Felipe Coquito

Serviço

Temporada: dias 8, 9, 10 e 11 de dezembro (de quinta a domingo)

Sessões: de quinta a sábado, às 19h; domingo, às 18h

Local: Teatro II – Sesc Tijuca

Endereço: Rua Barão de Mesquita 539 – Tijuca – Rio de Janeiro

Ingressos: Grátis (PCG), R$ 7,50 (Credencial Plena), R$ 15 (meia entrada) e R$ 30 (inteira)

Classificação: 14 anos

Duração: 70 minutos

Capacidade: 44 lugares

Parque Industrial

FICHA TÉCNICA

Uma adaptação para o teatro do romance Parque Industrial de Patrícia Galvão | PAGU | Mara Lobo

Direção e Adaptação: Gilka Verana

Produção: Aura Cunha e Yumi Ogino

Elenco: Barbara Garcia, Bruna Betito, Emilene Gutierrez, Ericka Leal, Flávia Rossi Tápias, Letícia Bassit e Tati Caltabiano

Composição musical, piano e operação de som: Natália Nery, Lana Scott e Clara Kok

Direção musical e teclado: Natália Nery

Assistente de direção musical, técnica de som e baixo: Lana Scott

Sax e Flauta: Clara Kok

Participação Especial: Gabriela Menezes (Cantora Lírica)

Preparação Corporal e Desenho de Movimento: Paula Petreca

Cenografia e Figurino: Silvana Marcondes

Assistência de Cenografia e Figurino: Carolina Petrucci e Maria Vitória Royer

Videografia: Bianca Turner

Assistente de Videografia: Vic Von Poser

Iluminação: Danielle Meireles

Provocação Cênica: Janaina Leite e Cris Rocha

Provocação Dramatúrgica: Dione Carlos

Colaboração na Investigação Vocal: André Capuano

Costuras: Judite de Lima, Marcelo Leão, Oficina de costura Nicolle e Lika Alves

Construção de Cenário: Edilson Quina ( Urso ), Cíntia Matos e Julio Dojcsar

Montagem: Cezar Renzi

Intérprete de Libras: Mirian Caxilé e Lilian Lino

Imersão Urbana: USO – Teatro Urbano

Imersão Litoral: Mariana Pereira

Assessoria de Imprensa: Canal Aberto Comunicação | Márcia Marques

Fotos de Divulgação: Jennifer Glass e Andréa Menegon

Apoio: Centro Cultural São Paulo

Serviço:

De 9 a 18 de dezembro; de terça a sábado às 20h e domingo às 19h.

Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho

Rua Vergueiro, 1000, Paraíso, São Paulo, SP

Gratuito – retirada de ingresso uma hora antes

Duração: 135 minutos | Indicação: 16 anos

Ingressos distribuídos na bilheteria do espaço com uma hora de antecedência.