Crítica de teatro: Baixa Terapia
A ilusão e a liberdade
O dom do teatro é conhecido: é o dom de iludir. Mas o ato teatral de iludir tem seus requintes, não é uma ilusão falsa, traiçoeira, gratuita. Simplesmente, a ilusão teatral leva cada pessoa exposta a este artifício a se rever – no mínimo.
Às vezes, a ilusão é tão ousada, tão intricada, ao ponto de virar a plateia do avesso. Ou então revelar o avesso humano. Seria um pouco assim como arquitetar um palácio de ouro que, na verdade, é um barracão de zinco sem telhado. Podemos chamar de alta dramaturgia este tipo de peça inventiva, desafio maravilhoso para os atores e diversão plena para o público.
Um alerta – o adjetivo alta não foi escolhido como sinônimo de obra-prima ou cânone poético, valores criados pelo tempo. Alta dramaturgia significa a existência de um texto fiel às convenções da arte, dedicado a tramas e contracenas esculpidas com absoluto cálculo teatral.
Baixa Terapia, de Matias Del Federico, novo cartaz do Teatro Clara Nunes, pertence a esta escola: é alta dramaturgia. Claro, é teatro argentino, herdeiro da fabulosa tradição ibérica. Ibérica, no caso, quer dizer espanhola. Sim, Espanha (usemos este nome genérico para falar de todas as terras da península que não são Portugal…).
Para a nossa lamentação, nós, que nascemos e vivemos há tantos séculos de costas para a América Hispânica, o teatro português conta com um único grande autor monumental, Gil Vicente (1465-1536). Aliás, volta e meia aparece um espanhol voraz para sustentar a tese de que o velho Gil é, na verdade, filho d’ Espanha… Uma covardia: a Espanha conta os seus grandes autores de teatro às dúzias, não tem mãos para contar.
Diante desta história tão impactante, a alta dramaturgia surge na cena hispânica quase como uma força natural, uma forma de ser do teatro. Assim, o texto de Baixa Terapia apresenta uma construção muito engenhosa, um tanto matemática, mas dotada de uma eficiência tal que a plateia não percebe de imediato o tamanho do jogo de ilusão. Isso significa que o público leva a peça para casa, após o espetáculo, para repensar os dados apresentados, por causa da reviravolta sensacional da ação no final. Logicamente, dá uma bruta vontade de rever.
A direção de Marco Antônio Pâmio lida com duas chaves preciosas essenciais para o funcionamento do texto – o estímulo à dedicação completa dos atores aos papéis e a exploração sofisticada do desenho cômico da trama. Ritmo, desenho da ação, movimentação cênica funcionam sob um cálculo rigoroso.
O tema principal – a capacidade do ser humano de ferir o seu igual por prazer e sem culpa – se reveste de uma nota de extrema delicadeza, pois ela aflora numa terapia de casais. O desafio maior deriva do tratamento debochado, impiedoso mesmo, de temas íntimos e fortes, para chegar-se, no desfecho, a um verdadeiro vulcão de crítica à desumanidade, à violência e à cegueira afetiva.
Numa sentença simples, é a comédia essencial do nosso tempo, um painel das imperfeições e dos jogos grotescos existentes ao nosso redor. Quer dizer, é imperdível. Com certeza trata-se de uma espécie de vestibular para que você procure ver quem você é, nas tramas sensíveis do mundo em que vivemos. Portanto, nem pense em deixar de ver, se você se interessa em ser alguém em sintonia com a nossa época…
A trama parece ter um desenho simples, mas, de imediato, inusitado. Em cena, três casais que não se conhecem se encontram para uma sessão de terapia de grupo, agendada, sem que eles fossem prevenidos, pela terapeuta. Surpreendentemente também, a terapeuta não está presente. A sala foi preparada por ela como se fosse abrigar um coquetel. Numa caixa com envelopes, ela deixou instruções detalhadas para a condução do encontro, no qual todas as questões devem ser resolvidas. As tarefas determinam um desfile de situações, conflitos, percepções e sentimentos em boa parte típicos da vida contemporânea.
A grandeza do espetáculo, contudo, não se esgota nestas palavras. No palco, você terá a chance, tão rara hoje, de ver um legítimo elenco de teatro. E, como dizia a velha propaganda do cartão de crédito, não tem preço contemplar a alquimia requintada que comanda tudo, das marcações aos menores gestos.
Antonio Fagundes, um dos maiores atores da cena brasileira, da atual e da histórica, demonstra em carne e poesia o significado da palavra contracenar, o sentido maior da expressão fazer teatro. Ele está em cena em equipe, em estado absoluto de representação, em estado de graça teatral.
O tom de entrega à teatralidade reveste o trabalho de todo o elenco – Mara Carvalho, Alexandra Martins e Guilherme Magon traduzem a delicada teia de sentimentos, situações, conflitos e intenções imposta pelo texto com precisão absoluta. São magos dedicados da ilusão. Fábio Espósito, lançado pela trama num outro patamar de representação, figura o homem brutal, grotesco mesmo, com riqueza de detalhes.
A noite, contudo, acontece ao redor do trabalho magistral de Ilana Kaplan. Atriz consagrada pelo refinamento de sua potência cômica, ela construiu um tipo caricato hilariante e, ao mesmo tempo, patético. A progressão do desnudamento de sua personagem provoca uma espiral de riso impressionante – o desnudamento é um recurso do texto trabalhado com excelência pela atriz, eficiente para fazer ecoar com muita força a grande dor que desponta no final.
A direção de arte e o figurino, assinados por Fabio Namatame, são funcionais, traduzem objetivamente as informações exigidas pela ação. Também a iluminação, de Silviane Ticher, atende com eficiência as demandas da trama. A qualidade da produção é muito nítida – uma marca inconteste da devoção ao teatro.
Este ato de entrega à arte se prolonga mais adiante, um pouco além do palco, com a decisão da equipe de levar o público para visitas aos bastidores, camarins e às coxias. Para quem desejar e se inscrever antecipadamente, existe a possibilidade do passeio ciceroneado pelo elenco. Além desta inovação, a temporada será marcada pelos tradicionais bate-papos no final dos espetáculos, para ampliar a projeção do trabalho. Ou seja: banho de teatro.
Então, não há dúvida, o que está em cena é exatamente a ilusão desejada. Trata-se de um projeto de uma equipe de teatro, nenhum outro valor está em jogo. Pretende-se estabelecer um diálogo profundo, um diálogo social.
Enfim, a cena de ilusão deve ser desmascarada: revelar labirintos e arabescos das almas contemporâneas, sob o manto de práticas populares de terapia tornadas ligeiramente absurdas, surge como uma cortina de fumaça, um álibi. Ou um belo truque, uma baixa terapia muito transgressora.
Na verdade, a brincadeira com a terapia, a visita ao inusitado, o jogo de risos ao redor do cotidiano, a descoberta da fragilidade do ser e do perigo da dor miram um único alvo: a libertação da pessoa. Simples assim. A ilusão teatral existe para desencadear diálogos interiores de libertação humana.
A liberdade brota conduzida pela mão da ilusão, pois o jogo de iludir permitiu que o cidadão, na plateia, impregnado de riso, fosse apresentado a valores maiores do que as misérias triviais da vidinha miúda que passa. Então, o pouco se torna muito e revela um teatro definido por um lema objetivo: liberdade, o seu outro nome é… teatro.
FICHA TÉCNICA
Texto: Matias Del Federico
Adaptação: Daniel Veronese
Tradução: Clarisse Abujamra
Direção: Marco Antônio Pâmio
Elenco: Antonio Fagundes, Mara Carvalho, Alexandra Martins, Ilana Kaplan, Fábio Espósito e Guilherme Magon
Direção de Arte e Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Silviane Ticher
Sonoplastia: Kleber Marques
Fotos: Caio Galucci
Ilustração: Cassio Manga
Design Gráfico: Sabrina de Sá
Assessoria Jurídica: Onesti Advogados
Assistentes de Produção: Gustavo de Souza e Vanessa Campos
Diretor de Produção: Carlos Martin
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO
ESTREIA PARA CONVIDADOS: 12 de janeiro (5ªf) às 21h
ESTREIA PARA PÚBLICO: 13 de janeiro (6ª) às 21h
Teatro: Clara Nunes – Shopping da Gávea
R. Marquês de São Vicente, 52 – Gávea Tel: (21) 2274-9696
Horários: 6ª às 21h, sab às 20h e dom às 18h
INGRESSOS PEÇA: R$140 e R$70 (meia)
INGRESSOS PEÇA + VISITA AOS BASTIDORES GUIADA PELOS ATORES: R$240 e R$170 (meia)
CAPACIDADE: 741 espectadores
ACESSIBILIDADE: sim
VENDAS: https://bileto.sympla.com.br/event/77965/d/165231 ou na bilheteria do teatro
FUNCIONAMENTO BILHETERIA: 2ª a 6ª das 14h às 21h, sab das 13h às 21h e dom das 13h às 20h
Duração: 90 min
Classificação etária: 14 anos
TEMPORADA: até 26 de março