Crítica de teatro: O Caso
Assim é, mas não parece!
O teatro é um tipo de conto do vigário. Uma afirmação forte? Duvida? Mas, garanto de olhos fechados, não é uma tirada, nem piada de salão. A verdade em jogo é bem maior do que a verdade de todas as cenas teatrais representadas ao longo da história do palco ocidental. Sim, o teatro é a quintessência da pura arte da enganação. Quer uma prova?
Pois corra para ver o divertimento teatral mais elegante da temporada, em cartaz no Teatro das Artes: a peça francesa O Caso, de Jacques Mougenot. A novidade acabou de estrear, vai ser um sucesso estrondoso, exatamente por causa do extremo requinte do seu dom de iludir. É para rir, um riso inteligente, redentor. Claro, é uma daquelas revoluções possíveis no teatro, sem tiro, bomba, sangue ou aflição.
Vale destacar de saída a excelência da dramaturgia – quer dizer, enfatizar uma evidência, trata-se de um original redigido a partir de uma tradição dramatúrgica muito precisa. As leis de estruturação do texto dramático estão todas lá e, como quis demonstrar Aristóteles, elas funcionam.
Portanto, ação e reação se estruturam rigorosamente num cerrado jogo de armar até o desfecho, construído por um hábil golpe de teatro. O Caso de Martins Piche, rebatizado aqui simplesmente como O Caso, é o segundo texto do ator e autor francês encenado no Brasil. O primeiro, O Escândalo Philippe Dussaert, também dirigido por Fernando Philbert, com atuação de Marcos Caruso, alcançou vida longa e uma enxurrada de prêmios.
A cena de agora gira ao redor de um Otávio Muller em excelente forma cômica, no papel de um homem entediado, muito entediado. Não, não se trata de um sujeito vítima do enfado comum, aborrecido com as mesmices da vida, como acontece com todos nós. Arnaldo é o tédio em pessoa. Para ele, tudo se tornou muito chato, ele não presta atenção a nada, vive desligado, longe da chatura universal. A coisa é de tal ordem que sugere a presença de um quadro neurótico bem raro.
Apesar de estar acomodado à condição, pressionado pela mulher, o doente procura ajuda médica. A profissional escolhida, defendida por Letícia Isnard, tem prestígio como grande especialista no diagnóstico de quadros desafiadores. Para a plateia, é a chance de ver dois artistas de notável arquitetura expressiva duelando em cena. Dá para perder o fôlego: é bom demais.
A peça focaliza a rotina da primeira consulta médica, uma panorâmica da vida do paciente, pródiga em situações comuns. Talvez, arrastados na correnteza do dia a dia, não tenhamos noção do vazio humano em que vivemos todos – mas a neurose de Arnaldo levanta a ponta do véu sob o qual, em nome da modernidade, vivemos sufocados sem clemência. E só nos resta rir.
Otávio Muller amplifica as potências do riso a partir do seu estilo de atuação, um tom de entrega total, com o ar familiar, despojado. Ao transformar o seu tédio em ato natural, ele nos aproxima do sentimento vertiginosamente e nos leva a estranhar as nossas opções corriqueiras, na vida cotidiana. Quer dizer – de repente, deparamos com a constatação incontornável da chatice de tudo.
Leticia Isnard, por sua vez, seguindo uma linha mais racional, trabalha o interrogatório médico com extrema sutileza e, a pouco e pouco, acaba por desnudar a fragilidade das formas sociais de representação a que estamos submetidos. São requintes de olhares, gestos e trejeitos preciosos, numa espiral expressiva tecida de espanto, como se não houvesse amanhã.
A trama se desenrola sob um ritmo acelerado crescente, um dos grandes acertos da direção artesanal de Fernando Philbert. O outro acerto fenomenal, opção que reveste tudo, desde a interpretação, pode ser sintetizado na constatação da naturalidade intensa da cena. Todo o desenho do espetáculo acontece sob esta premissa. Diante da cena, de certa forma, estamos em casa, um ardil para que sejamos lançados, lá no fim, de súbito, num abismo.
Assim, a cenografia de Natalia Lana sugere um consultório sóbrio e funcional, ainda que estrategicamente envolvido por uma parede de peças de jogo de armar. Afinal, o sentido final de tudo, como num quebra-cabeças, só se revela no desfecho, o grande truque da peça.
O figurino de Carol Lobato é técnico no melhor sentido – neste caso, ele é transparente, quer dizer, identificado por completo com as necessidades de mostrar o texto. A mesma condição estrutura a luz de Vilmar Olos, dedicada a sublinhar os focos e o andamento da ação.
Importa ressaltar o sentido profundo da montagem. Espécie de conto do vigário, mentira para a alma, a peça apresenta uma reviravolta da ação, um desfecho surpreendente. Graças a este recurso, o espetáculo expõe o público intensamente à superficialidade inerente à vida. Na linha de frente, há o tema da submissão à ordem do efêmero, há o tema da dissolução dos valores humanos primordiais, problemas fortes da sociedade descartável do nosso tempo.
Mas há, sobretudo, o tema do poder do teatro. Um poder sutil de jogo e de redefinição da percepção, capaz de arrebatar as ideias e as emoções de cada um, talvez apenas para lembrar que somos matéria delicada, algo a ser cantado em cena e nos atos, não para alcançar algum proveito mundano, mas, com certeza, para edificar seres melhores, para o melhor proveito do mundo.
Então, vale a ressalva: o teatro é sim um tipo de conto do vigário, mas é o único tipo em que a vítima, quer dizer, o público, leva a melhor e sai no lucro… Afinal, alguém precisa honrar a profissão sagrada do vigário, em foco no nome do conto: assim o teatro brinca com a percepção imediata do povo, enquanto salva de verdade a alma de seus fiéis seguidores.
O Caso
SERVIÇO:
ESTREIA: dia 17 de março (6ªf), às 21h
Teatro das Artes RJ – Shopping da Gávea
R. Marquês de São Vicente, 52/2º piso – Gávea. RJ Tel: (21) 2540-6004
HORÁRIOS: 6ªf às 21h, sab às 20h e dom às 19h
INGRESSOS: 6ªf e dom R$100 e R$50 (meia), sab R$120 e R$60 (meia)
ONDE COMPRAR: https://divertix.com.br e na bilheteria do teatro
GÊNERO: comédia
CAPACIDADE: 418 espectadores
ACESSIBILIDADE: sim
CLASSIFICAÇÃO: 12 anos
DURAÇÃO: 80 min
TEMPORADA: até 30 de abril
Ficha Técnica
Texto: Jacques Mougenot
Tradução: Marilu Seixas Corrêa
Direção: Fernando Philbert
Elenco: Otávio Muller e Letícia Isnard
Cenografia: Natalia Lana
Figurino: Carol Lobato
Iluminação: Vilmar Olos
Trilha Original: Francisco Gil – Gilsons
Arte Gráfica: @orlatoons
Direção de Produção: Carlos Grun
Uma produção Bem Legal Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany