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Da arte e da guerra

Houve um tempo em que a transformação do menino em homem passava pelo serviço militar. Acreditava-se piamente no remédio. Maratonas extenuantes de exercícios e de manobras militares fariam o ser quase imberbe renascer num colosso de músculos, frieza e resistência física. Existia até um folclore curioso a respeito de aprender a viver depois de comer comida de quartel – uma gororoba horrenda capaz de levar o paladar a se afastar da comida da mamãe. Longe das saias da mãe, o único jeito era virar macho forte retumbante.

Mas a história ia além da brutalidade explícita. Naqueles tempos, ao lado da barbárie assumida, o soldado era um ideal social. A idealização do soldado – o soldadinho –  figura em inúmeras obras de arte, aparece em incontáveis canções populares e velhas brincadeiras infantis. A mitologia é muito antiga, apesar do rastro de dor que os militares, nas guerras, sempre espalharam.

Em tempos recentes, novos valores sacudiram o velho mito: a ideologia de paz e amor começou a envolver a vida militar numa aura no mínimo nebulosa. A rebelião jovem, a partir dos anos 1960, fez a lona das barracas tremerem. A guerra ao serviço militar se tornou cotidiana a partir da Guerra do Vietnã. E quem podia, fugia da caserna obrigatória a qualquer preço, fosse como fosse. O serviço militar foi se tornando um mico.

No entanto, o movimento de ideias e a afirmação dos novos valores não fecharam os quartéis e não acabaram com as guerras. Aliás, as guerras continuam em cartaz, estão por toda a parte. Algumas são oficiais, declaradas, outras são surdas, subterrâneas. E muita gente de mente iluminada pergunta com desânimo: qual o poder de um pensamento diante de um canhão? E diante de uma vontade insana de brigar?

Curiosamente, apesar da aparente derrota obrigatória da bela ideia diante do bruto poder, existem alguns fatos históricos assombrosos. Além da emocionante história da luta contra a Guerra do Vietnã, um dos fatos históricos mais surpreendentes aparece no texto de vários historiadores. Trata-se de uma das explicações frequentes, nos livros, para a queda do Império Romano – veja bem de que monumento se fala aqui! – justamente a recusa dos soldados romanos em guerrear. Como aconteceu?

As terras do império estavam sendo ocupadas por hordas bárbaras, fascinadas pelo poder imperial. Convertidos ao Cristianismo, então a religião dos mais humildes, os soldados romanos se recusavam a combater os invasores, não aceitavam derramar sangue humano. E assim, de braços cruzados, contribuíram para a queda de Roma, entre outros fatores, claro.

Vale frisar: o assunto não tem nada de simples, pois, com frequência, a força se torna peça fundamental para a sobrevivência de valores requintados. Como impedir a liquidação de um país ou o avanço de forças nazistas sem o poder militar?  De repente, a existência de um belo exército pode ser ferramenta fundamental para a garantia da democracia e dos direitos humanos…

O debate tem uma importância enorme no Brasil, pois a presença dos militares na sociedade brasileira desde a Guerra do Paraguai molda a realidade política do país de forma decisiva. Nunca, contudo, houve por aqui uma reflexão sistemática a respeito da instituição. A razão de ser do exército é a guerra? Num país sem conflitos externos, porém com guerras interiores tão surdas quanto ferozes, é necessário repensar a razão de ser do poder militar? As armas servem para quê mesmo? E os militares? E a guerra?…

As ideias volteiam em turbilhão diante da força do tema e, diante do século XXI, talvez haja uma importância imensa no ato de revisitá-las.  Uma peça muito original traz o debate para a cena, ao mesmo tempo em que comemora 30 anos de carreira do ator José Karini. É a estreia deste fim de mês do Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro. O título é direto : Guerras.

A proposta pretende trabalhar com um caleidoscópio de ideias ao redor da prática da guerra. A partir do conceito de sampler, o roteiro assinado por Sidnei Cruz reúne pensamentos decisivos a respeito do tema. São muitos pensadores e autores. La estão de Jesus Cristo a Gandhi, passando por Einstein, Chaplin, Churchill, Deleuze. O objetivo, caro à facção mais inquieta do teatro de nosso tempo, é levar a pensar. Não poderia ser de outra forma, pois a direção é assinada por Renato Carrera, profissional cujo trabalho é regido pela busca da renovação da sensibilidade e da percepção.

Com certeza não se obterá uma panaceia imediata, apropriada para combater a intensa violência que pulsa na sociedade contemporânea. Mas é a proposição de um caminho – uma trilha na floresta espinhosa do cotidiano de todos. De pensamento em pensamento, quem sabe, há de surgir um dia um homem novo, feito de um tipo de poesia humana acessível a todos, distante de um mito que se tenha que lutar para alcançar.

Afinal o nosso soldadinho de chumbo mais querido, militar de boné, espada e uniforme, mas sonhador, amoroso, sob o fogo da lareira doméstica se transformou num delicado coração. Incapaz de lutar contra a natureza, varrido da prateleira por um golpe de vento, para todo o sempre ele nos comove, comove a todos. Aliás, como se fosse filho dos hippies e não de Andersen, o seu lema se tornou um grito antimilitar: faça amor, não faça a guerra…

Ficha técnica:

Atuação: José Karini 

Direção: Renato Carrera 

Dramaturgia: Sidnei Cruz

Direção de Arte, Figurino, Cenário e Programação Visual: Daniel de Jesus

Iluminação: Leandro Barreto

Assistência de Direção: Jean Marcel Gatti

Trilha Sonora: Renato Carrera e Jean Marcel Gatti

Preparação Corporal: Simone Nobre

Fotos: Sabrina da Paz

Mídias Sociais: Lucas Gouvêa

Assessoria de Imprensa: Christovam de Chevalier

Direção de Produção: Renato Carrera

Produção Executiva: Renan Fidalgo

Colaboração Trilha Sonora: Adriano Sampaio 

Serviço:

Centro Cultural Banco do Brasil

Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro

Informações: ccbbrio@bb.com.br | bb.com.br/cultura

Teatro III (2º andar)

Temporada: de 23 de março a 30 de abril de 2023

Dias e horários: de quinta a sábado, às 19h, e, aos domingos, às 18h 

Duração: 60 minutos

Classificação etária: 16 anos

Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), à venda no site do CCBB ou na bilheteria física

Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia entrada.

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