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Quem foi que descobriu o Brasil? Foi o teatro?

Não sei dizer o motivo, mas o Rio Grande do Sul volta e meia laça a minha vida. Primeiro, foi o incrível espetáculo Mockinpott, de Peter Weiss, do Teatro de Arena de Porto Alegre, apresentado no Rio em 1976. Um esplendor. Depois foram alguns alunos, na época em que os sindicatos do RJ e do RGS não possuíam acordo de reconhecimento profissional. Os jovens eram notáveis, mas sumiram da escola de teatro assim que o acordo sindical entre os estados foi assinado. Uma pena, sempre se renova a rotina da profissão com alunos adoráveis em sala.

 

Aliás, vale destacar a impressionante qualidade dos atores gaúchos, um elenco de peso na história do teatro brasileiro. Isto sem considerar a lista dos diretores, uma gente de extrema capacidade poética. No entanto, a grande virada diante do poder do teatro gaúcho eu vivi quando comecei a estudar a biografia e a arte de Maria Della Costa (1926- 2015) – lancei o livro lá, com a presença dela, e foi inesquecível. O ritual de celebração da estrela pelos conterrâneos me comoveu. Como eu sou carioca, filha de um balneário que se acredita universal e cosmopolita, nunca tinha visto esta dimensão de homenagem aos filhos da terra que se foram e retornaram pródigos.

 

Esta vivências fazem com que eu tenha sempre muita curiosidade a respeito do teatro do Rio Grande do Sul. Viajei para Porto Alegre na sexta e fiquei surpresa. Nos anúncios de jornal, encontrei apenas duas peças em cartaz em horário difícil para a agenda: decepção. Tudo o que eu queria era uma orgia teatral gaúcha.

 

Por exemplo? Ver um grande espetáculo no Theatro São Pedro. Mas nada disto foi possível, fiquei mesmo entregue ao charme da cidade, sem teatro. Cheguei à conclusão de que é urgente mudar este quadro no Brasil: é preciso ter mais teatro por toda a parte. Muito teatro.

 

Desconfio que há um caminho natural para isto, de uma simplicidade franciscana: conclamar os cursos de formação de atores a produzirem muitos trabalhos para apresentação pública nos teatros convencionais das cidades. O ato permitiria instaurar a lei do fim do palco vazio.

 

Nada contra a apresentação de estudantes – em especial nas cidades em que o movimento escolar/teatral supera o ritmo do mercado. A difusão do teatro na sociedade é uma bela recompensa. E a engrenagem movida pelas escolas traz famílias, vizinhanças, parentelas, enfim, a multidão que anda escassa na plateia. A norma seria muito objetiva – todo o lugar se preocuparia em ter uma arte para chamar de sua e para mostrar. Da pequena aldeia à cidade agitada, a rotina passaria a ser juventude, cena e efervescência.

 

Nesta ótica do local cioso de si, a semana traz uma novidade do Nordeste capaz de apontar para um outro terreno estratégico na difusão do teatro, o lançamento de livros. Assim como o Rio Grande do Sul, Pernambuco tem uma vitalidade teatral impressionante e é de lá que vem a bela notícia. São livros preciosos, leituras obrigatórias no campo da história do teatro brasileiro.

 

A coisa é oficial, destaque-se. A Companhia Editora de Pernambuco – CEPE – assina as edições. O primeiro volume lança mais uma obra de Hermilo Borba Filho (1917-1976), Sol das Almas. Trata-se de um homem de teatro de importância nacional, dotado de impressionante capacidade de trabalho, notável voltagem criativa. Dramaturgo, professor, teórico, crítico, historiador e animador cultural, ele integrou uma geração de homens de teatro dedicados ao estudo pleno do Nordeste.

 

A outra obra em lançamento ecoa muito do movimento regional histórico promovido por Hermilo e por sua geração, um evento decisivo por ter aberto um imenso espaço de criação poética, particularmente rico na produção teatral. O livro TPN – Teatro Popular do Nordeste: o Palco e o Mundo de Hermilo Borba Filho, assinado pelo pesquisador e professor Luís Reis, também um homem de teatro muito ativo, joga o foco sobre uma era de muita inquietação e invenção. O nome teatro de arena já diz bastante do que está em jogo.

 

Como se pode concluir com facilidade, o esforço para pensar e iluminar a trajetória do palco brasileiro na segunda metade do século XX tem absorvido muita energia dos pesquisadores e dos editores. A constatação se projeta cristalina com a chegada às livrarias, em lançamento nacional, do livro Fernanda Montenegro Itinerário Fotobiográfico, Edições Sesc São Paulo. É outro acontecimento teatral de grande envergadura a mobilizar a atenção nacional.

 

O alcance da obra transparece claro – mais do que celebrar uma deusa da cena ou construir um mito, o cálculo é o de cruzar as tramas da história da cena com a biografia, no caso uma biografia de extrema presença em todos os movimentos da cena nacional, dos anos 1950 para cá.

 

Não há dúvida de que o amante de teatro está diante de livros essenciais, dotados do poder de amplificar a atividade, revelar as suas tramas de linguagem. Apesar de todos os indícios de crise, transformação, instabilidade, o movimento editorial indica uma maturidade da arte muito positiva. Para quem duvida, basta considerar os lançamentos da Editora Cobogó, uma casa capaz de acompanhar a vitalidade recente da dramaturgia. Ainda esta semana, a Editora presenteará o público de teatro com o lançamento de Passarinho, de Ana Kutner, peça em cartaz no Sesc Copacabana.

 

Panorama denso, temporada rica. Artes, invenções, efeitos de linguagem, cálculos políticos – muitos debates poderão incendiar a semana diante destas propostas. Pois vale clamar pelo regional, convocar as cores locais e as forças da terra provinciana, mas vale ainda mais perceber o quanto tudo o que se vive se reduz a um simples jogo histórico. Nos preocupamos com o Brasil, nos perguntamos sobre cada rincão e sempre acabamos por enuviar a visão dos fatos – na ciranda destas ideias, recomenda-se a ida ao SESC Copacabana ver o delicioso, ousado, contundente A Invenção do Nordeste, encenação do Grupo Carmin, de Natal.

 

Se existe uma dúvida cruel ao nosso redor, gerada pela ousadia de muitos – aqueles que ousam insinuar que afinal não existe o Brasil, entidade que seria ainda e sempre apenas uma hipótese para o futuro – uma certeza existe nestas terras. É a certeza de que o Nordeste foi inventado, nasceu como um projeto político, se afirmou e acabou até virando uma sólida afirmação poética.

 

Não fique surpreso: corra para ver o espetáculo. Não há na cena nenhuma desilusão. Uma noite inteligente e divertida será o seu prêmio – quem sabe um dia, fazendo muito teatro, o país consiga chegar a uma percepção mais nítida a respeito de si, suas necessidades maiores, sua governança, seu potencial para sair dos palácios e fazer o povo das ruas viver feliz?

 

No fundo, para os teatros de arena e populares, marcos históricos tão importantes, importava para o palco sonhar com isto. E sonhava-se também com teatro por toda a parte, como se fosse uma forma da alma nacional. Do Rio Grande do Sul ao mais remoto recanto do Rio Grande do Norte, até o mais etéreo povoado da floresta tropical, a cena nos uniria e diria de nós os mais profundos segredos, lançados ao vento por atores apaixonados e apaixonantes. Não custa sonhar com a chance de que este tempo ainda chegue um dia por aqui, quem sabe ajudemos um pouco para que logo ele venha a acontecer…

 

Lançamento do livro com o texto da peça
:

PASSARINHO, de Ana Kutner
Editora Cobogó
dia 17 de julho (3ªf), às 19h
Livraria da Travessa de Botafogo
Rua Voluntários da Pátria, 97 – Botafogo / RJ

 

FICHA TÉCNICA:
A Invenção do Nordeste
Espetáculo inspirado na obra homônima do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano
Direção e Figurino: Quitéria Kelly
Elenco: Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros
Assistência de Direção, dramaturgia audiovisual e desenho de luz: Pedro Fiuza
Consultoria histórica e de roteiro: Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Direção de Arte e Cenografia: Mathieu Duvignaud
Preparação Corporal: Ana Claudia Albano Viana
Preparação Vocal: Gilmar Bedaque
Produção Executiva: Mariana Hardi
Trilha Original: Gabriel Souto / Toni Gregório
Design Gráfico: Teo Viana | Xilogravura: Erick Lima
Costureira: Kátia Dantas
Cenotécnico: Irapuã Junior
Edição de Vídeo: Juliano Barreto
Locução: Daniele Avila Small
Assistência Técnica: Anderson Galdino
Produção: Paulo Mattos
Assessoria de Imprensa: Ney Motta

 

SERVIÇO:
Sesc Copacabana (Mezanino)
Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro Temporada: 12 a 29 de julho, quintas, sextas e sábados, às 21h e domingos, às 20h
Ingressos: R$ 7,50 (associados Sesc), R$ 15 (meia) R$ 30 (inteira)
Informações: (21) 2547-0156
80 lugares
70 minutos
12 anos