O amanhã e o teatro: um encontro ou o vazio?
O que será o amanhã? Às vezes tento pensar o amanhã, ainda que o exercício seja arbitrário, apenas ato puro de imaginação. No entanto, parece inevitável recair no caminho tentador, em especial quando vemos a FIRJAN inaugurar no Rio um luxuoso centro cultural, num dos mais belos palacetes de Botafogo, a Casa FIRJAN. Qual a relação? Total – a Casa vai se dedicar à cultura, mas o foco será o futuro, através da exploração dos caminhos da economia criativa. Quer dizer, inauguraram uma casa para o amanhã.
O perfil nasceu de um raciocínio simples – uma parte significativa dos escolares de hoje irá exercer no futuro profissões que ainda não foram criadas, assim como cerca de 30% das ocupações do presente há dez anos não existiam. Para atender a esta demanda, o centro cultural se ocupará de cursos, palestras e laboratórios dedicados à invenção profissional do futuro.
Aliás, nunca o futuro foi tão bem recebido por aqui: o conjunto é lindo, monumental. No terreno de 10 mil metros quadrados, há o palacete luxuoso, do início do século XX, antiga residência dos Guinle e da família Paula Machado, conhecido como Palacete Linneo de Paula Machado. Próximo, foi erguido um prédio ultramoderno, de engenharia avançada e arquitetura sofisticada, com auditório e salas.
A programação prometida enumera cinema, exposições, shows. Para a abertura, foi agendada a mostra Transformação, espalhada pela casa antiga e pelos jardins, com objetos, painéis, esculturas – convites para ver e para interagir; a casa apresenta uma bela coleção de obras de arte, esculturas, pinturas, instalações.
Dedicada ao conceito da casa, a exposição inaugural aborda num dos segmentos os pioneiros da industrialização, nomes estratégicos para o desenvolvimento carioca e nacional. O foco recai, então, sobre a história dos industriais brasileiros. É oferecido um passeio por trajetórias que ajudaram a mudar os rumos da vida aqui, levaram a terrinha ao futuro.
Curiosidade inquietante: com tanto espaço, não foi erguido nenhum teatro. Aliás, na programação divulgada até o momento, não existe teatro. O centro cultural não menciona nada relativo às artes cênicas. Dá medo concluir que, para a FIRJAN, tudo indica que o futuro não terá o teatro entre as suas manifestações artísticas.
O fato parece chocante para quem vive no mundo do teatro, esta espécie de mundo da lua. Pois, para contrapor, justamente o último número da Revue d’Histoire du Théâtre, de abril-junho de 2018, que acaba de chegar aqui com bastante atraso graças ao passadismo dos Correios e Telégrafos brasileiros, trata de um tema com recorte, digamos, futurista, entre outros aspectos. O assunto das páginas é a mecânica da representação.
O que seria exatamente este assunto? As máquinas e as invenções delirantes que fizeram o deslumbramento das plateias de teatro europeias. Sim, o eixo nobre do assunto percorre um período remoto para nós, do século XIV ao século XVIII, quando por aqui nem existia teatro, só celebrações, batuques, procissões e amadorismo. Mas, se olharmos com atenção, talvez o caso não seja um tema ultrapassado para nós, nem desinteressante, nem distante de uma discussão bem nossa de economia criativa.
Vamos por partes – primeiro, as grandes invenções de máquinas para efeitos teatrais retumbantes percorreram épocas notáveis de arte – o renascimento, a corte rococó francesa, o teatro barroco, o sucesso popular do teatro no século XIX. Depois, há na lista dos grandes nomes dedicados à invenção de máquinas cênicas alguns gênios universais absolutos, homens que mudaram a sensibilidade e a trajetória do mundo. Dentre eles, temos Leonardo da Vinci (1452-1519) e Brunelleschi (1377-1446).
Esta constatação aponta para um outro lugar – um espaço de diálogo e de troca entre as artes difícil de ser vislumbrado hoje aqui. Afinal, na Europa e por toda a parte o diálogo acontece. No caso histórico, as representações teatrais absorviam figuras engenhosas como Leonardo e Brunelleschi, transitando entre a genialidade e a arquitetura. Os espetáculos eram um acontecimento social de impacto, ecoavam em cheio no imaginário da sociedade. O poder do teatro nascia do fato de ser uma linguagem de arte com amplo trânsito no mundo da arte, não era uma entre tantas formas de expressão cotidiana. A arte não pretendia ser vizinha da fala comum, não se fingia de amiga do cotidiano, mesmo quando enveredava pelo universo do trivial.
Isto significa reconhecer um diálogo intenso entre as artes e o lugar específico da arte. E mais: não existia neste jogo, por mais que se desejasse adular os poderosos mecenas do tempo, uma visão utilitária da cultura, imediatista. O fato das pinturas tratarem de fatos religiosos não altera o centro da questão, tema paralelo denso demais para ser abordado aqui. O mecenato, mesmo egocêntrico e narcisista, se interessava pela arte em si.
Uma consequência desta dinâmica é bem impositiva – alguns quadros renascentistas só podem ser analisados com clareza se considerarmos os espetáculos de teatro da época, que os inspiraram. Um bom exemplo é a representação teatral da Anunciação, com vasto uso de máquinas para efeitos celestiais. Outro, é a ascensão de Cristo. E ainda outro é a Natividade – o quadro A Natividade Mística, de Sandro Botticelli, reflete, nos diferentes planos da pintura, a concepção teatral apresentada, à qual o pintor assistiu: não se trata propriamente de exercício puro de imaginação ou simples uso da perspectiva, mas de reprodução de um efeito de maquinaria teatral.
A lista dos efeitos que marcam este espaço de interlocução é, no mínimo, saborosa – anjos que voam, santos que ascendem, diabos que cospem fogo, bocas de inferno, nuvens dançantes, visões celestiais, aparições e desaparições, dragões alados, figurações das delícias do paraíso – tudo com luzes, cores, movimento. Nas festas e representações laicas, as mecânicas também são sofisticadas – animais que se movem e cospem flores ou fogo, mágicas e efeitos maravilhosos.
A enumeração traz à lembrança com força algo muito nosso, o carnaval. Não há dúvida de que tais efeitos estiveram, em outra escala, por causa do movimento, nas procissões. Apesar do ambiente mundano nos salões, eles andaram também nas grandes festas reais e nobres. E passearam pelas ruas. De passo em passo, eles chegaram aos desfiles de carnaval e vieram parar por aqui.
Portanto, o assunto interessa à economia criativa e aos estudos de profissões do futuro de forma impactante. E este é só um aspecto para dizer que sim, o teatro estará no futuro e afetará, por lá, a vida das pessoas. O teatro estará no futuro nem que seja emprestado a outras formas de manifestação coletiva, como o carnaval. Pessoalmente, por sua humanidade intensa e sua capacidade para pensar sensivelmente o ser, o espaço e o tempo, acredito que ele estará lá por si. Para equilibrar os delírios técnicos, por exemplo.
Contudo, numa visão mais objetiva e mais imediata, se pode também argumentar que, diante da falência estrondosa que nos cerca, uma das poucas chances para a recuperação do Rio de Janeiro para os tempos vindouros está em duas industrias fortes, a indústria do turismo e a do carnaval. Nos dois casos, o porvir é impensável sem o concurso do teatro. Primeiro, porque o turista deseja ver as belezas naturais, mas deseja também ver o que somos. Para os turistas internos, especialmente, e até para o turismo estrangeiro, apesar do idioma, o teatro carioca ainda pode oferecer uma visão do que somos.
Mas tem mais. Há o carnaval. As técnicas de Parintins chegaram ao Rio, a Beija Flor de Nilópolis descobriu uma trilha para fazer o desfile das escolas de samba dialogar com o teatro, a construção dos carros alegóricos e dos adereços de desfile ronda o computador. Quer dizer – muito do futuro do Rio está na sua imensa capacidade de criação cultural, está na chance de manter em conversa íntima os múltiplos territórios de arte caros à alma da cidade.
Hoje, urge que a grandiosidade dos cenários dos desfiles das escolas de samba converse com a cenografia teatral. No final do século XIX, início do século XX, todos os grandes cenógrafos do teatro carioca – Lazari, Jaime Silva – trabalhavam na elaboração dos carros de desfiles de carnaval das grandes sociedades, associações que precederam as escolas de samba. O teatro de revista e o carnaval mantinham diálogo intenso.
É um desafio muito grande pensar o futuro do teatro – não sei se eu sei pensar isto ou mesmo se alguém pode ou deve pensar isto. Sei que os teatros que eu amo de verdade são espaços teatrais do século XIX, velhos como a ribalta e o proscênio, os chamados teatros à italiana. Sei que, ao longo da história, o conceito de espaço novo só se torna institucional quando a forma que o fez nascer já está moribunda. Todo espaço teatral consagrado em pedra, madeira e cimento é o espaço de uma arte morta, que já passou.
Qual a forma do espaço teatral do nosso tempo, qual o teatro que deve dialogar com a massa da nossa sociedade para dizer e ouvir as densidades de nosso interesse? Sabemos vê-la e entendê-la? Ela está por aqui em alguma parte, mas se esvai, rápida, sem que ainda seja o tempo de retê-la? É irrelevante se ocupar disto? Estas perguntas todas não importam para o futuro?
Sim, eu tenho as minhas respostas e elas são bem ousadas – o futuro é, afinal, uma ousadia. Eu penso que este teatro-arte do presente que contem o futuro, que será o teatro do futuro, é o musical. E sinto profundamente esta intuição quando estou no teatro e percebo o grau de felicidade que acomete a todos os que estão ali na plateia. Seria o momento de pensarmos este lugar, os caminhos latentes que podem ser traçados aí? Onde teremos a nossa casa para pensar o teatro e seu futuro?
Nesta semana estreia um grande musical que trata, entre outros temas preciosos, da urgência da relação com o futuro – Pippin. Pippin é Pepino, o filho mais velho do imperador Carlos Magno (742-814), rei dos francos, fundador de um império que celebrou ao mesmo tempo o nascimento da França e a consolidação do poder de Roma, a potência católica, na Europa. Não deve ter sido fácil ser filho do monarca e, após várias tentativas para construir-se como um mito à altura do pai, o filho escolheu ser pai de família mesmo. Que futuro!
Em cena, na peça, a magia do teatro acontece como relato de uma trupe de teatro, dedicada a contar a história e a encantar a plateia. E entre os encantos está uma deusa da cena brasileira, uma sensacional atriz que assinou páginas históricas de primeira grandeza – Nicette Bruno. Portanto, a montagem traz o futuro em volutas douradas: é uma encenação histórica, vai ficar para sempre.
Voou com o texto? Andou aéreo numa máquina de teatro? A ideia era esta. Ao futuro! O emaranhado de referências foi construído de propósito. Não dá para pensar o lugar da economia criativa com os pés no chão e fora do teatro – até porque, além de ser sempre uma vertigem de informação, o teatro é a arte que mais emprega pessoas por aqui, mesmo que o cinema seja o seu irmão rico. No carnaval, muito da mão de obra arregimentada, além de sazonal, é informal.
Se tudo isto não nos obriga a ter, para o amanhã, um compromisso profundo com o jogo teatral, não sei dizer que futuro é este, não tenho como vislumbrar nada do seu contorno. Talvez o futuro seja isto: interrogação em estado puro, vazia, simples amanhã. Tomara que estejamos juntos por lá, felizes e – claro – em lua de mel com o teatro.
CASA FIRJAN – Palacete Linneo de Paula machado
Horário: visitação à Casa e a exposição “Transformação” – de terça a sexta-feira, das 10h às 20h; sábados, das 10h às 17h; fechado: domingo e segunda.
Endereço: Rua Guilhermina Guinle, 211 – Botafogo
Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (Estudantes, pessoas acima de 60 anos, professores e moradores de Botafogo).
Entrada gratuita durante todo o mês de agosto e todas as terças-feiras do ano
Visitas guiadas gratuitas: http://www.firjan.com.br/firjan/empresas/competitividade-empresarial/casa-firjan/
FOTO: divulgação/ Paula Johas/FIRJAN
Pippin
De 03 de agosto a 21 de outubro de 2018
Teatro Clara Nunes – Shopping da Gávea
Quintas, às 17h. Sextas e sábados, às 21h. Domingos, às 19h30.
Classificação indicativa: 12 anos
Ingressos:
Quintas (17h) e Sextas (21h): R$ 50 (balcão) e R$ 80 (plateia)
Sábados (21h) e Domingos (19h30): R$ 70 (balcão) e R$ 120 (plateia).
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