A volta da velha senhora
Eatenção, atenção! Ela voltou – e, quem sabe, parece que voltou para ficar. Sim, a comédia leve, airosa, divertida e inteligente, aquele teatro que os intelectuais empolados odeiam, a cara do Rio de Janeiro, saúda a cidade e pede passagem. O que vamos dizer à velha dama elegante? Seja muito bem vinda, fique à vontade, o Rio de Janeiro é seu, a nossa cena é sua. Já na saudação, vários problemas. Vale ir por partes.
Alguns sustentam que o alarido carece de motivo – a comédia não teria sumido nunca por aqui. Outros, mais atentos, sustentam que não é bem assim, nuanças delicadas bailam no ar: ela vegetava, lutava para sobreviver, cercada de desprezo por todos os lados.
De toda forma, vale passar os olhos e a inteligência pelos cartazes, pensar um pouco a sua dinâmica e decidir se é teatro o que queremos. Se a resposta é positiva, vamos lá: senhora, seja bem vinda, o teatro não pode viver sem a sua nobre presença, por favor fique por aqui – e bem instalada.
Apesar da crise, este furacão solto na sociedade brasileira do Oiapoque ao Chuí, a recuperação da comédia, no Rio, é um sinal alentador, indício de inteligência do mercado. Possuímos, no ramo, uma imensa fortuna, não é aceitável que negligenciemos nosso patrimônio e desprezemos o melhor do nosso talento. No mundo ocidental, ao qual dizemos pertencer, a comédia se afirmou como instituição séria, respeitável, ao ponto de constituir, em todos os quadrantes, a base do mercado.
Portanto, se existe uma recuperação da comédia por aqui, o fato é para comemorar, é um alento. Ela retorna em boa hora, tomara que se instale. Resta fazermos de tudo para a abertura dos caminhos. Faz tempo a comédia esperneia, querendo voltar. Será que não está mais do que na hora de abraçar o processo, assinar a favor da causa, despir velhos preconceitos tacanhos?
Afinal, do que é mesmo que este texto está falando? Se fossemos fazer uma pequena história contemporânea da comédia brasileira, ela se deteria tristíssima ao pé do adorável Silveira Sampaio (1914-1964). Dá para sustentar o ponto de vista de que ele não teve herdeiros, depois de materializar a continuidade de uma linha forte de autores iniciada no século XIX. A bilha se quebrou.
Sim, ignoraríamos Millôr Fernandes (1923-2012). Ele pode ser classificado como comediógrafo, mas o seu furor produtivo não pode ser contido nesta nomenclatura. E mais: ele não se dedicou à construção de uma obra teatral cômica. Millôr foi um dos gênios da raça, capaz de se espraiar por múltiplos campos de atuação. É bem verdade, por conta dos aludidos preconceitos intelectuais, que os seus textos foram desprezados – mas este é um problema que escapa ao autor, contra o qual ele não pode lutar.
Em resumo, digamos que, mais ou menos a partir dos anos 1960, a História andou contra a comédia. Não, não há um raciocínio simples, de atribuir aos militares a hecatombe. A perseguição surgiu numa crise bem estranha, pouco estudada, do próprio teatro brasileiro, como se fosse um problema de família.
Na verdade, duas forças teatrais se irmanaram para desancar com os cômicos: o teatro dito sério, elevado, de pretensas densidades intelectuais, e o teatro político engajado, de defesa da revolução aqui e agora, inteiramente desprovido de humor. De um lado, um cortejo respeitável, inspirado por uma leitura francesa arbitrária de Aristóteles, do outro, a seriedade da salvação da humanidade.
O primeiro inimigo, sob diferentes encarnações, veio batendo na comédia desde o século XIX. Sua maior vítima ainda padece sangrando no limbo – o genial Artur Azevedo (1855-1908), o maior homem de teatro da história do país. O segundo inimigo, nascido nos anos 1950, ainda flertou com o riso em algumas investidas, mas mirou certeiro contra o riso de mercado, o riso pelo riso, como se ele fosse mercadoria capitalista perniciosa. Atitude desvairada, mas natural entre aqueles que desejam acabar com o regime capitalista – só que eles próprios faziam teatro dentro dele, o único lugar em que se pode fazer teatro profissional em liberdade.
Neste caso, a maior vítima foi o possível sucessor natural de Silveira Sampaio, um dramaturgo de notável habilidade técnica, impressionante criatividade, elevada cultura – João Bethencourt (1924-2006). Tornou-se pecado, então, num raciocínio sinuoso, praticar o teatro como realidade de mercado – como se apenas um tipo de teatro tivesse direito de existir. Ainda pouco estudado, pouco montado, João Bethencourt foi muito injustiçado, pois, além do talento natural, foi um estudioso, um grande conhecedor do cômico.
Pois a atual retomada da comédia no Rio de Janeiro, embora ainda tímida, pode muito bem vir a sinalizar uma recuperação do mercado carioca neste sentido histórico, de suspensão da demonização. Uma aura mais adulta – e mais inteligente – parece despontar.
A conjetura se torna obrigatória a partir de alguns sinais fortes. De saída, há a presença em cena de um dos melhores textos de João Bethencourt – Bonifácio Bilhões, de 1975. A direção é de Marcus Alvisi, cenários e figurinos de Claudio Tovar, o elenco reúne Fernando Ceylão, Flávia Monteiro e João Camargo. Observe-se que o autor, prolífico, trabalhador voraz, escreveu tantos textos que não deveria, afinal, ficar fora do palco nunca.
A casa acolhedora da montagem é um endereço inclinado ao gênero, o Teatro Vannucci. Mas, a rigor, não temos mais endereços teatrais nítidos, o que é uma pena. Ou não. Pois precisamente um outro texto alvissareiro, possível sinal alentador da retomada do mercado cômico, estreou no Teatro Ipanema, uma casa histórica da vanguarda e da experimentação – Nossas Mulheres, de Eric Assous.
A direção coube a um jovem diretor com história no teatro mais intelectualizado, André Paes Leme. Para completar o elenco de belas novas favoráveis à redenção do cômico, trata-se da comemoração dos 45 anos de carreira do excepcional ator que é Edwin Luisi, um dos maiores atores brasileiros. Responda sem pensar muito: é ou não é suficiente para projetar a comédia para um lugar nobre?
Neste caso, aliás, trata-se de um tipo de comédia mais requintada, espirituosa, um pouco distante do gosto nacional por farsas e jogos diretos. À dupla, junte-se o excelente Molière – Uma Comédia Musical, de Sabina Berman, direção de Diego Fortes, recém chegado de São Paulo, com nomes sensacionais na ficha técnica, tais como Renato Borghi, Matheus Nachtergale, Élcio Nogueira Seixas, Luciana Borghi.
E tem mais. O palco carioca conta agora com a presença da comédia em vários graus: um Millôr Fernandes, a delícia do trabalho de Heloísa Perissé e Maria Clara Gueiros em Loloucas, no Teatro dos Quatro, musicais cômicos aqui e ali, algumas cenas dedicadas ao improviso e à modalidade curiosa de sucesso, stand up comedy, apenas o velho show de humor repaginado.
Mas há um abismo para a consolidação do gênero. Seria necessário ter casas dedicadas ao exercício do cômico, especializadas, propícias para o surgimento de uma espiral de mercado. Não se trata apenas de deter o processo de fechamento de casas. Ou também isto.
Não se compreende porque a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella, não assume o conjunto dos teatros do Leblon – agora apenas as salas Marília Pêra e Fernanda Montenegro – antes que sejam desativados. Ali poderia ser instalado um centro carioca do teatro de comédia, casas que poderiam conquistar estabilidade de mercado e gerar um núcleo efetivo de emprego para a classe, além de se projetar como atração turística.
E mais. Muitas iniciativas são urgentes para a consolidação do mercado teatral carioca. É lamentável a omissão – a indiferença mesmo – do poder público. Na iniciativa privada, há um projeto em andamento verdadeiramente precioso, a Editora Cobogó, com uma política muito bem desenhada de publicação de livros de teatro. O tema é longo, fica para uma próxima coluna, temos irresistíveis livros de teatro lançados este ano, inclinados a ampliar a inteligência da arte.
Por ora, o tema para reflexão a destacar tem contorno simples: urge reabilitar a comédia no Rio de Janeiro, advogar a sua recuperação. Seria importante voltar a ter um Teatro Mesbla – e não se pode entender por qual razão as Lojas Americanas, empresa tão querida pelos cidadãos cariocas, demoliu o velho Mesbla e não presenteou a cidade com um sucessor da casa tradicional. Afinal, para o comércio e para os comerciantes, a arte do teatro, devotada à bela convivência, é um exercício fundamental. O protetorado seria muito bem visto, teria um sentido profundo para a saúde do Rio.
Bonifácio Bilhões
Teatro Vannucci – Rua Marquês de São Vicente, 52 – Gávea, Rio de Janeiro. Tel.: (21) 2274-7246
Gênero: Comédia
Classificação: 14 anos
Temporada: 02 de agosto a 30 de setembro
Horários: Quintas, sextas e sábados às 21h. Domingos às 20h
Ingressos: Quintas, sextas e domingos: R$70. Sábados: R$ 80
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