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O tempo não dá tempo: dá teatro

 
Otempo não dá tempo: passou o Natal, aterrissou o Ano Novo e o Carnaval está na soleira da porta. E o teatro? Muitas carpideiras cênicas esbravejam e lamentam viver em tempos sombrios de pura decadência da arte. Não sou deste bloco. Francamente, o ano de 2017, apesar de todos os revezes, deixou de herança um teatro denso, inquieto, multifacetado, fruto de muito trabalho e de dedicação. Não, não foi um ano podre. E 2018 promete.

 

Apesar dos pessimistas, pródigos em cantos elegíacos e lamentações, pessoalmente vi muita garra, muita força e muito trabalho de qualidade no palco que passou. Incontáveis vezes saí do teatro feliz. E foram tantas vezes, tantas e tantas, que a memória sombria das peças ruins acabou esfumada. Nos debates para as premiações, penso que esta riqueza tem aparecido e se afirmado.

 

Pois chegou o tempo de comemorar: esta semana teremos a oportunidade de conhecer os melhores do ano para o Prêmio Cesgranrio de Teatro. Os nomes vencedores serão anunciados hoje, terça-feira, na festa da premiação, sempre bela e agradável, no Copacabana Palace. Uma noite de confraternização – tão breve tempo – fará a alegria de muitos batalhadores da cena.

 

Detalhe: alguns destes batalhadores são novos protagonistas, chegaram ao palco há pouco tempo e já alçam a voz. Que bom. Além da grandeza dos veteranos, o teatro precisa de renovação, precisa da juventude. E precisa que a juventude seja apaixonada, disposta a brigar por sua arte e por seus valores sob a luz dos refletores. Antigamente, a vanguarda precisava matar e estripar os velhos para se afirmar. Vivemos um outro tempo.

 

Um dado impressionante em particular, na cena do ano passado, no segmento jovem, foi a expansão do teatro inspirado em temas afro-brasileiros e a projeção de atores negros no mercado. Que maravilha, vamos reconhecer. Afinal, nossos primeiros atores foram negros e mulatos, a profissão era aviltante para os brancos. Nada mais correto que eles ocupem o teatro que ajudaram a construir, de onde não deveriam ter se afastado nunca.

 

Agora, cenas de notável beleza estética, intensa adesão à grandeza humana, criatividade e sentido de oportunidade fazem o público pulsar sob um ritmo novo. São vários projetos bem sucedidos. Um bom exemplo? Josephine Baker, a Vênus Negra, singelo solo da atriz revelação do ano, Aline Deluna, que encerra no próximo fim de semana a segunda temporada no Teatro Maison de France. Singelo, aqui, não quer dizer frágil ou insignificante: a menina é um furacão, a partir de poucos recursos ela inventa um mundo e traz o sonho.

 

É um musical de bolso, delicado no seu tamanho e na qualidade de acabamento. Conta a história de vida de Josephine Baker, uma das grandes deusas do palco mundial no século XX. Com ficha técnica enxuta, direção precisa de Otavio Muller, o texto de Walter Daguerre conta como foi, para uma mulher negra, a conquista da cena internacional e do direito de encantar a todos com a sua sensibilidade. Vale não perder.

 

No canto oposto, o da comédia de texto, um outro espetáculo, estreado este ano no Rio após fazer carreira em São Paulo no ano passado, já anuncia o fim da temporada – mas deve ter ainda tempo para continuar. Pois trata-se de uma encenação muito bem resolvida, muito engraçada, pronta para cair no gosto do público e perdurar até depois do carnaval e o fim do verão.

 

A trama circula ao redor dos efeitos da ambição humana e dos preconceitos nossos de todo dia. Um casamento feliz, de Gerald Bitton e Michel Muniz, tradução/adaptação hábil de Flavio Marinho, pergunta com acidez até onde se pode ir por dinheiro e brinca com as resistências contra a liberdade de escolha de orientação sexual. Muito atual e bem na mosca.

 

Dirigida e estrelada por Eri Johnson, a peça apresenta um solteirão convicto e promíscuo instado a casar para herdar uma pequena fortuna deixada por uma tia carola. Para contornar o problema, pensa-se num casamento de conveniência com um amigo, um casamento gay de fachada. Renato Rabelo, o noivo escolhido, ameaça matar a plateia de tanto rir – assina um desempenho de alta voltagem criativa. A situação oferece combustível para vários equívocos e quiproquós. É realmente muito engraçada: sugere que o ser humano é um joguete indefeso, até mesmo nas tramas que concebe, à deriva nas oscilações trazidas pelo tempo.

 

Esta precariedade humana, revestida pelo reconhecimento da imensa necessidade de afeto que nos envolve a todos, é a nota vibrante de uma outra peça, O tempo não dá tempo, cuja noite de estreia de gala aconteceu na quinta-feira passada, dia 25, no Oi Futuro do Flamengo. É programa imperdível, mas especialmente para quem já foi mordido pelo bicho do teatro e bicho de teatro se tornou. Emocionante, vale levar o lenço.

 

Se as palavras se esquivam quando tentamos apreendê-las para fixar a definição de tempo, elas são eloquentes nesta montagem, mas de uma forma muito especial. Elas são surpreendentes. Elas são palavra-corpo, palavra-gesto, palavra-ritmo, palavra-ação, palavra-movimento, palavra-palpitação, palavra-emoção, respiração coletiva. Trazem a força do desejo de ser e de conviver, compartilhar, coexistir – e trazem uma fina lâmina da história do corpo na cena brasileira.

 

Sob a direção de Duda Maia, com dramaturgia de Gregorio Duvivier e criação colaborativa do elenco, trilha sonora original de Ricco Viana, o elenco de cinco atores materializa um painel humano sensível impressionante, em que a eloquência da carne preside o ato da fala e da contracena. O espetáculo se desloca pelo espaço e pela arquitetura do Oi Futuro, convida o público para dançar e participar.

 

O próprio elenco impõe um corte temporal majestoso na cena, graças à extensa variação de idades, os múltiplos corpos. Sob a regência da mestra sublime Angel Vianna, notável senhora do espaço e governante do tempo da plateia, se expõem e propõem corporeidades várias Oscar Saraiva, Marina Vianna, Juliana Linhares e Ciro Sales. É lindo de verdade, intenso, comovente. E o que se pode dizer ao tempo quando o tempo nos convida para contemplar as suas artes? O final nos leva aos balanços – o tempo de suspensão da pessoa no ar – balanços da infância e da História do Teatro Brasileiro (Cacilda Becker e Teatro Oficina). E nos leva às delicadas bolhas aéreas de sabão, a tentativa vã de passar um tempo impondo recortes frágeis ao espaço.

 

Sim, há um tempo ainda até o Carnaval – o tempo dá tempo. Aproveite, você que se encanta muito com a magia do teatro: antes da solidão festiva da dança na rua, esta bruma que vai te envolver no tempo próximo carnavalesco, corra ao Oi Futuro Flamengo e deslumbre-se. Lá você vai mergulhar num tempo de teatro generoso, um carinho reconfortante na alma triste de hoje de nós todos.

 

Para você torcer hoje, no Prêmio de Teatro Cesgranrio 2017, segue a lista completa dos indicados:

 
Melhor Figurino

João Marcelino e Carol Lobato por “Hamlet – Som e Fúria”

Kika Lopes e Heloisa Stockler por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Marcelo Marques e Carlos Pétit por “Guanabara Canibal”

Marcelo Marques por “Janis”

Marcelo Olinto por “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Mauro Leite por “Estes Fantasmas!”

 
Melhor Cenografia

Aurora dos Campos por “Tom na Fazenda”

Carla Berri e Paulo de Moraes por “Hamlet – Som e Fúria”

Gringo Cardia por “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Lídia Kosovski por “Tripas”

Marcelo Marques e Marco André Nunes por “Guanabara Canibal”

Sérgio Marimba por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

 
Melhor Iluminação

Bernardo Lorga por “A Festa de Aniversário”

Maneco Quinderé por “Hamlet – Som e Fúria”

Paulo César Medeiros por “O Jornal”

Renato Machado por “Guanabara Canibal”

Renato Machado por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Tomás Ribas por “Tom na Fazenda”

 
Categoria Especial

Companhia dos Atores e Ivan Sugahara pela manutenção da Sede das Cias

Dr Morris pela trilha sonora de “Programa Pentesiléia: Treinamento Para Batalha Final”

Lu Brites pela preparação corporal de “Tom na Fazenda”

Renato Vieira pela coreografia e direção de movimento de “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Ricco Viana pela trilha sonora original de “Hamlet – Som e Fúria”

Roberto Guimarães pela sua atuação como programador do Teatro Oi Futuro

 
Melhor Texto Nacional Inédito

Braulio Tavares por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Grace Passô por “Mata Teu Pai”

Gustavo Gasparani por “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Julia Spadaccini por “Euforia”

Marcia Zanelatto por “ELA”

Pedro Kosovski por “Guanabara Canibal”

 
Melhor Ator

Armando Babaioff por “Tom na Fazenda”

Gustavo Vaz por “Tom na Fazenda”

Mario Borges por “Doce Pássaro da Juventude”

Michel Blois por “Euforia”

Rafael Primot por “Love, Love, Love”

Ricardo Kosovski por “Tripas”

 
Melhor Ator em Teatro Musical

Adrén Alves por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Alfredo Del Penho por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Édio Nunes por “Kid Morengueira – Olha o breque”

Gustavo Gasparani por “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Hugo Bonemer por “Ayrton Senna, O Musical”

Renato Luciano por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

 

Melhor Atriz

Andrea Beltrão por “Antígona”

Andrea Dantas por “A Festa de Aniversário”

Débora Falabella por “Love, Love, Love”

Guida Vianna por “Agosto”

Isabel Cavalcanti por “A Sala Laranja – No Jardim de Infância”

Yara de Novaes por “Love, Love, Love”

 
Melhor Atriz em Teatro Musical

Aline Deluna por “Josephine Baker – A Vênus Negra”

Carol Fazu por “Janis”

Juliane Bodini por “Dançando no Escuro”

Soraya Ravenle por “Puro Ney – Um Tributo a Ney Matogrosso”

Stella Maria Rodrigues por “Emilinha”

 
Melhor Direção

Gustavo Gasparani por “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Luiz Carlos Vasconcelos por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Marco André Nunes por “Guanabara Canibal”

Paulo de Moraes por “Hamlet – Som e Fúria”

Pedro Kosovski por “Tripas”

Rodrigo Portella por “Tom na Fazenda”

 
Melhor Direção Musical

Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”

Dany Roland por “Josephine Baker – A Vênus Negra”

João Calado por “Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba”

Marcelo Alonso Neves por “Dançando no Escuro”

Ricco Viana por “Janis”

 
Melhor Espetáculo

Hamlet – Som e Fúria

O Jornal

Suassuna – O Auto do Reino do Sol

Tom na Fazenda

Tripas

Zeca Pagodinho, Uma História de Amor ao Samba