Chuva de ideias, torrente de livros
As ideias despencam dos céus sobre as nossas cabeças. Portanto, qualquer um pode ser atingido. A pessoa está distraída, olhando para ontem, vendo passarinho verde e, de súbito, uma ideia tomba com violência sobre o seu indefeso ser. Neste raciocínio, uma constatação: as ideias são de todos e de ninguém. Andam soltas pelo ar.
Com certeza, este não é o direito autoral do nosso tempo, zeloso por cifras, propriedades e autorias. Mas, ressalte-se, nem sempre foi assim e provavelmente esta situação explica bastante todas as controvérsias a respeito de certos escritores, como Shakespeare. São muitos os que perguntam se notáveis autores passados foram com certeza autores dos textos que lhes são atribuídos. Alguns vão até mais longe: ousam sustentar, a respeito de certas figuras, que elas não existiram – Shakespeare inclusive. Seriam, como os textos, pura ficção. O autor verdadeiro estaria perdido nas dobras do tempo, apagado para sempre, como se fosse um anônimo escultor de um ateliê medieval.
Compreende-se: mal existiam os livros e os leitores. A sociedade pensava, mas era analfabeta.Nem sombra de empresas arrecadadoras de direitos autorais! Já no século XVIII, avançado nas ideias, povoado por florescentes bibliotecas, fiquei atônita ao descobrir que Bocage (1765-1805) teve à sua cabeceira na hora da morte o infeliz padre José Agostinho de Macedo (1761-1831). Apesar da batina, ele seria bem capaz de roubar ou destruir versos e escritos do grande poeta. O padre foi uma figura aterradora em matéria de transgressão.
As suas aventuras são espantosas – lutou contra as ideias liberais, contra a Independência do Brasil, roubou livros preciosos de bibliotecas e não hesitaria em roubar ideias. Uma pergunta incômoda brota desta cena. Nela, o saber humano aparece bem evanescente, com riscos certos, bem objetivos mesmo, de roubo ou de supressão. Leve, o pensamento se esvai, volátil, e, diante da precariedade do pensamento, uma pergunta de extrema importância: como é que o saber teatral, oral, verbal, prático, consegue ser preservado, consegue sobreviver?
Nos tempos antigos, quando a classe teatral era uma corja de amaldiçoados andarilhos, gentes desqualificadas, bandos de poucas cabeças, uma classe estruturada principalmente ao redor de umas poucas famílias, tudo era fácil, claro. O saber era de ouvido e de boca. As coxias eram minúsculas. As cabeças pensantes, líderes das pobres companhias, eram consagradas apenas dentro da pouca nobreza da classe, excomungada até o século XVIII.
Mas o tempo passou, a população cresceu. Num país como o Brasil, mal conhecemos a classe teatral de nossa própria cidade, quando a cidade é grande o bastante para ter classe. Conhecer a classe dedicada à arte espalhada por todo o país é uma impossibilidade. Neste novo mundo, como a sabedoria da classe e da arte se preserva? Graças ao milagre dos livros, livros à mão cheia. O que dizer? “Oh! Bendito o que semeia livros à mão cheia e manda o povo pensar! O livro, caindo n’alma é germe – que faz a palma, é chuva – que faz o mar!” A poesia em forma de prece é de Castro Alves, grande amante do teatro e dos livros, e dá conta, certeira, do fato.
Pois se nada é feito neste país a favor do teatro, se não existe política de Estado a favor da arte, pois os governantes são mesquinhos burocratas de mente tacanha, se não existe uma mobilização decisiva da própria classe teatral, perdida entre impulsos políticos e afetivos improdutivos, ao menos temos editores. E livros. Cada vez mais livros, graças aos céus. Há algo decisivo a favor da preservação e da difusão do pensamento a respeito da arte teatral.
Vai longe – alvíssaras – o tempo em que se dizia por aqui que era mau negócio publicar livros de teatro, pois, segundo os agourentos de plantão, eles não vendiam. Absurdo, crime contra as ideias teatrais. Os livros de teatro vendem. E a prova está por toda a parte. Eles são, hoje, de diferentes naturezas. Além do formato antigo mais tradicional, de publicação de peças, existem hoje diversos nichos teatrais traduzidos em letras. Há nas estantes tanto textos dedicados aos temas da formação de atores e às técnicas da expressividade, como à História do Teatro, à História de Atores, às biografias e aos empreendimentos teatrais, à Teoria do Teatro e do Drama e às técnicas espetaculares da cena.
A rigor, são apenas quatro editoras muito ativas, atentas e eficientes, interessadas nos temas teatrais. A mais antiga e com a estante de lançamentos mais extensa é a Perspectiva, paulista, conduzida com sensibilidade pelo Professor Doutor Jacó Guinsburg. Com uma estante mais variada e um foco mais fechado, há a carioca Sete Letras. Mais novas, mas nem por isto menos ativas – aliás, a rigor, são as mais ativas na devoção ao teatro – se destacam a Giostri e a Cobogó.
A última, carioca, jovem e dinâmica, merece palavras especiais por sua dedicação intensa à arte naquele segmento mais tradicional – a dramaturgia – que, curiosamente, tem sido o menos contemplado em épocas recentes. Sinal dos tempos, paira no ar a sensação de que a dramaturgia, o texto convencional das peças, saiu de moda, a favor da performance e de um tipo teatral de instalação cênica palpitante. Por isto, a velha mania de publicar as peças desapareceu.
Pois a Cobogó não se sentiu tocada pelo clima destes tempos agitados e se dedicou, inclusive, na sua Coleção Dramaturgia, aos dramaturgos do nosso momento, os jovens autores de hoje que tendem a ser relegados ao fundo da cena. A estante da editora, orientada para o campo das artes, tem como principal foco o teatro e, na prateleira de teatro, a dramaturgia de longe é o maior continente.
O lançamento mais recente da editora, contudo, é, digamos, um ornitorrinco, um bicho raro de se ver por aqui. É o volume Teatro da Vertigem – um livro de inventário crítico-artístico do grupo Vertigem, de São Paulo, organizado pela pesquisadora Silvia Fernandes. A obra reúne ensaios, textos críticos e fotografias, um vasto material de pesquisa dedicado às montagens da equipe.
Segundo a editora, trata-se da maior compilação de registros de montagens do grupo já feita. Deve ser, ao que tudo indica, senão a maior uma das maiores obras documentais dedicadas a um grupo teatral brasileiro. A obra marca a comemoração dos 25 anos do Teatro da Vertigem.
Mas não há só esta boa notícia, o amante de teatro tem motivos de sobra para comemorar a temporada letrada patrocinada pelas editoras. Nem só de vanguarda e de invenção vivem as rotativas editoriais. Por iniciativa da Editora Perspectiva, está nas livrarias um denso volume dedicado ao estudo da arte do ator Antonio Fagundes, assinado pela pesquisadora Rosangela Patriota. Ainda não li o meu, mas posso assegurar a qualidade da obra, após uma rápida passada de olhos.
Sim, trata-se de obra da academia, não é uma publicação de fontes ou um esforço de celebração. Natural, não? Pois Fagundes é o grande ator do teatro moderno brasileiro moreno. O que significa a definição? Bom, ela é minha. Vamos ler o livro e ver, nele, como estão traçadas as linhas de dispersão do teatro moderno brasileiro pós-TBC. De saída, devo frisar que a inteligência da pesquisa de Patriota faz o texto caminhar em busca do pensamento e, assim, cuidar de analisar a fina relação entre artista e arte, biografia e História.
Bela notícia, não? Ter um livro para ler sobre Antonio Fagundes impregnado por um pensamento a respeito do ato de escrever sobre a dinâmica desta arte tão necessária para a saúde social, o teatro. No entanto, as maravilhas não param por aí: no dia 12 de setembro o teatro carioca estará em festa para receber o livro de Daniel Schenker dedicado ao Teatro dos 4. Anote já na agenda, para não perder por nada. O livro recebeu um belo título – Teatro dos 4 – A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno.
Muito justamente, o lançamento será no Teatro dos 4, no Shopping da Gávea, claro. E preparem-se: o texto faz justiça àquela paixão primeira que o teatro brasileiro precisa curtir mais e mais: é um livro de História do Teatro! Vale dizer, um livro em que as grandes ideias a respeito do tempo buscam desvelar a trajetória da cena. Sob o foco, está a última tentativa para institucionalizar o teatro moderno na cena carioca. E brasileira. Em algum grau, será interessante ter material para pensar a respeito da Companhia Estável de Repertório, liderada por Fagundes, em comparação com o Teatro dos 4, último sonho de Sergio Britto.
A conclusão deste cenário é bem simples. Sim, como se fossem meteoros abstratos, as ideias caem do céu. Captadas por uma gente atenta, elas se tornam a matéria dos livros e despontam como guias para as cabeças teatrais por aqui. Apesar de as ideias permanecerem voláteis no ar, os seus receptores têm menos chances de ficar no anonimato ou de serem roubados, como no tempo de Bocage e de seus manuscritos. Elas circulam nos livros! Que a chuva de ideias se torne mais e mais forte, gere uma tempestade inclemente de livros, é tudo o que podemos desejar, para o bem do teatro e, consequentemente, de toda a nação, de todos nós…
Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!
ALVES, C., Espumas Flutuantes, 1870.
Lançamento do livro
Teatro dos 4 – A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno. Daniel Schenker.
Editora 7 Letras
Data: 12 de setembro, a partir das 19h.
Local: Teatro dos 4, Shopping da Gávea.
Rua Marques de São Vicente, 54. Gávea, Rio de Janeiro.
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