Sonhar com política: a revolução do presente
Vou confessar um segredo terrível: gosto de política. Desconfio de um contágio prematuro irreversível na infância, do qual não me recuperei. O meu pai era cabo eleitoral no subúrbio, cismava de incentivar os meus supostos dotes precoces para a redação e a oratória. Assim, aos nove anos me tornei locutora de comitê eleitoral e também aquela menina chatinha ocupada em recitar versos e discursar no palanque em louvor à pátria antes do candidato tomar a palavra.
Sim, tomava-se a palavra. Discursar era um ato de verter belas palavras vindas de uma fonte borbulhante de inspiração. Se a política é, em razoável grau, puro jogo de afeto e sedução, outrora tais sentimentos surgiam na fala para expor uma arte. A arte de demonstrar algum entendimento das necessidades sociais e, claro, de revelar capacidade para gerenciar a solução dos males inventariados.
O mundo mudou. A política se fez outra. Por isto sinto certo mal estar diante da política pós-dramática do nosso tempo, em que a ação verbal virou confronto pessoal – o jogo afetivo não é mais para levar o eleitor a acreditar na possível solução dos problemas, nem para expor problemas ou programas para enfrentá-los.
Não há visão de problema nenhum, mas aliciamento de turba. A palavra pretende cegar o eleitor. O jogo afetivo do discurso serve à sedução mais bruta, imediata, no qual o político desanca os rivais para dourar-se como muso. Embate de personas indigentes. Chatíssimo.
No entanto, sigo contaminada pela tal doença antiga, a meu ver incurável, e, assim, peço a palavra. Senhor Presidente, quero falar. E falo deixando transbordar uma vontade antiga, uma vontade que eu calei diante desta política mesquinha que anda menosprezando o espírito cidadão. Outrora, como disse, o político fazia o diagnóstico da alma e do corpo do povo. E com a sua alma e seu corpo na mão, falava das hipóteses de tratamento, até mesmo de cura. Era um ato paternalista, de cima para baixo, mas era um ato.
Hoje, este ato de auscultar a existência cidadã ao redor parece bem rarefeito. Mas aconteceu nesta eleição, sim, aconteceu. Aconteceu o bastante para levar ao poder um homem sincero, despojado, por vezes até brutal, impulsivo como os homens comuns das ruas, vinculado aos anseios das ruas, dos homens comuns.
Nesta relação de contiguidade um fato novo aconteceu, o contágio do político pelo clamor da rua. Um desejo rascante de mudar o país subiu do chão para o palanque. Uma exalação muito diferente daquela da velha ordem política, em que se ouvia, se aplaudia e aclamava o candidato, conduziu a um diagnóstico. A proximidade, contudo, não trouxe uma visão plena de mundo: entendo que a extensão dos problemas de hoje é de tal ordem que algo precisa ser feito para ampliar as linhas traçadas no diagnóstico. E por isto resolvi soltar o verbo aqui.
Senhor Presidente, não haverá qualquer solução positiva da crise abissal da sociedade brasileira se não for iniciada, de saída, uma grande revolução, a revolução da educação, a revolução escolar. A revolução é sua. É fundamental reverter a decadência, o estado de ruína, da escola brasileira. Esta hecatombe, responsável pela deterioração de todo o tecido social, só poderá ser contida se, de saída, for proclamada a hipervalorização do professor. Mas não é valorização retórica, de elogios e palavras ocas, é valorização objetiva, direta, concreta.
Assim, o primeiro ato sonante urgente transparece claro: elevar os salários do magistério aos níveis máximos possíveis. De imediato, de profissão desprezada e humilde, o magistério deve se tornar a ocupação mais nobre, cobiçada e estimada da república brasileira, o lugar de eleição dos mais capazes, aqueles que sonham – e amam – ver a formação de um ser humano, escolhem se dedicar a conquistar o melhor potencial das novas gerações.
Ao lado dos professores valorizados, as escolas precisam surgir como lugares do saber, equipadas, bem instaladas, confortáveis. O Brasil precisa reconhecer as escolas como lugares em sintonia com o ritmo do mundo atual, portanto, as escolas precisam ser instituições culturais e não simples espaços eventuais de treino ou depósito de estudantes.
Por isto, importa ampliar ao máximo a presença da cultura na educação, quer dizer, o brasileiro precisa sair da escola com um perfil de cidadão moderno, não apenas escolarizado, mas conhecedor da fortuna mundial da arte e da cultura. Precisa conhecer teatro, música, dança, artes plásticas. Precisa saber a história e o presente da capacidade inventiva do nosso país.
Mas não é só. Vivemos aqui numa sociedade canhestra que nos deseja medíocres, em que o espírito criativo luta para existir, não se instala em liberdade. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que o povo brasileiro se destaca por sua impressionante capacidade criativa e de invenção, mas não recebe nenhum apoio eficiente para isto.
O brasileiro inventou a maior festa popular do mundo, lindíssima, com uma música de extrema riqueza cultural – e fez tudo isto correndo da polícia, enfrentando o desprezo das elites, a segregação, o preconceito, a cegueira da censura e a miséria. O brasileiro tem uma requintada capacidade de extrair poesia da fome, na adversidade completa.
Em nosso tempo, porém, não se pode mais admitir este limite para a cidadania, o tempo para viver este obscurantismo acabou, a era da fome acabou. O Brasil não pode esperar mais: ou o país é que se acaba. É preciso reinventar o Brasil, trazer a força criativa livre para a ordem natural dos dias, acionar com ela nosso imenso potencial de invenção.
Neste sentido, a cultura, ao lado da educação, precisa ser vista como prioridade. O brasileiro precisa de muito teatro, este CTI da alma, oficina da sensibilidade, para ficar no campo cujas coordenadas conheço com maior exatidão. Assim, programas de apoio e de difusão do teatro precisam ser formulados, apoiados e programados. Possuímos uma lista considerável de autores de teatro históricos, a dramaturgia brasileira hoje vive um grande momento de expansão. São valores que se perdem sem manter o diálogo necessário com a sociedade.
É essencial incentivar a formação de grupos e companhias de teatro por todas as cidades, estimular a organização de redes teatrais locais, estaduais, regionais e nacionais. Não existe qualquer outro veículo tão eficiente para estabelecer a visão de comunidade, pertencimento, de sintonia social. O teatro registra, mais do que qualquer outra arte, a integridade do ser humano. Em cena, a humanidade se afirma como expressão sensível absoluta, total. O palco é fala, movimento, ação, sentimento, emoção e razão. Para que uma peça esteja no palco, inúmeros saberes precisam ser acionados e desenvolvidos.
A arte teatral é uma grande usina de invenção humana. Não existiu nunca qualquer sociedade de elevada expressão política, econômica, tecnológica ou cultural que não tivesse um teatro forte. Exemplos recentes são bem eloquentes – o caso da Coréia desponta como decisivo para fechar a discussão.
Este texto, portanto, tem objetivo simples e endereço certo: o novo presidente da República Brasileira recém eleito, Jair Bolsonaro, precisa ser sensibilizado para a função política estratégica da cultura, um patrimônio coletivo valioso, sempre desprezado. Importa alertá-lo para o fato de que muito do atraso nacional existe em função da precariedade da escola brasileira e do papel apagado sempre atribuído à cultura no país.
Nunca, em nenhum governo, o Brasil contou com um programa cultural denso à altura do potencial e da inventividade do povo brasileiro. O pouco que temos, que não chega a materializar uma política de Estado, herdamos de dois raros momentos históricos.
Sob o Império, no reinado de D. Pedro II, houve um esforço imperial, de gabinete, para patrocinar artistas e intelectuais, mas restringindo-os à vida de pensionistas do trono. E no governo Getúlio Vargas (1930-1945), na obsessão de modernizar o país e impulsionar a força da vida urbana, a gestão Gustavo Capanema formulou um projeto, de curta duração, de expansão das artes com o patrocínio direto do Estado.
Todos os demais momentos foram pontuais, de impacto residual. O saldo é muito pequeno, instável, volúvel ao ponto de viabilizar a destruição de um grande monumento do país, com o incêndio do Museu Nacional, episódio que evidencia as falhas profundas da gestão da cultura e da educação no país.
O incêndio do Museu Nacional é inadmissível – mas é fato. E é eloquente, fala por si. Chegou a hora de liquidar qualquer risco de incêndio da cultura nacional, para proclamar a grandeza do povo deste país.
Chegou o momento, então, de fazer a grande revolução brasileira. A revolução do saber e da criação. A revolução que tem por base a escola, o teatro, o museu, o centro cultural. Só assim, seguindo uma política verdadeiramente renovada, longe das raposas, das ratazanas e dos abutres da alma nacional, se poderá conduzir o país – quer dizer, o brasileiro – para fora do pântano em que estamos encerrados.
O problema não é apenas erguer fábricas, abrir frentes de trabalho, sanear as finanças, equilibrar as contas, espanar a estranha estrutura perdulária do Estado, expurgar sanguessugas e despautérios históricos. Medidas como a revisão inteligente da Lei Roaunet, realizada em diálogo com especialistas e representantes das categorias envolvidas, contam muito para o processo.
Mas urge ir mais longe. Precisamos de uma alma nacional repaginada, mais democrática, mais ética, mais adulta. Vivemos até hoje num país menino, um velho país menino, pois só um país menino pode se proclamar como país do futuro. O futuro chegou, é hora de crescer, ficar adulto – com ele, deve chegar uma nova forma de fazer política.
Uma política em que o povo esteja não apenas na base, para ser manipulado, usado e iludido, mas esteja no centro e no fim, consciente de sua missão histórica. Sim, cada um nasce com uma missão histórica. Mesmo os países. A do Brasil, país tão criativo, deve ser a de ajudar a reinventar o mundo: para isto, a política deve ser posta abaixo, se tornar uma nova forma de arte. Uma arte capaz de libertar a escola e a cultura da escravidão hedionda que nos manteve sempre como cidadãos menores, infantis, cidadãos do não saber, da invenção anônima desperdiçada. Uma nova política, para um novo Brasil é um clamor novo, das ruas: importa ouvir e agir.
Hino Nacional Brasileiro
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos
Brilhou no céu da pátria nesse instante
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte
Em teu seio, ó liberdade
Desafia o nosso peito a própria morte!
Ó Pátria amada
Idolatrada
Salve! Salve!
Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce
Se em teu formoso céu, risonho e límpido
A imagem do Cruzeiro resplandece
Gigante pela própria natureza
És belo, és forte, impávido colosso
E o teu futuro espelha essa grandeza
Terra adorada
Entre outras mil
És tu, Brasil
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil
Pátria amada
Brasil!
II
Deitado eternamente em berço esplêndido
Ao som do mar e à luz do céu profundo
Fulguras, ó Brasil, florão da América
Iluminado ao sol do Novo Mundo!
Do que a terra, mais garrida
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida no teu seio mais amores
Ó Pátria amada
Idolatrada
Salve! Salve!
Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro dessa flâmula
Paz no futuro e glória no passado
Mas, se ergues da justiça a clava forte
Verás que um filho teu não foge à luta
Nem teme, quem te adora, a própria morte
Terra adorada
Entre outras mil
És tu, Brasil
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil
Pátria amada
Brasil!
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