Boechat, o teatro e o pensamento livre
“A impressão parece comum a muita gente: 2019 começou com o pé esquerdo. Se continuar nesta batida, vai ser um ano-não, vai ser difícil sobrar algo para comemorar a passagem para 2020. Ontem, comecei a escrever a coluna e joguei o texto fora, fui surpreendida pela notícia da morte de Ricardo Boechat (1952-2019).
Não fomos exatamente colegas de redação, apesar de termos a mesma idade e termos sido contemporâneos na imprensa. Ficamos próximos depois, graças a um casal de amigos cuja casa frequentávamos e graças ao fato de eu acompanhar – e adorar – o seu trabalho. Os encontros sociais com Boechat viravam noites inesquecíveis, com sua alegria, suas histórias, sua verve, sua inteligência refinada. Ele era de uma irreverência surpreendente, sempre um clarão nas trevas.
Entendo, aliás, como toda a imprensa brasileira parece entender, que ele foi uma revolução no jornalismo nacional, inventor de um jornalismo cidadão avassalador. Percebi esta condição faz tempo, na praça pública. Em viagens a trabalho, para Curitiba, Porto Alegre, Recife e João Pessoa, descobri que Ricardo Boechat era líder natural dos taxistas, ao menos daqueles preocupados em participar da gerência da vida.
Foi uma surpresa e tanto verificar de forma espontânea a sua imensa popularidade. Um jornalista que se transformou em porta-voz da alma mais inquieta do país, de forma fulminante, por expressar os anseios e demandas correntes no coração do povo… Mais de uma vez o motorista pediu licença para ligar o rádio e ouvi-lo, como se fosse um ritual sagrado. Mais de uma vez a percepção do meu sotaque carioca levou o assunto ao rei do Rio, exatamente o que ele era. Pois a sua liberdade de expressão soava, no interior do país, como coisa de carioca.
Não poderia deixar de registrar uma homenagem discreta a esta pessoa tão especial. Aprendi muito na leitura dos livros, mas aprendi com ele, ao vivo e com muitas risadas, uma prática de vida revolucionária. Diante de sua irreverência, demolidora, consolidei a certeza a respeito da importância absoluta do pensamento livre, emancipado, como razão de ser da existência.
E mais: vi sempre na sua fala o alcance do pensamento livre para tentar entender o Brasil, para tentar pensar as possibilidades de solução para o país. Os seus comentários ácidos a respeito dos políticos e da política sugeriam o quanto a sensibilidade cidadã precisa caminhar por aqui para esboçar uma força de vida que possa ser chamada de pátria.
No fundo, eu defendo a ideia de que o teatro poderia participar desta força transformadora, se os artistas tivessem a consciência do seu poder, vislumbrassem a importância das mudanças que podem ajudar a realizar, geradas a partir do pensamento livre. Mas desconfio que boa parte da classe está distante disto, necessita ser subserviente ou encontrar algum senhor para servir, sobretudo senhores para os seus cérebros. A senhoria é inimiga do pensamento livre.
Compreende-se este lado subalterno, servil, escravo, este limite rígido para impedir o gozo de uma cabeça autônoma. A arte do teatro apresenta necessidades materiais imediatas, potentes, incontornáveis. É uma arte cara, de acontecência coletiva, pública. Portanto, ela sofre com dois limites objetivos: o seu custo material concreto e o seu custo simbólico. Este último nem sempre é percebido – significa que o teatro precisa estar de acordo com um número razoável de pessoas, e precisa disto para ter público, deve sintonizar com o senso comum e a opinião pública. Logo, servidão material e servidão simbólica.
De certa forma, o teatro não pode ser a obra radical, demolidora, o pensamento do futuro. No teatro, não tem Van Gogh. O seu vínculo com o aqui e o agora é questão de sobrevivência. Mas, para ter uma missão humana efetiva, radical, ele não pode ser um vassalo rasteiro do poder – do poder da grana, das empresas, do poder público, da imprensa, dos artistas consagrados, das instituições do Estado. Um grande desafio. O caminho da liberdade é difícil, pois o teatro que conhecemos é uma arte recente, muito jovem…
Não, não adianta dizer que o teatro vem da Grécia ou das rodas de bate-papo nas clareiras das cavernas. O nosso teatro é outra coisa, é profissional, é fato de mercado. Ele começou a surgir no fim da Idade Média – ontem, portanto. E só se constituiu de verdade quando se impôs como mercado público, livre, dependente da bilheteria, a partir do século XVIII. No século XIX a prática se consolidou, o palco pode se libertar dos Mecenas e dos patronatos, para virar uma transação comercial entre o artista e o seu público.
O apoio isento do Estado, sonho de muito artista, é uma prática rara. Alguma limitação ou obediência precisa surgir como retribuição ao financiamento. Aquele artista medieval e renascentista anterior ao mercado estável era um pedinte, um suplicante. Shakespeare e Molière foram suplicantes, vassalos dos nobres e reis. Malditos, mal vistos, mal quistos, eles tinham, contudo, esta riqueza cintilante, cabeças livres.
Neste jogo, os fatos não mentem, revelam que o teatro, aqui mais do que em qualquer outro lugar, ainda é uma criança e uma criança que não aprendeu a se amar, hesita diante dos poderes de mando, diante das autoridades do momento, por não ter a sua autonomia finamente instituída. Não se respeita, não sabe de si. Não é pouca coisa. Diz respeito à própria sobrevivência da arte.
Por vezes a classe louva o político tal ou qual e esquece que – por mais paidapátria que ele possa ser – trata-se apenas de um político. O que move o político é um projeto de poder quase sempre pessoal, sem transcendência. Os estadistas são raros, exceções. A ambição do político é o poder. A mordaça poderá vir a ser a sua escolha,logo ali adiante, se o artista não apresentar uma partitura afinada. Ou – se a mordaça não for de bom tom – a chave do cofre pode ser perdida.
A autonomia diz respeito também à sobrevivência no sentido de remuneração, realidade imediata do mercado, preço da obra de arte, salários. Até um certo ponto da carreira, o artista abaixa a cabeça, engole o sapo e dá graças a D’ por ter emprego, um naco de pão, um prato de comida. A arte aparece como prática infantil porque os seus trabalhadores se submetem às imposições externas sem choro ou resmungo e sem inteligência crítica. Quando se tornam famosos, contudo, com frequência viram crianças mimadas, pequenos déspotas cheios de exigências; ao acumular fortunas, com remunerações estratosféricas, se tornam marajás da arte sem perspectivas sociais. É comum o artista de sucesso não investir na arte.
O debate é denso, vai longe. Esta semana foi iniciada também com a notícia de que uma greve recente, na Broadway, permitiu aos artistas o reconhecimento de um direito novo. A vitória consiste em, para os que participam do processo de criação de uma montagem, receber um percentual por esta coautoria. O que isto significa?
É simples. Laboratórios e encontros criativos, salas de ensaio como espaço de concepção coletiva são instâncias autorais de produção/criação, portanto devem ser remuneradas com a participação nos lucros, reza a vitória dos sindicalistas americanos. A função do artista foi alargada, para além da definição técnica restrita. Imagine a repercussão deste debate na cena brasileira atual, em que a dramaturgia se tornou uma empresa coletiva frequente, para falar apenas de uma das etapas da criação? E depois da estreia, o ator nacional vira apenas ator, sem ouros e sem louros?
Não vou ousar dizer que existe um pensamento livre, independente, no teatro americano. Lá o palco segue um outro ritmo, o mercado é soberano. E eu não conheço, infelizmente, com profundidade, a cena de lá. Mas o pensamento teatral em si por lá é livre – tanto que as ações políticas podem ser conduzidas com sucesso, com diálogo, objetividade, com resultados positivos. A arte luta pela arte, sem atalhos ou constrangimentos.
Uma das falas mais impressionantes de Ricardo Boechat que eu ouvi surpresa, em papos sociais, foi a sua afirmação de que o jogo político institucional brasileiro estava podre, gangrenado. Demolidor, ele argumentava que não adiantaria nada escolher gente de bem para eleger, o melhor no meio do pior, pois as maçãs podres, no cesto, sempre levam a outra para a podridão. O pensamento livre significava ver fundo a decadência da política nacional.
A observação ficou martelando na minha cabeça, trouxe uma pergunta incômoda. Gostaria de estender o pensamento para o tema social. A pergunta é a respeito do poder efetivo do teatro para mudar visões de mundo, formas de entendimento da vida social, formas dos seres em sociedade. Existe isto? Há este poder? Não estou falando de informação, Google, Wikipédia, jornal e dicionário.
Em lugar de fazer denúncias, reportagens, registros, mimetizando o procedimento da imprensa e da academia, dos partidos políticos, o teatro deveria por em xeque esta ideia de saber, fundada na constatação dos fatos, na busca de verdades imediatas. A via alternativa seria a favor da ideia de pensar, analisar os entraves para a mudança dominantes nos indivíduos. Quer dizer, em lugar de apresentar uma verdade, sempre esvaziada pelo jogo estético, o palco devia ensinar a fazer perguntas. Até porque o tempo da arte, do teatro, é outro, não é o tempo da análise crítica e da reflexão. Diz respeito muito mais à estrutura da percepção.
Atenção, não estou lançando sementes de paina no vazio, este debate é, hoje, visceral no teatro, mesmo que as respostas possam ser frágeis ou evasivas. Numa estreia recente que ainda não fui ver, Auto Eus – A Ditadura da Aprovação Social, a atriz Adriana Perin buscou pesquisar, ao lado da diretora Raíssa Venâncio e da dramaturga Paula Vilela, as pluralidades e as prisões do ser humano, para, ao que parece, propor aceitar a condição vulnerável de ser real, inteiro.
Portanto, está aí, em pauta e em cena, este redemoinho capaz de arrastar a todos, a definição do poder essencial inerente ao ser humano. Em linguagem direta, resumida, numa frase simples, dá para dizer – por que somos submissos? Por que aceitamos cangalhas mentais? A urgência á clara, precisamos ter cabeças livres e encarar a vida de frente.
A incapacidade de ver esta necessidade revela muito da cegueira brasileira, a dificuldade brasileira para pensar e, logo, optar pela vida civilizada e democrática. Esta era a represa imaginária que Boechat lutava para romper, o segredo do seu sucesso. De certa forma, há um limite baixo por aqui contra este exercício, um convite permanente ao despensamento. Assim, de certa forma, em termos simbólicos, o Brasil assassinou Boechat. Somos a pátria do despensamento. É alarmante.
Não é uma realidade distante da sofrida classe teatral, incapaz de se articular como força política em si, se tornar consciente de sua função e de sua importância na sociedade. A classe teatral sequer consegue ver a importância do mercado de arte, uma prática saudável e livre, essencial para o exercício mesmo da arte. Onde se deseja chegar? É como se um teatro de catequese, por exemplo, pudesse ser fiel a César e a Dioniso.
Enfim, é duro – o palco se deixa arrastar pela volúpia dos políticos e de suas cartilhas, pontuais e imediatas. Aqui, infelizmente, o teatro, ao recusar ter ousadia no pensamento, se mata todos os dias, em cada palco em que acontece, como se fosse um veículo sabotado para não voar. O Brasil não deseja perder o seu lugar nas trevas do mundo, luta por isto. Apesar da palpitação social, o bloqueio contrário é forte. O medo é que se tenha em 2019 um ano submerso em visões tacanhas, um ano sombrio, para um palco acovardado chamar de seu. Um ano sem Boechat, enfim.
AUTO EUS
A Ditadura da Aprovação Social
Temporada: de 6 de fevereiro a 20 de março – terça e quarta, às 21h
Local: Teatro Poeira – Rua São João Batista 104, Botafogo. Tel.: 2537 8053
Capacidade: 82 lugares. Duração: 80 min.
Classificação etária: 16 anos. Gênero: autoficção.
Ingressos: R$ 25 (meia e lista amiga) e R$ 50 (inteira).
Bilheteria: de terça a sábado, das 15h às 19h. Domingo, das 15h às 19h.
Vendas online:www.tudus.com.br
www.instagram.com/autoeus_espetaculo
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