Teatro e capital: a miséria teatral brasileira
“O que move o palco não é a paixão. Nem a dedicação. Não é nem mesmo a ideia mais requintada ou o talento mais autêntico ou a técnica mais apurada. O que move o palco é a riqueza social. Riqueza: quer dizer, não é simplesmente capital ou dinheiro ou investimento. Riqueza social é uma mistura homogênea muito apurada, em que se combina o desejo e a vontade da sociedade, a garra do indivíduo, a vocação humana dominante, a tradição do fazer, o talento do artista e o capital.
Isto significa dizer que a sociedade pode eleger a arte que deseja para a sua bem aventurança, produzir as construções simbólicas que conferem a todos, ou a algumas partes do todo, o conforto imaginário necessário para estar diante da vida. Portanto, existem mecanismos supra-humanos, forças produtivas subterrâneas, filhas do tempo, poderosas, capazes de moldar a manifestação artística de um determinado momento, encantando muitos, mesmo que alguns segmentos da sociedade olhem com espanto o fenômeno e perguntem atônitos de onde veio aquilo.
No nosso tempo, estas ondas podem ser desconcertantes, banais, qualificáveis como não-arte, irritantes mesmo para outros setores da sociedade dedicados ao trabalho de arte, em especial para os produtores em sintonia com a densidade da linguagem, a história, a tessitura mais elaborada das obras. Para o artista devotado à produção em alto grau de concentração, a obra que se estrutura a partir de percepções mais imediatistas, sem cuidado formal maior, pode ser um fato de mercado banal e não um ato de arte. De certa maneira, sem tentar incorrer em qualquer julgamento de valor, seria a oposição entre a arte e a novidade, aquela mais centrada em seus propósitos, esta mais brejeira e volúvel, descartável.
Quando o espaço da artesania da arte começa se tornar muito reduzido e o campo das novidades desponta como imperial e governante, vale perguntar a respeito dos rumos da riqueza social de um dado momento, pensar o que faz toda uma sociedade desejar ser perecível, ter uma sensibilidade de tom imediatista, ou aceitar esta nota dominante sem reação. Parece espantoso que uma sociedade pretenda ser descartável, rasa e plana. A redução da arte, neste caso, vale frisar, jamais acontece isolada – ao seu redor, está a corrupção das escolas, o desaparecimento das bibliotecas e da leitura, o enfraquecimento brutal do mundo dos livros, a liquidação dos espaços coletivos de cultura e de memória histórica coletiva e até mesmo o incêndio de museus e de seus acervos.
Portanto, neste quadro faz sentido o empobrecimento radical dos meios sociais de produção de teatro – pode ser a falsa impressão de um ataque específico à arte da cena, mas, na verdade, todo o edifício social está em ruína. A crise é da riqueza social. De nada adianta, neste quadro, tentar pensar a situação específica deste ou daquele segmento. Importa tentar perceber os estrangulamentos profundos e buscar políticas de arte ou mesmo políticas públicas capazes de atuar a favor da recuperação social.
Isto significa reconhecer que, diante da crise, as lutas apenas por dotação orçamentária, ampliação de verbas, leis de estímulo ou de apoio à arte consistem no simples adiamento da derrocada, pois os dados estruturais responsáveis pelo horizonte precário não foram focalizados. Importa situar a dimensão continental do problema e deduzir daí a dificuldade para pensar saídas efetivas da armadilha histórica que envolve a todos.
Há, então, uma necessidade maior ao redor de todos os artistas – pensar o estatuto da arte hoje, aqui e agora, buscar entender os caminhos responsáveis por esta estranha morte social. No caso deste texto, o interesse central é o teatro – ainda que, como já se observou, ele esteja preso a um tecido maior, em decomposição, o que torna a tarefa bem árdua. Então,o melhor é ir direto à luta – vale começar com perguntas incomodas, do tipo tentar saber o quê, afinal, explica a catacumba mal assombrada em que o teatro brasileiro se meteu. Como foi que chegamos aqui.
Um primeiro tema se impõe para ser abordado rapidamente, sem rodeios. Papo reto. O teatro precisa se tornar uma prática cultural nacional, referencia básica para a formação do cidadão. Sei que esta etapa está sob o foco em algumas regiões do país, mas não existe ainda uma realidade nacional límpida de teatro nas escolas. A nota que precisa soar é o reconhecimento do teatro como uma necessidade humana básica, ele deve ser tratado nesta condição. As crianças precisam aprender a ver e a fazer teatro como meio de expressão social. Teatro de marionetes e fantoches, dedoches, teatro de texto e de representação, história do teatro. Reconhecer a arte significa tornar pública a tradição e a fortuna técnica, sem modismos e sem preconceitos de linguagem.
Há nesta proposição uma inversão decidida de uma pauta recorrente manipulada pelos artistas. O problema não consiste em achar que a formação de plateia e a estruturação de um público funcionam para garantir a sobrevivência do teatro – a verdade pretendida é bem outra, estas são prioridades para a sobrevivência do cidadão. Naturalmente, o cidadão bem formado institui a necessidade social do teatro. Nesta visão, não se impõe o hábito de ir ao teatro, uma rotina que morre com a pessoa, mas, antes, se estrutura a presença do teatro na sociedade.
No tópico acima, na qualificação do teatro, apareceram várias vertentes possíveis de definição da arte. A enumeração aconteceu com um cálculo objetivo: importa fazer com que as pessoas conheçam os rudimentos da linguagem teatral nas mais diversas manifestações da arte. Isto quer dizer divulgar técnicas e procedimentos, mas também construir tradições.
Vale explicitar. A história da dramaturgia brasileira tem que se tornar moeda corrente no universo cultural do homem brasileiro, a um ponto tal que não se possa compreender um brasileiro sem perceber que ele possui um vínculo imaginário e simbólico com dramaturgos tais como Martins Pena, Gonçalves Dias, Castro Alves, França Júnior, Artur Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Magalhães Júnior, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Ariano Suassuna, Naum Alves de Souza, Newton Moreno – para ficar numa das sequências históricas possíveis. Vale incluir Gil Vicente e José Antonio da Silva, o judeu.
A escolha implica numa reviravolta fenomenal: sacudir preconceitos inaceitáveis, posturas negativas, inclinadas a estabelecer uma hierarquia de exclusão, muito em voga hoje, na qual haveria o teatro up to date, demolidor de tudo e de si, contra um teatro velho, que deveria ser banido da face da Terra. Este é um grande mal do teatro brasileiro atual, acreditar que a cena se explica por sua capacidade explosiva, um permanente recomeço.Este pensamento reducionista, contrário a toda e qualquer tradição, que vive de simular a descoberta do ovo todos os dias, denuncia a grande falta de cultura do teatro nacional, arrasta a cena para o movediço terreno das novidades, ali onde a novidade de hoje será o lixo do amanhã.
Além e ao lado da dramaturgia, importa dimensionar a fortuna cênica nacional, as linhas de trabalho atoriais traçadas desde o século XIX. Em resumo, perceber o jogo proposto pelos atores, de João Caetano a Paulo Autran, passando por Vasques, Jaime Costa, Italia Fausta, Procópio Ferreira, Dulcina, Maria Della Costa, Cacilda Becker, Eva Todor, Dercy Gonçalves e tantos mais. E perguntar a respeito dos construtores da cena – tantos nomes históricos, que passam desde Eduardo Vieira, Ziembinski e Adolfo Celi, até Gianni Ratto e Flavio Rangel. Há ainda uma vasta rede de criações, percorrendo a cenografia, o figurino, o corpo e a luz.
O que se constrói com tudo isto? – vale perguntar. Apenas o teatro, simplesmente o teatro, como filho direto e dileto da riqueza social. A partir deste reconhecimento, parece natural sugerir a existência de uma estrutura límpida de mercado, convencional – no centro e no ponto mais alto, deve figurar o chamado teatrão, o teatro da linguagem mais formal e mais instituída, praticado por atores consagrados, em sintonia maior ou menor com a tradição. Na sequência, deve figurar o teatro comercial estável e de alcance imediato, o teatro de jovens profissionais inquietos, mas pesquisadores da arte, o teatro de invenção mais radical. O público precisa reconhecer as linhas de trabalho de cada teatro, de cada coletivo, de cada individualidade e aclamar o segmento que expresse com mais contundência o seu próprio universo.
A identidade clara também serve para orientar os canais interessados em fomentar a criação teatral. Uma grande empresa pode apoiar tanto o artista consagrado, quanto o jovem iniciante ou o inveterado experimentador sem idade. Mas tais opções devem existir claramente formuladas. As formas de financiamento devem ser adequadas, proporcionais ao estatuto dos projetos e ao perfil das linguagens. Esta condição pode viabilizar formas associativas alternativas, crowfunding, mecanismos de financiamento sustentados pelo público ou por amantes desta ou daquela vertente.
Com certeza o poder público deve estar presente nesta estrutura – menos como produtor, mais como estimulador da produção. As verbas públicas, venham do mecenato (incentivo fiscal) ou dos cofres públicos, precisam ser aplicadas com transparência e objetividade, devem viabilizar produções, devem estimular, dar a base, para a constituição de capital próprio do teatro. O pensamento urgente de produção é bem este: como constituir um capital teatral. Na tradição europeia, Hobsbawn, entre outros, afirma que o dinheiro do Estado não deve sustentar o mercado. A afirmação, porém, parece adequada aos países em que a riqueza social vigora. Na indigência social brasileira, o mercado ainda precisa do Estado, mas tal deve ser pensado de uma forma mais saudável, enquanto via estruturante do mercado e não como fluxo de capital contínuo.
Em tais condições, o financiamento público não poderia ser permanente, as mesmas pessoas e empresas sempre recebendo o financiamento público. Parte das verbas precisaria ser imobilizada na construção da infraestrutura de produção – construção e manutenção de casas de espetáculo, edição de livros, em particular de dramaturgia e de estudos para a sedimentação de tradições, estrutura de apoio para a cenotécnica e o equipamento de cena, atividades de formação de plateia.
Contudo, um ponto nevrálgico deve ser pensado com urgência. O centro de tudo parece ser o debate acerca do capital teatral. O desafio é o de estruturar um Banco Cênico, talvez um Banco Vasques, talvez através de um sistema de cooperativa, origem de um fundo de recursos gestor da economia criativa. Isto significa autonomia criativa, digamos.
Vale se deter um momento e pensar, ao longo da História, no enfadonho rol de histórias repetidas, cíclicas, de grandes artistas devotados á criação e devastados pela criação. A história do ator Vasques, um empreendedor obstinado relegado a morrer na miséria, poderia ser um mote inspirador para que se pretenda romper a roda de penitentes desvalidos que constrói, em geral, a vida teatral brasileira. Este texto não pretende ser uma receita de bolo ou um manifesto, nem mesmo um elenco de recomendações prudentes para o bem estar da cena. O desejo aqui é o de convidar os que acreditam na importância social do teatro para abrir as portas do pensamento, flertar com a ousadia, incitar à sacudidela do esqueleto. O sonho é realizável – e urgente – apostar na possibilidade de uma realidade produtiva autônoma, voltada para o universo teatral social. Enfim, sair do pires e apostar no cofre. Enfim, ampliar os limites da riqueza social brasileira.
Vale pensar na realização de encontros para o pensamento e o debate. Acontece agora em Paris um evento de profundo alcance acadêmico sob o tema Le capitalisme, la personnalité et la culture. Em Porto Alegre, a classe teatral iniciou um movimento, na segunda-feira, a MOVE, que pretende lutar para transformar a situação do teatro gaúcho. Com toda a água que inundou o Rio na segunda, as ideias não pararam e o I Seminário de História e de Historiografia do Teatro mobilizou, na UFRJ, um elenco de estudiosos nacionais e estrangeiros de grande expressão intelectual. São exemplos eloquentes. O simples ato de abrir o pensamento, vale insistir, pode trazer um diferencial absoluto para a cultura do país. Sair do estado de miséria precisa ser também uma disposição coletiva da classe teatral.
« Le capitalisme, la personnalité et la culture », colloque international à Paris, Académie polonaise des sciences, 11-13 avril 2019
Comité scientifique : Alan S. Kahan; Fréderic Lebaron; Catherine Marshall, Joanna Nowicki.
MOVE – Rede de Artistas de Teatro de Porto Alegre
Evento de lançamento:Centro Municipal de Cultura – performances, shows, apresentções de teatro, dança e circo.
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