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Titia Irma, Papai Offenbach: Senhores do riso, senhores do mundo

“Pode ser, querido leitor, que você acredite saber de onde veio. Talvez você ostente na cristaleira da vovó algumas comendas, medalhas e um brasão de família embolorado. Lamento, caro irmão de alma, mas tudo isto é falso, é mentira, vã ilusão. A poeira do tempo não protege a sua ambição de grandeza. Somos todos arrematados plebeus, anônimos cidadãos comuns de um vasto mundo, selvagens flanneurs de absurdas cidades. Somos filhos de Offenbach.

 

Portanto, respeite os seus ascendentes legítimos. Neste 20 de junho, faça discretamente uma reverência ao nosso grande pai – dance escondido na sala, ria dos poderosos, ouça uma canção divertida, mande Wagner passear e Brahms contar favas. Sim, nosso pai precioso está completando duzentos anos de nascimento e a data não pode passar em branco, deve ter força suficiente para sacudir ossadas e ideias, assim como ele fez com a humanidade, graças à sua vasta e bela obra, até morrer em 1890.

 

A data poderia passar em branco neste país tabula rasa. Mas não vai não. Além do furor que este criador desvairado provocou em nós, humanos, sabe qual o incontornável motivo que nos obriga, impõe inconteste a sua, a minha, a nossa homenagem? Muito simples: nós ignoramos, faz pouco, o centenário de morte de Artur Azevedo, a figura que mais profundamente compreendeu e conheceu Offenbach neste país. Imperdoável.

 

É verdade: Artur Azevedo foi um grande divulgador deste nosso pai amoroso. Foi capaz de traduzir e/ou parodiar muitas das suas obras, discutir o seu teatro e defender a graça fundamental da opereta, uma arte desclassificada por muitos espíritos elevados de outrora (– ah!, imagine, leitor, o que será que tais espíritos seletos fariam da vida se ouvissem a música bate estaca das ruas de hoje?…).

 

Falei em opereta: a rigor, Offenbach foi o inventor da opereta. Ou, com certeza, aquele que lhe deu o seu tom verdadeiro, corrosivo, mordente mesmo, a sua mais completa definição. Mozart compôs operetas, alguns estudiosos pensam que Bach assinou a primeira obra do gênero, mas não, a opereta não é só uma pequena ópera de tom leve, divertido, despretensioso, fatura de música aérea e humorada.

 

A opereta que nasceu com Offenbach tem uma identidade toda própria, é uma nova via de acesso ao espírito humano, por isto foi capaz de irritar muito os gênios densos, como Wagner. A música de Offenbach – e não só a música, hoje já se sabe bem da sua intromissão na elaboração dos libretos – foi uma enorme revolução, capaz de incitar o corpo a se sacudir, fazer o cérebro se surpreender com grandes ideias irreverentes e, como diria AA, fazer o bom humor entrar pelos ouvidos. Um gênio, simples assim.

 

Vale deixar muito claro, como uma nota estridente de clarineta – a opereta, íntima da ópera bufa e da ópera cômica, veio das ruas, traduziu o homem novo que nascia no século XIX europeu, o zé povinho sem eira nem beira alfabetizado e novo eleitor, capaz de jogar pedras na monarquia, debochar da hipocrisia social, desafiar os velhos costumes, rasgar velhas crenças e desacreditar o direito divino dos reis. Por sinal, não se tratava de homem no sentido machista.

 

O can-can, invenção de Offenbach, fez nascer no palco uma nova dança: seria o registro do fogaréu que acometia as mulheres do povo nas festas plebeias, quando, ao que se diz, elas sacudiam as saias para espanar o calor. A dúvida ainda não esclarecida pelos historiadores é se, em tais festejos, havia ou não o costume de usar roupas de baixo. Talvez por detalhes como este a opereta e o seu pai tenham despertado para todo o sempre a ira desmedida dos eruditos, os amantes do trágico e da elevação dilacerada do espírito. Sabe aquele teatro ai-de-mim, pleno de contorções abstratas aniquiladoras? Coisa de gente nobre, claro.

 

Apesar da escravidão, do voto censitário, da sociedade patriarcal machista, da divisão social em castas, do analfabetismo e da cultura como prática áulica de aldeia, Offenbach incendiou as mentes por aqui no século XIX-Brasil, acionou um rastilho de pólvora de libertação do pensamento que, até hoje, infelizmente, ainda não conseguimos absorver por completo. Assim, a ira dos cultos e acadêmicos também trovejou nos trópicos e ela desabou sobre o maior cultor de Offenbach, Artur Azevedo. Por isto, com a falta de sorte de ter morrido em 1908, no mesmo ano em que morreu Machado de Assis, os festejos do centenário de morte de Artur Azevedo foram pífios. Resultado? O nosso débito é imensurável.

 

Permita-se, então, construir algo a favor da sua liberdade transcendental, caro leitor, liquide a dívida mais do que centenária – busque no youtube ou no spotify montagens de operetas do nosso sublime mestre, constate, perplexo, como papai sabe tudo. Podem ser encontradas ótimas versões de Orphée aux enfers (Orfeu no Inferno) – talvez o seu trabalho mais encenado. Há também a divertidíssima La Belle Héllène (A Bela Helena). Ele era um criador obstinado, dedicado à sua arte, com uma obra muito extensa: se você dominar o francês, a oferta ronda o infinito.

 

Sim, ele fez paródias demolidoras de grandes histórias da mitologia grega, um tema que era uma moda intelectual na época, um assunto popular, mal comparando, como as novelas da Globo ou as séries de TV são hoje, digamos. Nas músicas, ele brincava com os grandes temas sérios, inventava pastiches e paródias – como a ópera de Gluck, Orfeo e Eurídice. Para os libretos, sugeria (ou aceitava) tramas de grandes obras literárias, parodiadas. Com certeza Offenbach precisa ser celebrado como um dos maiores nomes da irreverência de todos os tempos. No meu modesto entender, é o maior.

 

A sua biografia desenha de saída um ser em transe, em trânsito e transgressivo – nascido na cidade de Colônia, na Alemanha (ou no que se tornaria a Alemanha a partir de 1870), região então já tradicional rival histórica da França, judeu, ele, adolescente virtuoso do violoncelo, imigrou justamente para a França levado pelo pai, para buscar maiores oportunidades musicais, de aprendizado e de profissionalização. Na França, passou pelas sinagogas, mergulhou nos bares cantantes, ingressou no conservatório, deu aulas e enveredou pelos boulevards. Casou com a filha de um empresário da arte, se converteu ao catolicismo, abraçou o teatro musical. Era instrumentista, compositor, regente, diretor de teatro, agente e gerente, um aqueles seres incansáveis… e mutantes!

 

O seu tom frenético vai bem com o teatro: na verdade, este tipo é mais encontrável no meio teatral do que na música. Aliás, por aqui existem figuras dotadas deste tipo de frenesi produtivo, ainda que não tenhamos alguém comparável no teatro musical, alguém capaz de criar uma avalanche semelhante de peças. Artur Azevedo, afinal, tinha excelente ouvido, mas não compunha nem escrevia músicas.

 

Não fique triste, no entanto, entregue ao lamento pela falta de carinho com esta figura tão essencial. Nem tudo está perdido, há uma fresta privilegiada na nossa cena, uma réstia de luz tramando vínculos positivos. Um exemplo de frenesi teatral impressionante estreia hoje no Rio, dia 20 de junho, no Teatro Oi Casa Grande – a deliciosa peça de tanto sucesso O Mistério de Irma Vap, de Charles Ludlam. No dia de celebração de Offenbach, não dá para deixar de ver de jeito nenhum. E são várias as razões para tanto, importa fazer a lista.

 

A primeira é esta coincidência deliciosa da estreia da peça, no Rio, ter sido programada para o dia do bicentenário de nascimento de Offenbach. Importa reconhecer – ainda que eu não tenha nem tempo nem espaço aqui para demonstrar a tese – que o teatro cômico americano, apesar de toda a carga da comédia inglesa, deve muito ao teatro cômico francês, inclusive à comédia musical francesa. Então, em falta de um evento específico para chamar de seu, fica a dica de usar a peça de agora como homenagem suprema ao nosso pai querido: vá lá.

 

A segunda razão é ainda de ordem histórica – a montagem original brasileira, dirigida por Marília Pêra, deusa de uma linha de humor atoral muito requintada, foi defendida por uma dupla infernal de boa, Marco Nanini e Ney Latorraca, atores capazes de potencializar a força do texto num grau absurdo. Agora, dois atores vibrantes, brilhantes, celestiais, olimpianos, Luis Miranda e Mateus Solano, encabeçam o elenco. Na direção, o nome mágico é Jorge Farjalla, um diretor pródigo no trato da carpintaria teatral, mestre em barroquismo, preocupado com a excelência dos efeitos, pesquisador da inventividade dos textos.

 

Portanto, a comparação entre as duas montagens será um meio de verificar a voltagem criativa do humor brasileiro, alimentar a trama temporal de nossa frágil tradição, e assim, de alguma forma honrar alguém que nos deu partitura, papel e verve. Na pauta, a nobreza histórica do melhor teatro brasileiro.

 

A terceira razão, caro leitor, é a absoluta necessidade de cuidar da sua saúde cívica, moral, intelectual e existencial – você precisa se amar. Entramos enfim na era da religiosidade dos humores que, afinal, a obra de Offenbach previa. O culto ao melhor do zé povinho está no epicentro do altar da civilização.

 

Isto quer dizer que só a comicidade mais refinada nos salva e protege, deve ser a nossa fé e a nossa razão de ser – ela nos permite não ter um ataque de fúria ensandecida diante de todos os desmandos cotidianos atuais do mundo. Você, cidadão do tempo presente como eu, espírito nascido da sarjeta das ruas onde sempre buscaram encerrar a opinião pública, merece mergulhar no fino aço cortante da mais rebuscada verve ocidental. Não titubeie, incorpore esta aura erigida para nos libertar.

 

Veja bem: O Mistério de Irma Vap é para você. Corra, vá ver – papai Offenbach está rondando por lá, de alguma forma ele paira no ar, envolto no humor desabrido da cena. Ele aprovaria a sua escolha e, onde estiver, vai ficar feliz. Ao contrário dos brasões mofados indefesos diante da marcha do tempo, nosso ser da rua sobrevive, sobreviverá. É ele que nos sustenta vivos, mentes incandescentes, para a glória eterna de papai.

 

 

SERVIÇO
O Mistério de Irma Vap, de Charles Ludlam
De 20 de junho a 28 de julho no Teatro Oi Casagrande
Quintas, sextas e sábados, às 20h e domingos, às 18h
Ingressos: Quintas e sextas: Plateia Vip/Camarote R$130 | Plateia setor 1 R$100 | Plateia setor 2 R$90 | Plateia setor 3 R$70
Sábados e domingos: Plateia Vip/Camarote R$150 | Plateia setor 1 R$120 | Plateia setor 2 R$90 | Plateia setor 3 R$70.
Classificação: 12 anos.
Duração: 100 minutos.
Gênero: Comédia.
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