Nas asas da solidão
“A frase é conhecida – ninguém admite que uma verdade venha dinamitar a sua ilusão, detonar as suas quimeras. Ela teria sido formulada por Nietzsche. E ganhou o mundo, pois parece mesmo muito difícil aceitar a acusação de se submeter de corpo e alma a um projeto inconsistente, que se esfuma sem deixar traços. Formar na fileira do arbitrário é muito doloroso para a mente humana. Aceitar que um doce sonho acalentado com carinho era um engodo, deslavada mentira, é vergonhoso.
Sim, estou falando do teatro brasileiro, que vai se esvaindo acelerado. Um sonho desfiado pela lâmina sibilante do tempo. Parece que acreditávamos num edifício de papel, um castelo de areia, algo que de verdade nunca existiu. Registre-se a ressalva: para quem estuda a história do teatro brasileiro, o processo vem de longe, não é de agora. Não dá para procurar o problema embaixo da cama, ao menos para quem deseja entender verdadeiramente o que acontece.
De certa forma, o teatro brasileiro nasceu torto e seguiu torto pela vida, estrebuchando sempre. Quando o palco era a arte do mundo, movia a sociedade, ainda era fácil ativar a cena nacional, supor que ela contava com alguma vitalidade, disfarçar o abismo. Mas, a partir do ocaso social da arte, em especial na nossa época, o quadro do teatro brasileiro se tornou cada vez mais difícil. Há hoje uma multidão que adora o celular, não vive sem ele, mas não vai ao teatro nem de graça. O teatro desencantou. Dançou tanto na beira do abismo que despencou.
No entanto, apesar do ocaso, nosso país precisa de teatro num grau absurdo. Só esta necessidade transcendental, abissal, delirante mesmo, explica um dos nossos maiores enigmas históricos – o fato do país ter sido o berço de um ator monumental, sem que sequer existisse, na época, qualquer prática teatral consolidada. Somos a terra de João Caetano (1808-1863). Por quê, no meio do nada, João Caetano nasceu aqui?
João Caetano não foi só um mito ou uma invenção de historiadores. Ele foi um gênio fulgurante da arte da interpretação. Como um rastilho de luz incontrolável, ele rasgou – e iluminou – os céus de trevas do país. E não tinha ao redor um palco de qualidade para se inspirar, respirar, copiar. Nem uma grande dramaturgia, nem o fervilhar da arte de atores imponentes estiveram ao seu alcance. Claro, ele foi discípulo do grande e desconhecido ator português Vítor Porfírio de Borja (não sabemos nem mesmo as suas datas de nascimento e morte…). Quer dizer, explicação pouca para tanta arte.
Mas não é só isto, não é só de João Caetano que se faz esta curiosa trama de visões de mundo chamada teatro brasileiro. Impressiona, de verdade, a qualidade e o número dos artistas-atores nacionais, figuras magnéticas da arte que nascem por aqui. Nossa, como temos tantos atores de excelência! Sem qualquer cálculo metafísico, vale perguntar – por quê os deuses do teatro cismaram em lançar tais bênçãos neste lugar? Certamente, porque precisamos delas.
Gosto de acreditar que toda a imensa selvageria do nosso processo colonial tropical, a um só tempo brutal e estúpido, deu origem a uma forma humana rígida, descarnada, egoísta e prepotente. A História nos fez assim. Nascemos, enquanto seres nacionais, como monstros insanos de desumanidade. Portanto, alquimistas do afeto, mágicos da percepção, sábios da humanidade – em uma palavra, atores – são panaceias essenciais aqui, necessidades primárias para o mal estar fundamental da terrinha.
Belo problema. Eis aí um outro grande enigma. Então, se existe uma necessidade profunda, uma doença histórica, que exige o teatro como remédio para a cura da alma selvagem, e se nascem os protagonistas básicos para atender à tal da necessidade, o que faz existir uma crise teatral quase permanente por aqui? Como é que doença e cura não se encontram, não se combinam para promover alguma redenção nacional? Estamos condenados, para toda a eternidade, a sermos estúpidos?
O problema é intrincado: a densidade cerrada da violenta miséria existencial nacional a torna próxima do impenetrável. O quadro de sensibilidade-pântano da nossa sociedade é de tal ordem que ela cria mecanismos rígidos de autoproteção, preserva as suas trevas. Criamos uma sociedade bárbara, louca, em que aceitamos crianças rolando como lixo nas ruas, espalhamos lixo por toda a parte, não reconhecemos o valor humano como valor básico, fundante. Em lugar de campo cultural, como diria o francês, temos pântano cultural.
Assim, para preservar a sua extrema indigência, a sociedade brasileira construiu uma dinâmica social contrária ao teatro, avessa ao palco. Não queremos pessoas melhores. Não queremos uma sociedade feliz. Não existiram, desde a Independência, projetos do Estado ou da sociedade devotados à consolidação da arte, assim como permanecemos alheios à urgência de um projeto educacional verdadeiramente nacional – não temos escola para o conjunto da população. Justamente para que a população sequer cogite usufruir esta coisa inoportuna chamada cultura.
A rigor, o quadro é bem pior. Não temos professores para todas as escolas. Não valorizamos em nada a profissão de professor. O mais comum é termos escolas caindo aos pedaços. Nas escolas, não temos teatro. Para quê teríamos? E aqui fora, não temos grandes instituições teatrais – não existem companhias oficiais e cada vez mais os teatros públicos são lugares decadentes, não cuidados. Não temos qualquer ideia a respeito dos nomes que, ao longo da história, se dedicaram a discutir a nossa alma.
Assim, ser ator no Brasil é ser uma espécie de solidão tenebrosa. Um ser vagante, entregue à própria sorte, que precisa lutar sozinho por sua arte, seu espaço de trabalho, a relevância daquilo que sente que nasceu para fazer. Não vale tentar tampar o sol com a peneira ou procurar um bode único comedor de capim para explicar o deserto: a lei Sarney, a lei Rouanet indicam que a crise econômica do palco começou faz tempo (se é que esteve em suspenso em algum momento). Não precisaríamos de tais leis se prezássemos a nossa arte.
A penúria, portanto, é colossal. Não existe, no teatro que se faz hoje, um capital teatral. O capital é absenteísta. Com a crise, a possibilidade de investimento da sociedade na arte da cena caiu muito, quer dizer, captar dinheiro para financiar a produção de peças se tornou algo na vizinhança da impossibilidade.
Além da queda do número de produções, a tônica é a de montagens com elenco mínimo e surpreende a proliferação dos monólogos: afinal, os atores precisam fazer teatro para viver porque esta é a sua missão. Obcecados, fazem. Mesmo que sejam obrigados a ganhar dinheiro noutro lugar. Daqui a pouco, todo ator terá um monólogo para chamar de seu. E se fizermos um espetáculo Poeira de Estrelas, será um lindo festival de solos.
A pergunta natural diante do quadro devastado é simples e direta: o quê fazer? Fazer o quê? Talvez por causa da sua origem luso-francesa (ou franco-lusitana, pode ser um debate curioso), o teatro brasileiro não consegue se pensar fora da asa protetora do Estado. O problema é que o Estado, aqui, esperneia para não dar colo para este pretenso filho rebelde, mas o filho insiste. E não há qualquer chance do filho taludo, o teatro, não ser rebelde. Ou não seria teatro – este indicador de perguntas, rol de inquietações, bússola biruta para desorientação no descampado da vida.
Nós, brasileiros de latinoamérica, filhos da Europa, colonizados por completo – pois a Independência, justamente, não significou autonomia, identidade, emancipação – persistimos na defesa de um modelo importado que deveria ser eficiente se a nossa sociedade contasse com um projeto civilizador. E nada dá certo.
A verdade é que novos mecanismos de articulação econômica da arte precisam ser pensados e perseguidos – a ideia do blackmoney devia inspirar o nascimento do theatremoney. O palco precisa pensar a sua Marsellaise – um canto revolucionário para romper, exatamente, com o modelo francês, entre outros. Importamos um pouquinho de mecanismos do teatro norte-americano, um irmão que se tornou livre ao seu jeito, mas as doses homeopáticas foram tímidas e, evidente, alheias ao habitat daqui.
Talvez nada funcione porque falta, ao redor, uma sociedade que conheça teatro desde a escola e necessite dele. A partir dos anos 1960, houve a tentativa de criação de cooperativas, em particular em São Paulo, mas sem grande sucesso. E talvez a constituição de cooperativas – a união da classe em favor de um objetivo comum – fosse uma possibilidade de saída da estagnação, em direção a um modelo emancipado local.
A arte precisa ser invenção, para sobreviver e cumprir o seu papel histórico-social, até mesmo na sua produção. Ou em especial a partir de sua produção. Para muitos, um modelo híbrido, com a presença do Estado, mecanismos de cooperação classista e estrutura estável de produção poderia ser o caminho – mas este seria ainda o tradicional esquema de produção em grupo. Já existe.
Então a proposta urgente é esta: como formular caminhos coletivos para promover uma revolução copernicana (e vem a Europa, de novo!) capaz de recompor o sonho de um teatro nacional eficiente? A solução está nos grupos? Qual deveria ser o papel do teatro de grupo na realidade da produção teatral brasileira? O mercado, incapaz de se sustentar por si, deveria ser abandonado à própria morte?
Alguns casos específicos merecem atenção e estudo. Um alentado painel de perguntas desta estirpe parece constituir a espinha dorsal da Armazém Companhia de Teatro. Estará neste caminho a possibilidade de uma solução brasileira? A equipe conseguiu estruturar um coletivo dedicado a viver de teatro, para produzir um teatro intenso, incandescente. Um dos maiores acertos da Petrobras é o apoio à companhia Armazém desde 2000, com resultados fabulosos. Este seria um ponto positivo do Estado?
Para reforçar os meandros do debate, a companhia vem ao Rio com uma peça que é um marco histórico absoluto na reflexão sobre o ser humano hoje e sobre a sociedade ocidental. É História do Teatro em estado puro, uma categoria de arte acima do tempo. Angels in America vai estrear no dia 5 de julho no Teatro Riachuelo, para uma curta temporada. Angels in America é um díptico, de Tony Kushner, do início dos anos 1990, uma espécie de avaliação explosiva da aventura humana. Conta com duas partes: O Milênio se Aproxima (Parte I) e Perestroika (Parte II), e pela primeira vez é montado na íntegra no Brasil.
Eu escrevi: a companhia vem ao Rio. A frase pode ficar trabalhosa – pois sim, a companhia é carioca. Quer dizer, se tornou carioca, veio de Londrina, deste Paraná tão próspero na produção de grandes personalidades de teatro e, em particular, de grandes atores. Mas este trabalho específico, como se poderia imaginar, foi bancado pelo Sesc São Paulo, um lugar atemporal da sensibilidade brasileira orquestrado por Danilo Miranda, grande arauto do combate às trevas. Seja qual seja o partido, Danilo Miranda e Sesc são unanimidades. O que dizer? Evoé, Dioniso.
Vale, porém, dizer mais, de uma forma objetiva: vá ver. Vai fazer diferença na sua vida. A peça, um clássico contemporâneo, inventário arrasador da humanidade solitária de nosso tempo, é grande em tudo. É grande até na duração, são cinco horas. Pode ser vista por imersão, completa, num só dia, ou ser dosada em duas partes, distribuídas em dois dias.
Lá, graças ao poderio avassalador da linguagem teatral, construído pelos norte-americanos, aparece por inteiro este homo desesperatus fruto do nosso tempo. O nome inventado em latim macarrônico tenta sintetizar esta acachapante perplexidade da nossa época. Pela primeira vez na História nos vemos diante do mundo e somos apenas pequenos seres de mesquinhas aldeias. Este nosso estranho poder é apenas uma forma penosa de extrema solidão.
A rigor, para desencanto dos penitentes pessimistas, descrentes de uma vontade sublime de mudar o mundo através do humano, a peça é uma aula devastadora de amor. Por isto, não titubeie, poucos trabalhos teatrais em nossas vidas, aqui e agora, poderão ser mais importantes do que este. Sim, a peça nos emparelha com o mundo ocidental, um lugar que perseguimos, nem sempre com qualquer sucesso, desde o século XVIII.
Mas, atenção: não dá para embarcar numa simplificação de análise. Não há, no caso, nenhuma adesão à moda ou a um impulso colonialista ou a busca de uma rebelião extemporânea. O convite é para encarar o complexo painel humano do hoje e, portanto, em algum grau, abrir uma grandeza de visão para pensar a tragédia brasileira em cartaz por todo o país. O ser solitário que vaga pelas cidades ajuda a dimensionar o capitão colonizado apresador de índios que construiu São Paulo e muito do país. Compliquei? Mais um motivo para ir ver e tentar decifrar este outro enigma histórico escondido sob estas palavras.
Mas não é só isto. Além de oferecer munição emocional e sensível para olhar com amor o descompasso do mundo e a miséria nacional, a partir da exímia carpintaria teatral da Armazém, afiada pela precisão das lentes norte-americanas e do estágio civilizatório ocidental, a peça oferece um outro oxigênio, para outras almas carentes daqui.
Porque ela é um antídoto temporário, ela oferece um alento diante da crise teatral brasileira. Ou, em outras palavras, permite consolidar uma nova ilusão, a de que o teatro pode existir entre nós e pode sim ajudar a mudar o ser humano. Ou melhor, mudar profundamente este país. Vale torcer para que nenhuma verdade corrosiva destes tempos sombrios surja para, como um pensamento-bomba, explodir esta modesta quimera, quem sabe apenas pobre ilusão de redenção.
SERVIÇO
ANGELS IN AMERICA, de Tony Kushner
Armazém Companhia de Teatro
Direção: Paulo de Moraes
Temporada: 5 a 28 de julho de 2019.
Sextas, às 20h: Angels in America Parte I – O Milênio se Aproxima
Sábados, às 17h: Angels in America Parte I – O Milênio se Aproxima
Sábados, às 20h: Angels in America Parte II – Perestroika
Domingos, às 18h: Angels in America Parte II – Perestroika
Local: Teatro Riachuelo
Endereço: Rua do Passeio, 38, Centro, Rio de Janeiro (próximo ao Metrô Cinelândia)
Telefone: 21 3554-2934
Plateia VIP: R$ 70,00 (inteira) e R$ 35,00 (meia)
Plateia: R$ 70,00 (inteira) e R$ 35,00 (meia)
Balcão Nobre: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia)
Balcão Superior: fechado
Importante: Cada sessão será vendida de maneira independente. Quem assistir no sábado terá de comprar 2 ingressos, 1 para a Parte I e outro para a Parte II.
Vendas na bilheteria, pelo site Ingresso Rápido (https://www.ingressorapido.com.br) e nas Lojas Riachuelo.
Plateia: 999 pessoas (sendo 275 Plateia Vip / 335 Plateia / 86 Balcão Nobre)
Duração da Parte I: Aproximadamente 140 minutos.
Duração da Parte II: Aproximadamente 150 minutos.
Intervalo: Aos sábados haverá intervalo de 40 minutos entre as Partes I e II.
Classificação Indicativa: 16 anos (cenas de nudez, simulação de sexo e palavrões)
Gênero: Drama
Atendimento à Imprensa: Ney Motta
Tagged: Armazém Companhia de Teatro, crise teatral brasileira, Danilo Miranda, Lei Rouanet, Lei Sarney, Nietzsche, Paulo de Moraes, Sesc SP, Teatro Riachuelo, Tony Kushner