O coração do teatro: Ruth de Souza
De repente as palavras correm, se escondem, somem. Mesmo uma pessoa cheia de palavras pode, um belo dia, acordar e, em vão, tentar encontrá-las. Qual o remédio? Não sei. Quem sabe existe um país das palavras, um lugar no qual elas se exilam quando ficam cansadas de nós. E elas voltam, mas só quando a voltagem do querer se torna mágica.
Eu entendo – quem é que não se cansa, de vez em quando, da humanidade? Enfadonho, tanto palavrório oco, cínico, discursos de falseanos. Quem é que não se surpreende com a leviandade corriqueira dos seres humanos diante das palavras?
Sim, certamente desde Sócrates – o grego que calou as próprias palavras com cicuta para libertar as nossas – existe o compromisso de casar palavras com o pensamento e com a verdade. Mas, vamos combinar: se ele impôs este compromisso, foi para que muitos andassem… longe dele! E aí… palavras ao vento, estranhas ao pensamento.
Pois somos descendentes traiçoeiros de Sócrates e herdeiros de outras práticas, contraditórias, dissimuladas. Há um outro par, também grego, cuja existência contribui também para implodir nosso uso das palavras: as gêmeas siamesas democracia e demagogia.
Elas nasceram juntas, no mesmo bercinho, uma não vive sem a outra. Mas uma é venenosa, é aquela irmã que nasceu só para derrubar a gêmea. A palavra séria de uma é o engodo, na outra. É preciso estar atento e forte, portanto.
Quem sabe um outro figurão da grande família grega, hábil esgrimista do verbo, possa ser um caminho para dissolver o embate, liquidar o vazio da alma? Saída fácil? Ah, que ele venha, rápido. Será?
Talvez o impasse histórico que nos cerca não tenha qualquer solução, mas, convenhamos, o costume deste moço, de confrontar opostos, expor antagonismos e contradições, bem pode acalmar – sim, apenas acalmar – a sensação humana de que a vida é pequena e nada vale a pena. Quem sabe?
Sim, o teatro, caro leitor, pode ser este anjo protetor do eterno vazio. Se ele não traz a chave para o céu, com certeza permite aos seus fiéis flutuar livres, por instantes, no caudaloso fluxo humano de ser. É quando nos vemos ali, diante da cena, e acreditamos num mundo outro, pura invenção, para sentirmos e pensarmos de outra forma.
Pois bem. Há um teatro antigo, por aqui cada vez mais raro, aquele que poderíamos chamar de grande teatro, o teatrão, senhor das chaves da imaginação, primo do sonho. Hoje, há o teatro-realidade, teatro-documento, parente bastardo do velhusco, pois para este aqui o que interessa mesmo é brincar de dar a palavra à realidade.
Sinceramente, não sei se a palavra gosta disto ou mesmo se ela, convidada a desfilar no antigo lugar devotado à mais descarada representação, se ela funciona de verdade neste figurino e para quê, nele, ela funciona. Segundo algumas más línguas, quem vai ao teatro da verdade vai lá ouvir o que já sabe, portanto, vai espanar a roupa velha, disfarçar os rasgadinhos e remendos.
Mas a festa não para por aí: teatro da ilusão, teatro da verdade são opostos simplórios para dar conta do desvario de nosso tempo. O pior é que a quebra da ilusão cênica antiga e a brincadeira com a verdade se esfacelaram em múltiplas vertentes. Pois é, teatro, teatro do teatro, teatro teatralizado, anti-teatro e teatro de ruptura. Pós-moderno, pós-dramático, pós-pós. De toda forma, seja como for, um dado salta aos olhos de todos: múltiplas são as formas do teatro do nosso tempo. Mais por aqui do que em qualquer outro lugar do mundo…
O motivo? Ah, o Brasil precisa ser vanguarda mundial. E aqui, inventaram de apostar no estado de invenção absoluta, portanto rejeição do teatro convencional. Existe texto? – sou contra, brada o palco. Em breve teremos dificuldade para entender o que vem a ser mesmo teatro no sentido formal do termo.
Seremos, dentre as grandes cidades do mundo, os únicos lugares impossíveis para ver Shakespeare ou Molière ou Tchekhov ou Shaw ou Pirandello ou Jorge Andrade… Mas, mesmo sem relação próxima com a grande tradição, teremos viscerais encenações, demolidoras ou críticas, dos tais belos textos bolorentos. Teatro do teatro do teatro ou menos.
Logo, teremos um outro grande enigma: como entender as pessoas loucas que apostaram o ser e a alma para dar vida aos grandes textos de dramaturgos magistrais? Como explicar atores que não se formaram no cultivo do improviso, da cena desconstruída, da performance-puro-ato-de-criação?
Muitos aprenderam bastante na velha escola, deram o melhor de suas vidas por isto, se transformaram, transformaram as gentes ao redor, defenderam a ideia de que o fundamental é iluminar a aventura humana, para se surpreender diante de sua riqueza, contemplar tramas de vida emaranhadas.
Como entender a dimensão histórica de Ruth de Souza (1921-2019) sem termos a noção clara do que é o grande teatro e sem reconhecermos o sentido do grande teatro para a existência humana? Há um sentido do teatro enquanto estrutura profunda da vida que não se pode perder.
Nas entrevistas sobre a sua origem e sua formação, Ruth de Souza gostava de contar que aprendeu a ir ao teatro e a amar a cena graças aos ingressos que a sua mãe, lavadeira, ganhava das patroas. Assim, pode ver óperas e grandes espetáculos no Theatro Municipal – ia com o melhor vestido, toda arrumadinha.
Assim, se tornou, em 1945, a primeira artista negra brasileira a representar no palco do Theatro Municipal, como atriz do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento e Agnaldo Camargo. A peça era O Imperador Jones, de Eugene O’Neill. Ou seja: grande teatro de absoluta qualidade dramatúrgica.
Sob a influência de Paschoal Carlos Magno, considerado por ela como um grande mentor, recebeu uma bolsa de estudos da Rockfeller Foundation, para fazer um curso de teatro na Karamu House, grupo fundado em 1941, o mais antigo teatro afro-americano dos Estados Unidos, e um estágio na Haward University, uma chance para mergulhar nas referencias do teatrão de alto coturno.
A carreira de Ruth de Souza no teatro brasileiro – além de sua extensa atuação no cinema e na televisão – revela o perfil de uma grande dama. Além da devoção ao TEN e do trabalho intenso com a equipe, ela foi dirigida por nomes históricos tais como Ziembinski, Turkov, Dulcina de Moraes, Sergio Cardoso, Nydia Licia, Amir Haddad, Antunes Filho, Ulysses Cruz. A dramaturgia encenada por ela reúne autores de impacto para a história do teatro, de O’Neill a novos autores nacionais, de Camus a Nelson Rodrigues e Jorge Andrade.
Dotada de aguda inteligência cênica, Ruth de Souza percebeu cedo, no início da crise do teatro moderno, uma crise objetiva de linguagem, algo da falência do teatro nacional. Trata-se da mesma velha crise, hoje assustadora, inclinada a reduzir tudo a jogo de invenção, ainda que pueril.
Ao comentar, em entrevista para a Série Aplauso, a concepção de Antunes Filho para Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, cartaz do final da história do TBC em 1964, ela observou, entre lúcida e ácida:
“Era um elenco numeroso, com mais de 20 atores, encabeçado por Cleyde Yaconis, Raul Cortez e Lélia Abramo. Eu não estava cogitada para fazer a peça. Jorge Andrade foi à minha casa e me disse: “Ruth, a atriz que estava fazendo a Germana não consegue suportar a dureza dos ensaios e pediu para sair da peça. Vim aqui te convidar para o lugar dela”. Aceitei, claro, mas realmente trabalhar com Antunes Filho não é brincadeira. Foram seis meses de ensaios exaustivos. A pobre da Cleyde Yaconis ficava tentando se libertar de umas correntes que a aprisionavam; Aracy Balabanian andava no palco, de um lado para o outro, com uma expressão estranha, imitando um urso polar. Stênio Garcia tinha de levar todo o elenco para o sítio da Cleyde e se escondia no mato para assustar os demais. Cada ator fazia um animal. Cheguei para os ensaios resolvi interpretar um gato. Ficava andando de leve, quase na ponta dos pés, soltando miados suaves. Enquanto isso, o Antunes Filho estava lá, sentado e fumando. O resultado é que Vereda da Salvação foi um dos maiores fracassos do teatro brasileiro.”(Aplauso, p. 73)
Apesar de ser apenas uma fonte, ela é eloquente e permite sustentar um ponto de vista contundente – a crise atual do teatro brasileiro ainda é a crise do teatro moderno. Nasceu da incapacidade da classe de assumir sem constrangimento a singeleza do moderno, ato mínimo delicado como uma canção com João Gilberto.
Há, portanto, uma lógica implacável no processo histórico. Homenagear Ruth de Souza parece um ato simples – basta honrar o grande teatro, aquele que ela percebeu como um caminho para a libertação social, política, cultural, étnica e moral.
Consequentemente, o Rio de Janeiro deveria finalmente construir um teatro, num daqueles belíssimos casarões incendiados do Centro, para sediar o Teatro Experimental do Negro. Isto seria uma verdadeira homenagem.
O TEN erguido em memória à atriz seria um centro cultural no sentido maior do termo. Teria aulas de cultura geral e de cultura afro-brasileira, de teatro e de dramaturgia. Assinaria convênios com instituições congêneres do mundo, a Karamu House, por exemplo. Teria uma grande sala de espetáculos – Sala Ruth de Souza.
Duas madrinhas presidiriam o processo – a belíssima jovem IZA, um exemplo sublime de encanto brasileiro, e a irresistível dama da cena negra mais palpitante, Tais Araújo. IZA é de Olaria, Tais é do Méier, Ruth de Souza era do Engenho de Dentro – a magia suburbana precisa assumir o seu poder, para mudar a cidade.
E mudar o teatro. Inaceitável a inexistência de um teatro negro regular no Rio. Inaceitável a inexistência de um teatro negro carioca pródigo em palavras, pleno poder de pensar e dizer.
Talvez as palavras fujam quando as grandes damas partem e, no seu lugar, não vemos a permanência de seus nobres gestos. De que adianta louvarmos a grandeza absoluta de Ruth de Souza apenas com palavras, se as tais palavras são apenas sons fugidios vazios, não trazem obra elevada?
Evoé, Ruth – que tenhamos em breve um teto para, irmanados, falarmos da grandeza que foi ter, um dia, entre nós, junto do coração do teatro, você.
SERVIÇO
Cronologia básica de Ruth de Souza (1921-2019)
Teatro
TEN
o 1945 – O Imperador Jones
o 1946 – Todos os Filhos de Deus têm Asas
o 1946 – O Moleque Sonhador
o 1947 – O Filho Pródigo
o 1947 – Terras do Sem-Fim
o 1948 – Recital Castro Alves
o 1948 – A Família e a Festa na Roça
o 1949 – Aruanda
o 1949 – Filhos de Santo
o 1949 – Calígula
TEATRO DE CAMARA
o 1949 – Mensagem sem Rumo
CIA NYDIA LICIA – SERGIO CARDOSO
o 1952 – Vestido de Noiva
o 1959/1960 – Oração Para uma Negra
o 1961 – Quarto de Despejo
TEATRO BRASILEIRO DE COMEDIA
o 1964 – Vereda da Salvação
TEATRO POPULAR DO SESI
o 1967 – O Milagre de Anne Sullivan
MONTAGENS INDEPENDENTES
o 1978 – A Revolução dos Patos
o 1980 – Passageiros da Estrela
o 1983 – Requiém para uma Negra
o 1994 – Anjo Negro
o 1999 – 8 Mulheres