A arte e a solidão
Artista, solidão é o seu nome. Uma grande amiga, amante devota do teatro, me ensinou esta máxima singela e direta. Foi uma aula de humanidade e aconteceu de uma maneira inusitada. Vale rememorar.
A mestra improvisada, uma mulher de teatro de refinada sensibilidade, ficará para sempre na minha memória sentimental. O lugar cativo nasceu não apenas da constatação da sua inteligência social e humana. Além de tudo, há a qualidade estética dos seus trabalhos de figurino e cenografia: Lola Tolentino (1932-2015) faz parte da História do Teatro Brasileiro por suas criações cuidadas, de refinado cálculo estético e de extremo bom gosto.
A aula aconteceu de maneira muito simples. Na ocasião, eu acabara de ser demitida, abruptamente, do jornal Última Hora e estava chocada com o fato. No sábado, em São Conrado, seria lançado um compacto – um tipo pequeno de disco hoje fora de fabricação – de Marília Pera (1943-2015), com as músicas da peça Brincando Em Cima Daquilo (Tutta casa, letto e chiesa), de Dario Fo e Franca Rame. Eu fora convidada pela artista. Mas estava em dúvida se iria ou não, pois, de repente, eu não era mais crítica nem nada, era apenas uma esforçada professora de História do Teatro.
O telefone tocou, era Lola. Ela estava me oferecendo carona – naqueles tempos, eu não sabia dirigir, nem tinha carteira de motorista. Falei da minha dúvida. Ela rebateu com veemência – tinha certeza de que a atriz convidara a pessoa e não o cargo, por várias razões que vou omitir aqui, para não pesar no texto. Persisti na dúvida. E então…
Minha amiga Lola foi contundente: observou que provavelmente pouca gente iria, pois o lugar e o objeto, um compacto de uma peça fora de cartaz, não arrastariam uma multidão. Não cedi. Pois, então, ela lançou o argumento definitivo.
Frisou que a verdadeira condição do artista era a solidão. Fora da cena, longe das luzes, ainda que em plena celebração, o que existia mesmo era um ser solitário, perdido, vazio, sem sentido. Nestas horas, no seu entender, a amizade verdadeira, ainda que fosse distante, era um valor precioso na rotina da arte.
Fomos para São Conrado conversando sobre isto. No palco, ofuscado pelos holofotes e devorado pelos olhares, o artista se sente pura potência. É o criador da vida, do mundo, o próprio princípio de todas as coisas. No rés do chão, desprovido da grandeza essencial em que esteve enredado, o que vigora é o desconforto de uma humanidade banal, cotidiana, eterna incompletude.
Sim, eu reconheço, rememorada, a conversa está mesclada com tudo o que eu própria fui pensando a respeito desde então até hoje. Não conseguiria mais reproduzir secamente o que se falou. Isto acontece por uma razão trivial.
Gosto muito de tentar entender estas vidas mágicas, estes seres para o outro, em especial quando passam a ser existência simples. Tirar a maquiagem no camarim, reencontrar o mundo exatamente como ele estava antes de sua pequena revolução, como é isto? O voo ao infinito aconteceu para quê?
Antes deste dia, eu nunca tinha cogitado pensar nos atores a partir deste ângulo, o ser-pessoa-comum, igual a qualquer outro, depois da arte, mero artista nu. Um alguém que sobe num tablado, revira os sentimentos de todos de cima abaixo e, logo, está fora do olho do furacão, mãos vazias. Tanto furor e tudo passou.
Em São Conrado, encontramos uma Marília Pera frágil, hesitante, tocada por sua solidão fundamental de artista, feliz com a nossa presença. Apesar da fama da atriz, uma celebridade de fato e de direito, a casa não estava lotada, não havia uma enxurrada de fãs loucos por autógrafos. Guardo o disquinho com muito carinho. Talvez Brincando Em Cima Daquilo seja o meu espetáculo preferido de Marília Pera – ouso dizer.
Para tanto, tenho minhas razões, técnicas, históricas e pessoais. As razões pessoais são bem simples. Eu era curadora do Festival Latino de Nova Iorque no Brasil e precisava selecionar um ou dois espetáculos brasileiros para a mostra, espetáculos palatáveis para a plateia hispânica de Nova Iorque. Isto significa dizer que eu buscava cenas de atores intensos, com pouco texto em português ou texto conhecido, muito corpo, dança e canto se possível. E consegui – Deus e Guti Fraga sabem a trabalheira que foi – levar a peça para o festival.
As razões técnicas são bastante fáceis de reconhecer. Marília Pera era um monstro do palco, uma atriz dotada de plena expressividade, domínio eficiente da cena: toda a sua expressão e movimentação, a fala, o rosto, o corpo, aconteciam como fato estético orgânico de alta voltagem. Como se não bastasse, cantava e dançava como se estes fossem estados naturais do ser. Era inebriante ver como ela ficava incandescente no palco.
Um outro dado também tirava o coração da plateia pela boca com extrema contundência. Além da direção ágil de Roberto Vignati, o figurino de Chico Ozanam e Marcio Colaferro era chocante. A atriz representava vários personagens ao longo da peça, fazia um inventário dos impasses da condição feminina naqueles tempos, início dos anos 1980. As roupas possuíam uma base realista, para ilustrar figuras objetivas, mas possuíam também um colorido lírico; em certo momento, faziam Marília Pera esvoaçar, uma sugestão arrebatadora da própria definição do feminino. Coisa de maluco.
Há, ainda, a parte histórica, mais séria. O texto original foi concebido pelo casal Dario Fo e Franca Rame. Vi uma encenação de Franca Rame, sob a direção de Dario Fo, na Europa, antes de ver a versão brasileira. Não tenho nenhuma dúvida da qualidade atorial absoluta de Franca Rame, mas…
A concepção seguida pela notável atriz italiana, talvez em virtude de um forte cálculo brechtiano, era mais verbal, mais discursiva, menos envolvente. A cenografia, de gabinete, bastante convencional, o figurino único, a luz muito aberta, enfim, todas as particularidades da cena faziam com que o espetáculo, didático, não escandalizasse a sensibilidade como fazia Marília Pera na sua cena simples, despojada, porém inteiramente ocupada por aquele talento arrasador para por em suspenso a sensibilidade do mundo. Eu confesso: gostei bem mais de Marília Pera do que de Franca Rame.
Em Nova Iorque, depois da estreia no festival, caminhávamos pelas ruas para irmos jantar. Até então, eu tinha visto o espetáculo algumas vezes, por conta da escalação para o festival. E uma coisa me intrigava: nunca vi o mesmo espetáculo e nunca vi uma cena morta, requentada, depois de tanto tempo em cartaz. A renovação da cena era constante. Perguntei para Marília como ela conseguia.
E ela me deu uma resposta simples – “nunca deixo um espetáculo apodrecer.” O fluxo vital era um compromisso permanente. Ela se jogava em cena como se estivesse estreando. E era impressionante como ela saía de cena seca, murcha, exaurida, envolta na solidão mais abissal, aliás, uma coisa que naquele momento eu ainda não percebia.
Interessa pensar e falar sobre isto: poderíamos definir como a proximidade distante do artista. Ele pretende falar à intimidade mais remota, mas, para conseguir este feito, permanece longe para sempre. Talvez por isto esteja condenado a uma solidão tão profunda. Saiu de si, visitou o outro, flertou com os outros, mas o seu abrigo é em si mesmo e ele nem sabe se, de verdade, tocou alguém tanto quanto se doou. Aula de humanidade direta, acachapante: por isto precisamos tanto dos artistas, por isto eles são ameaçadores, por isto eles assustam os frágeis.
O mundo anda devagar. O tempo passa mas não absorve com facilidade as ideias e sensações novas que surgem, para melhorar a vida. O tema da mulher, suas prisões, ameaças, aniquilamentos, por exemplo, não sai de cena. Talvez agora tenhamos algum avanço, algum novo colorido, muito embora Tutta casa, letto e chiesa persista tão atual quanto nos anos 1970, quando foi escrito.
Interessante para este debate considerar duas estreias recentes. A primeira, Vale Night, texto de Renata Mizrahi e direção de Renata e Priscila Vidca, aborda justamente a pressão enfrentada pela mulher ao se tornar mãe. O foco incide sobre a solidão sentida pela mulher no ato da maternidade, um assunto tabu, pois a mulher estaria, exatamente, em estado pleno de doação.
Em cena, Aline Carrocino, Diana Herzog e Vilma Melo mostram mulheres mães de diferentes perfis. A intenção não é a de dar respostas, nem mesmo apresentar um drama documentário, mas desvelar um campo a um só tempo muito verdadeiro e muito ignorado, um tanto na esperança de que a cena participe de um novo florescimento feminino.
O outro cartaz interessante caminha para a exploração do que se poderia chamar de solidão arrogante, a solidão masculina, que finge não ser solidão por ser, ao contrário do tema da mulher, um lugar tradicional de poder. Só que o inventário, neste caso, privilegia um lugar de opressão e ofuscamento, a masculinidade negra. O espetáculo Oboró – masculinidades negras, texto de Adalberto Neto, estreia do dia 15, traz o novo não apenas no tema, mas na incorporação do universo Yorubá.
Oboró é a palavra usada para designar orixás do sexo masculino – cada personagem em cena apresentará características de um orixá. Isto quer dizer que Exu, Ogum, Oxóssi, Omolu, Xangô, Oxumaré, Osanyin, Logun Edé e Oxalá aparecerão nos desempenhos dos atores, escolha interessante por si, para ampliar a definição do universo de referências do teatro brasileiro.
A direção de Rodrigo França, pesquisador experiente, assegura a qualidade da cena. O elenco reúne atores de variada experiência – Cridemar Aquino, Danrley Ferreira, Draysson Menezzes, Ernesto Xavier, Jonathan Fontella, Luciano Vidigal, Marcelo Dias, Orlando Caldeira, Reinaldo Júnior, Sidney Santiago Kuanza e Wanderley Gomes. Vale conferir o que se tem a dizer aqui, neste desenho tão novo de um tema tão inusitado, de certa forma a fragilidade solitária dos poderosos homens. Se considerarmos que na outra indicação a pauta é a fraqueza solitária das mães, há o que pensar.
São trabalhos significativos, graças ao seu engajamento diante de grandes inquietações sociais do momento, dedicados ao estudo dos limites do espírito gregário. Valem muito para a análise de um dado crucial da solidão do artista. Ela é, fundamentalmente, uma forma muito elaborada de busca do outro, busca do outro como abstração, um gesto de quem se importa. O artista precisa ser só, ficar só, não por esquisitice, cansaço, amor à torre de marfim ou ataque de gênio.
A sua solidão, mesmo que às vezes um tanto desesperada, é a condição essencial da orientação verdadeira de sua arte – só na abstração da frivolidade do mundo, no mergulho direto, sem resistência, no espaço infinito das sensações, aquele que cria pode atingir a dimensão luminosa do humano. Tudo acontece na esfera do não dito, do inefável: a solidão é onde o artista vive, é o seu lar. Assim, ele inventa o outro, sempre uma suposição – em outras palavras, está aí o preço, sempre bastante elevado, para que possa fazer arte.
Serviço
“Vale Night”
Temporada: 02 de agosto a 01 de setembro.
Teatro Candido Mendes: Rua Joana Angélica, 63 – Ipanema
Telefone: 2523-3663
Dias e horários: sexta a domingo, às 20h.
Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia)
Duração: 1h
Lotação: 103 pessoas
Classificação Etária: 12 anos.
Assessoria de imprensa
Racca Comunicação
SERVIÇO:
“Oboró – Masculinidades Negras”
Temporada: 15/08 a 1º/09
Local: Teatro Sesi (Avenida Graça Aranha 1, Centro)
Horário: De quinta a sábado, às 19h, e domingos, às 18h.
Telefone: 2139-0016
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Duração: 90 minutos
Capacidade: 338 lugares
Classificação etária: 14 anos
Vendas: www.ingressorapido.com