Saudades do Brasil
Você sabe bem o que é o amor? Não sabe? Eu sei. E vou contar tudo aqui. Ele anda à sua procura. Outrora, diziam que o sentimento sedimentava o Brasil. De repente, o vento da História varreu as almas e, parece, para muitos, o amor secou.
Ah, não sofra, caro leitor. O teatro, este generoso pai dos humanos, não vacila: o amor está inteiro, fremente, em cena. Corra para ver. Pois está em cartaz uma aula de amor preciosa: Na Casa do Rio Vermelho – O amor de Zélia e Jorge. É logo ali, na Glória, naquele teatro lindo reaberto este ano, Teatro Prudential, sessão da tarde, último dia no próximo sábado, para não perder.
No palco, a partir de singela sugestão do ambiente da Casa do Rio Vermelho, Luciana Borghi nos traz, delicadamente, a doce figura de Zélia Gattai, musa, esposa e amada de Jorge Amado. A atriz se apaixonou pelo tema, estudou com dedicação o rendilhado da trama e, com texto, direção e cenografia assinados por Renato Santos, ela expõe um relicário de amor irresistível.
O verbo expor não é, aqui, gratuito. Registra com exatidão a ação da atriz. Luciana Borghi trabalha com uma intenção soberana, a um só tempo inteligente e sentimental, muito bem resolvida. A situação de base é uma narração, a princípio com uma tênue distância, exatamente a partida de Zélia Gattai da sua velha casa de família em Salvador. Num crescendo bem estruturado, ela se move para a emoção e nos transporta para um espaço de afeto puro, denso, reconfortante, iluminado e doído.
A dor, discreta como uma elegante ponta de saudade, nasce da vivência objetiva de um país que se perdeu, um ofertório da cena para a plateia. Jorge Amado, imerso em poesia, sua entrega aos valores da terra e da carne nacional, sua inteireza de amante declarado da mulher; Zélia Gattai, sua disposição para amar e para ser companheira, para olhar a cara do mundo – tudo isto está ali.
E estão ali também os fatos, as andanças, a formação da família, o riso e a história da literatura do casal, um Rio de Janeiro belacap, os rituais afro-brasileiros, Salvador de todos os deuses, as canções, muito da História do Brasil. Para completar o envolvimento, ampliar a cumplicidade, a parceria de Pedro Miranda, nas intervenções masculinas pontuais e na música, acontece com a naturalidade que associamos ao ser baiano.
Sob uma luz técnica, sem segredos, a emoção acontece límpida. É tudo muito simples e, no entanto, muito profundo. As secretarias de educação e cultura deviam agendar o espetáculo para professores e estudantes, decretar situação de necessidade educacional absoluta. No Rio, podiam encenar no Teatro Raimundo Magalhães Jr, da Academia Brasileira de Letras, e lotar a casa com a criançada. Precisamos, mais do que nunca, levar amor para as novas gerações.
Na cena, Zélia Gattai fala da entrega da Casa do Rio Vermelho para a sociedade – viúva, consciente do fim que se aproxima, ela sugere que tanto amor vivido ali precisa ser compartilhado. Diante do palco, olhos de emoção: a graça de Luciana Borghi nos abençoa com esta invenção cênica repleta de sentimento. Sim, a cena é comovente – invade a alma uma baita saudade do Brasil.
Mas não é só este amor que eu posso aqui mostrar para você. No teatro brasileiro existe um outro amor profundo, robusto, um sentimento que não se cala e dá sentido ao fazer teatral. Já adivinhou do que se trata? Sim – é o teatro musical. Digamos que, afinal, esta é a vertente teatral mais antiga praticada nestas terras. Uma arte teatral recente, nascida no século XVIII, com o iluminismo. Portanto – um dia tratarei deste assunto aqui – o teatro musical é o lugar por excelência da liberdade humana.
Naturalmente foi na terra do individualismo mais exacerbado – os EUA – que o musical, importado da França, da Inglaterra e da Alemanha, mais se expandiu. E viu nascer grandes gênios da arte: libretistas, músicos, coreógrafos, atores musicais… enfim, uma lista longa de talentos. Dentre tantos, Sondheim é um nome mais do que celebrado, unanimidade. E teremos aqui uma nova montagem de um dos seus musicais mais icônicos – Company volta ao cartaz, com Reiner Tenente no papel título, Bobby.
Em cena, em mais de uma abordagem, está o amor – o amor pelos musicais, expresso pelos autores e pelo elenco de nomes incríveis, o amor dos amigos por um amigo, o protagonista, exatamente incapaz de amar. Ou incapaz de fazer com que o amor tenha estabilidade na sua vida. A ação desta peça é uma grata surpresa, prepare-se para uma nova vivência emocional, pois ela desmonta a tradição da trama-enredo contínua. A ação gira ao redor do aniversário de 35 anos de Bobby, com músicas curtas comentando os personagens, em lugar de narrar uma história, um curioso caleidoscópio de emoções.
A obra foi criada em 1970 e mereceu 14 indicações ao Tony Award, conquistando seis – foi considerado o melhor libreto (George Furth), a melhor música (Sondheim) e o melhor musical. O elenco da nova produção brasileira reúne nomes de tirar o fôlego. Sob a direção de João Fonseca, direção musical de Tony Luchesi e coreografia de Victor Maia, além de Reiner Tenente, estarão presentes Helga Nemetik, Myra Ruiz, Cláudio Galvan, Cris Pompeo, Wladimir Pinheiro, Joana Mendes, Renan Mattos, Anna Bello, Stela Maria Rodrigues, Victor Maia, Rodrigo Naice, Chiara Santoro e Juliane Bodine.
Portanto, a questão neste caso parece simples – se não houver amor estável, coração em paz, namoro e casamento, como acontece na estranha síndrome que acomete Bobby, não se preocupe, leitor. Não faça drama – com certeza haverá amor ao musical e o feito deverá ser coroado com alguns prêmios.
Sim, você dirá que este exemplo de amor foi esquisito – alguém que não sintoniza o amor com estabilidade nem deveria ser cogitado para uma aula de amor. Discordo: não é que toda maneira de amor valha a pena, não, não vou recorrer a este argumento. Vou só observar, exatamente, que, por contraste, o problema de Bobby é o amor.
Aliás, a falta de amor – ou o amor atravessado, traiçoeiro – também diz presente numa outra estreia anunciada nesta semana: Diário do Farol – Uma Peça sobre a Maldade. Agora o assunto ficou mais complicado, pois a trama foi extraída da obra de João Ubaldo Ribeiro e o personagem central, sinistro no sentido mais antigo da palavra, será defendido num solo do excelente Thelmo Fernandes, sob a direção de Fernando Philbert. Prepare o seu coração, a criatura é má de verdade. E tanta maldade a cargo de um ator de intensos dons expressivos fará com que você, segundo o ousado critério da demonstração por absurdo, dimensione a infinita necessidade do amor. Macerado pela vida, o personagem irradia capacidade de destruição – ainda que ame, o seu amor não segue nenhum figurino azul e rosa e não conhece o limite da dor do outro. Uma pesquisa perturbadora. A esperança é a de levar o pensamento para este lugar de alquimia e transformação chamado teatro, quem sabe assim se possa entender um pouco mais o mundo.
Parece bastante, não? Mais do que isto, só se poderia cogitar desejar se estivéssemos num mundo azul – como já se disse que é a China. Por sinal, afinal, viva o amor: um ato de amor intenso estará nesta terça, dia 20, no palco do Teatro Ipanema, para celebrar José Wilker (1946-2014), ator, autor, diretor, homem de teatro. Um elenco de amigos fará justamente a leitura da peça A China é Azul, de sua autoria, encenação do mesmo teatro em 1972. Segundo declaração de Wilker ao jornalista Matinas Suzuki em 1996, o texto da peça nasceu de um belo gesto de amor.
O gesto foi de Rubens Corrêa. No Teatro Ipanema, ao lado de Ivan de Albuquerque e Leyla Ribeiro, eles montaram Hoje é dia de Rock, de José Vicente, mas a peça custou a fazer sucesso. Sempre inquieto, José Wilker escrevia um texto e, desencantado, jogava fora. Rubens Corrêa recolhia as páginas e, afinal, quando surgiu a conversa sobre um novo cartaz para substituir a peça que não pegava, ele surgiu com o calhamaço de páginas ao qual deu nome de A China é Azul. Foi a montagem seguinte, um texto cuja remontagem Wilker várias vezes impediu, com a convicção de que escrevera apenas uma declaração de amor à época, datada. A leitura de agora, além de trazer para o debate o perfil multifacetado de José Wilker, permitirá uma visão renovada do texto. Ou, ao menos, uma visita amorosa a uma época encantada, em que o teatro apaixonava e arrebatava as gentes, uma época em que paz e amor eram palavras de ordem flutuando sempre nos ares de então. Se paz exatamente não havia, o amor era uma rotina, uma prática bem mais visitada, algo que não se aprendia na escola, mas sim na vida, amando, vivendo, fazendo.
Ficha Técnica:
NA CASA DO RIO VERMELHO – O amor de Zélia e Jorge
Direção e texto Renato Santos
Interpretação Luciana Borghi e Pedro Miranda
Direção Musical Pedro Miranda
Direção de movimento Débora Veneziani
Direção de Produção Maria Siman
Luz Luiz Fernando
Cenário Renato Santos
Figurino Goya Lopes
Produção executiva Fernanda Silva
Programação visual Roberto Gobatto
Fotos Victor Hugo Cecatto
Serviço:
Teatro Prudential – Rua do Russel, 804, Glória – Rio de Janeiro/RJ
Dia: 24 de agosto – sábado, 17h
Duração – 70 minutos
Classificação etária – 12 anos
Lotação – 513 pessoas
Serviço
Company
Teatro SESC Ginástico
Av. Graça Aranha, 187 – Centro. Tel (21) 4020-2101
Gênero: Musical
Temporada: de 30 de ago a 29 de set
Dias: Quinta a Domingo
Horário: qui a sab às 19h e dom às 18h
Sesc Ginástico – Centro
Classificação: 14 anos
Duração: aproximadamente 150min
Valor: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)
Diário do farol – Uma peça sobre a maldade
Local: Mezanino do Sesc Copacabana
Da obra de João Ubaldo Ribeiro
Temporada: de 29 de agosto a 22 de setembro
Dias e horários: de quinta a domingo, às 20h
R. Domingos Ferreira, 160, Copacabana. Tels 2547-0156.
Bilheteria: das 9h às 20h, terça/sexta, das 12h às 20h, FDS
Ingresso: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia ou ingresso solidário, 1kg de alimento para o projeto Mesa Brasil, do Sesc RJ) e R$ 7,50 (associados Sesc)
Duração: 70 minutos
Classificação: 16 anos