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            Quem ri por último é o teatro

                                                         

Os sérios, por favor, me perdoem, mas o riso é fundamental. Os muito sérios – aqueles cujas covas laterais da boca buscam sempre o chão – esconjuro, me esqueçam. Não vou parar de dizer que a maior arma da inteligência é o riso. Molière que nos diga!

A lembrança surgiu de um emaranhado de coincidências. Primeiro, a situação brasileira ampla, geral e irrestrita, tomada por lances de estultice aptos para espantar o mundo e, tristemente – como não perceber? – dar motivos para a galera estourar de rir do Brasil. Viramos motivo de piadas – e, neste caso, para nós, não há graça nenhuma. Mas, convenhamos… não podemos reclamar de bullying.

Segundo, fui ver o interessante trabalho assinado por Gustavo Pinheiro e Rodrigo Portella, Os Impostores, cartaz até este domingo que passou no SESC Ginástico. É tão forte que deve voltar ao palco. E lá encontrei uma forma amarga de riso diante da elite-Brasil, desde sempre encerrada numa bolha de cristal (o mais caro cristal), para não ver a realidade lá fora.

Vale o parêntese curioso – não sei bem como se dá esta parceria entre diretor e autor. Devo declarar, ao vivo e a cores, que torço pelos autores, talvez porque eu própria seja uma, e fico sem entender como um autor encaminhado para a maturidade autoral escreve em parceria com o diretor. Não, calma na coxia, nada contra os diretores. Em especial, nada contra o mais do que inspirado Rodrigo Portella. É só uma luta-de-classe num país em que o autor sempre teve pouco espaço de poder. Mas voltemos ao assunto.

O caso é  que a peça recém vista, Os Impostores, busca sua inspiração central em Molière, autor absoluto, revolucionário e monumental do Ocidente, o mestre ardiloso capaz de conceber Tartufo. Acho que talvez seja a hora de aclamarmos Jean Baptiste Poquelin (1622-1673) como o maior autor da civilização ocidental.

Sim, maior do que Shakespeare, por três motivos imbatíveis. De saída, não temos nenhuma dúvida de que ele existiu. Segue-se que foi ator até morrer – uma condição que nos impede de atribuir a invenção, de muito do que escreveu, ao palco, aos atores ou à produção coletiva: ele presidia a cena. E, finalmente, por sua ousadia incendiária permanente, de pensar por si e escrever em desafio à estupidez de sua época, mesmo diante dos maiores estúpidos poderosos da corte, do governo, do clero.

Vale o destaque – Molière foi inspiração decisiva para Martins Pena, Artur Azevedo e João Bethencourt, para fazer uma conta rápida. E nem inclui Antonio José da Silva, para não ampliar a polêmica, pois, nascido no Rio de Janeiro, o judeu foi um dramaturgo português.

Dito isto, confesso uma ranhetice: alguém explica como, diante desta herança, não temos uma tradução eficiente das obras completas de Molière para o português? Outra implicância, no meu entender muito justa – por que não existe aqui uma escola de dramaturgia, uma escola dedicada à arte do riso, especializada no grande mestre, no trato dos autores locais e na formação de novos comediógrafos? O mercado é favorável, pois existe campo amplo para o riso no país.

Bom, não foi só a presença de Molière no texto de Pinheiro e Portella que me levou para estes pensamentos. No mesmo dia em que fui ver a peça, dei aula na escola de teatro e, terminada a classe, diante de um assunto batata quente do teatro brasileiro, fui com mais dois alunos até à biblioteca procurar um livro. Infelizmente a obra não faz parte da coleção. Mas… no balcão de entrada da biblioteca, alguns volumes estavam dispostos para o descarte – entre eles uma revista famosa, um número raro: Travail Théâtral número 4, de setembro de 1971, com Hélène Weigel na peça A Mãe, de Gorki, direção de Brecht, na capa.

Aceitei o régio presente, peguei a revista para mim. Já conhecia o número, alguns artigos se tornaram obras de referência dos estudos teatrais, mas não lera tudo. E nas páginas finais encontrei uma grande surpresa: uma crítica ensaística assinada por Jacqueline Jomaron dedicada à encenação de Tartufo em Moscou, sob a direção de Lioubinov.

O texto, bastante longo, foi escrito para leitores amantes do teatro, não se inclina para as demandas do espectador comum. Assim, não há qualquer insistência no trato de Molière e de sua obra – um francês amante de teatro não precisa deste tipo de esclarecimento, se é que algum francês efetivamente precise. Importa, na verdade, num certo grau, traçar algumas condições da prática teatral em Moscou – uma cidade repleta de arte.

Mas… detalhe: o fato se deu antes da queda do muro. Portanto, havia uma norma oficial regendo a vida da arte. Iouri Lioubinov exercia a função de encenador no Teatro Moscovita de Drama e de Comédia. Trata-se de uma sala pequena que alcança sucesso. A crítica descreve a casa como um lugar que não figura sempre nos programas oficiais e na qual há  alternância de espetáculos de grande qualidade. O conjunto na ocasião apresentado tem impacto.  Reúne Dez dias que abalaram o mundo, de John Read, A Alma Boa de Tse-Tchuan e A Vida de Galilei, de Brecht, A Mãe, de Gorki, O que Fazer, adaptação de Tchernichevski, Pougatchev, de Essenine, O Antimondo, de Voznezenski, Escute, de Maiakovski e finalmente Tartufo, de Molière.

Apesar do sucesso da casa junto ao público jovem e apaixonado, comenta a crítica, em 1970 o Comitê do Partido da Cidade de Moscou, com o objetivo de estudar as tarefas necessárias para melhorar o futuro do trabalho ideológico junto aos trabalhadores, os intelectuais e os artistas, apresentou um certo número de propostas pouco favoráveis ao pequeno teatro. Linha tensa de interlocução.

O jornal A Rússia Soviética, órgão do Comitê Central do Partido, revelou que diversas críticas foram feitas à organização do Partido a propósito do teatro, em particular em razão falta de influência do Comitê na composição do repertório e na vida criativa desta comunidade. Observa-se que o Partido não deu a ajuda necessária para o desenvolvimento dos gostos marxista-leninistas, no momento em que as condições da luta ideológica aguda entre o socialismo e o capitalismo impunham que se atribuísse uma importância cada vez maior às produções da literatura e da arte.

E qual a peça do conjunto se destaca por ser a mais polêmica, a mais atacada? Tartufo, de Molière, sem dúvida. A estreia em 1968 provocou um tal escândalo que a montagem foi retirada de cartaz. A encenação deu origem a inúmeros artigos na imprensa. A polêmica mais incendiária envolveu uma revista popular de grande tiragem – Ogonok – e a revista especializada Théâtre, esta a favor da casa. A grande restrição à montagem reside na busca de uma comunicação popular, uma passarela capaz de estabelecer vínculos divertidos entre três séculos,  mas que não traria nada que se identificasse com as novas forças sociais, segundo os detratores.

E o quê a montagem apresentava de tão impactante? Além de cortes e adaptações do texto, para fazer com que a sua essência falasse aos homens contemporâneos, Lioubimov incluiu na encenação as lutas de Molière, durante cinco anos,  para obter a autorização para representar Tartufo. A dinâmica da montagem pode ser resumida a partir da crítica. Dos dois lados da cena, em dois camarotes dourados, marionetes de Luis XIV e do Cardeal Hardoin de Péréfixe assistem ao espetáculo.

A representação começa com a leitura da primeira petição ao rei em favor da liberação da peça, feita pelo ator encarregado dos papéis de Orgon e de Molière, com a trupe de joelhos pedindo clemência. Mas o marionete-rei não autoriza a montagem, a cortina do camarote se fecha e os atores começam a representar com roupas de ensaio, como se ensaiassem. Eventualmente são interrompidos pelo ator que faz Molière/Orgon, com instruções técnicas.

 A chegada inesperada de M. Loyal com uma mensagem que renova a interdição real interrompe a função. O personagem Orgon/Molière se dirige de novo ao rei, apresentando a segunda petição, também refutada. O jogo se repete ainda uma vez, com a súplica ao cardeal, que aprova a representação. Sob um ar festivo, gritos de aclamação do rei, os atores vestem os figurinos. Repassam, então, com mímica rápida, caricatural, os três primeiros atos, acompanhados pelo ruído ininteligível do som em “rewind” de um gravador com as falas da peça. Finalmente, a peça é apresentada – com a cena em que Tartufe e Orgon estão sós. No final, os atores avançam em passos cadenciados para o público, para pedir indulgência para Tartufo, prisioneiro, e para a montagem.

Confesso que fiquei espantada com a crítica por trazer uma imagem forte da história da peça. O tamanho da herança ao redor de Tartufo, um texto capaz de tirar do sério a esquerda e a direita, parece impalpável. A história da peça, tão contundente, diz muito a respeito do poder do teatro. Mas só tem efeito se as pessoas forem ao teatro, se houver a necessidade da arte na vida de cada um – sem o envolvimento da sociedade na fina malha da cultura não há como inserir a força libertadora do texto no cotidiano de todos.

Pior do que o rei absoluto ou a igreja obscurantista, só o cidadão dissociado de sua existência cultural. Esta situação de treva social cria os teatros vazios. situação que tende a se tornar rotina por aqui. E acaba se revelando a maior censura  contra a arte, pois faz com que ela se torne impossibilidade plena. Neste redemoinho selvagem, o infinito poder do riso se perde, incapaz de libertar as pessoas.

Tudo indica que a urgência do momento é bastante clara – levar o teatro para a vida das pessoas, antes que a vida deixe de ser um valor. Para instaurar a liberdade de ser – coisa fácil de conseguir através do riso – o teatro precisa se tornar parte do cotidiano. Assim, dá para fugir daqueles que se engessam na seriedade, negam o riso, sujeitos de bem pouca humanidade.

Serviço: registro de peça passada

Texto: Gustavo Pinheiro e Rodrigo Portella
Direção: Rodrigo Portella
Direção de Produção: Claudia Marques
Elenco: Carolina Pismel, Guilherme Piva, Murilo Sampaio, Pri Helena, Suzana Nascimento e Tairone Vale.
Colaboração Dramatúrgica: Carolina Pismel, Guilherme Piva, Mariah Valeiras, Murilo Sampaio, Pri Helena, Suzana Nascimento e Tairone Vale
Diretora Assistente: Mariah Valeiras
Cenário: Julia Deccache
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Direção Musical e Música Original: Marcelo Alonso Neves
Figurinos: Tiago Ribeiro
Visagismo: Vitor Martinez

Aderecista: Bidi Bujnowski

Preparação Corporal: Toni Rodrigues

Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Gestão de Redes Sociais: Flávia Garcia
Programação Visual: Raquel Alvarenga
Fotos e Filmagem: Elisa Mendes
Produção Executiva: Jéssica Santiago
Assistente Administrativo: Luiz Fernando Lopes
Idealização: Claudia Marques e Gustavo Pinheiro
Produção: Fábrica de Eventos

Serviço

Local: Teatro Sesc Ginástico – Av. Graça Aranha, 187, Centro, Rio de Janeiro.
(próximo a Estação Carioca do Metrô e do VLT)
Temporada: 31 de outubro a 1º de dezembro de 2019. Quintas, sextas e sábados, às 19h, e domingos, às 18h. 
Ingresso: R$ 7,50 (habilitados Sesc), R$ 15,00 (estudantes e idosos) e R$ 30,00 (inteira).
Funcionamento da Bilheteria: terça a domingo, das 13h às 20h.
Telefone da Bilheteria: (21) 2279-4027
Capacidade de Público: 513 lugares
Classificação Etária: 16 anos