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Adeus, teatro velho

Passa o ano e sempre nos iludimos, achamos que chegou a hora e que alguma coisa muda, de estalo, de um dia para o outro. No fundo, bem sabemos, a vida continua no mesmo trilho, pois obedece a ciclos muito mais longos do que uma passagem de ano…

De qualquer maneira, a cronologia registra o ano civil, o ano de virada do livro caixa, o exercício fiscal. Portanto, a virada conta, na prática ela fecha gavetas, impõe balanços. E aí, é batata – tentar ver o saldo do que aconteceu acaba se tornando uma maneira útil para avaliar o andamento da vida em geral.

Para o teatro, o ciclo de curta duração encerrado em um ano é um inventário tímido para localizar tendências e procedimentos. A rigor, em arte, os projetos precisam de mais do que um ano para florescer. Mas existem os prêmios, os currículos profissionais e empresariais. E acabamos olhando o que foi proposto através da ótica da gestação curta.

O risco é precisamente este: seguir um foco isolado e rápido, aclamar prematuros, como se fossem criaturas adultas, consolidadas em sua existência. Um desafio para quem faz arte, um desafio ainda maior para os que gostam de pensar arte.

Neste tom, olhar o teatro carioca de 2019, o ano que se vai, pensar as suas tessituras e esgarçamentos, surge como um exercício bastante peculiar. Trata-se de um convite para a afinação das ideias teatrais. Quem sabe se consegue romper com a ótica ingênua, ir além da aclamação simplista de mitos, beldades, seduções dignas de velhas misses?

Duas grandes razões tornam importante o esforço de pensar o ano que se encerra neste momento. A primeira, é reconhecida por todos – mais do que em qualquer palco do mundo, o teatro carioca vive uma violenta crise. Sim, ainda e sempre há ao longe o tema desgastado da morte do teatro. Porém, aqui e agora, ele está apenas na superfície do caso.

Se a morte do teatro – ou a crise do teatro – se apresenta em geral como o problema da crise da representação, na prática carioca existe também uma crise institucional. Aqui, a coisa acontece de forma bem esquisita. Temos uma crise toda especial para chamar de nossa, como se o teatro tivesse morrido antes de existir. Neste aspecto, o teatro brasileiro – ops, carioca – deve ser visto como um castelo mal assombrado, repleto de almas penadas. Na verdade, temos um teatro mal assombrado.

A segunda razão nasce deste redemoinho: também aqui somos contemporâneos e vivemos no palco a crise da representação. Quando debatemos a crise da representação, falamos de uma prática de arte que não consegue mais representar o ser do seu tempo. 

A nossa existência fragmentária, rompida, esfumada de hoje se recusa a ser traduzida como uma totalidade, como a ideia do belo, como uma composição estável. Daí surge a necessidade das experiências, do disperso e incompleto e da apresentação imediata – a performance. As linguagens de arte esfumam as fronteiras, a arte cênica se aproxima das artes plásticas e das artes em geral.

O problema carioca – ou, ops, brasileiro – aparece quando percebemos que, a rigor, não se conseguiu, por aqui, constituir a tal da representação ideal, total, universal e inteira. Nosso teatro não apaixonou a todos, não carregou a sociedade no colo, não circulou como moeda corrente ou fala coletiva de impacto. Como consequência, o teatro de experimentação acontece como arte mínima, plateia mínima, politicamente enfraquecido.

Há, assim, entre nós, uma crise primeira, muito nossa, uma falência da arte. Um bom tema para pensar é que esta seja, possivelmente, a verdadeira situação colonial: um projeto de representação que não consegue ser representação.

Então, em lugar da crise convencional do teatro, que varre o Ocidente, temos uma pororoca-morte – um estrondo cênico. A representação impossível deseja dialogar com a crise da representação. Resulta daí uma arte que, quem sabe, pode ser fatal para o palco, ao transformá-lo numa prática local, de iniciados, uma vida de gueto. Pois instauramos poéticas dedicadas à crise da representação sem que a própria representação tenha sido efetivamente proposta.

Neste jogo, poucos são os espetáculos encenados que anseiam – e que conseguem – buscar o olhar do conjunto da sociedade. Todas as sociedades do nosso tempo necessitam de grandes espetáculos, precisamos viver dinâmicas coletivas. Por aqui, no entanto, só contamos com o carnaval, o futebol e os grandes shows de música popular.

O teatro renunciou a este lugar – ou não conseguiu ocupá-lo. De certa forma, tornou-se tímido enquanto construção de arte. São raras as exceções, produções de alguns poucos poetas da cena, no caso do teatro declamado, e, importa reconhecer, para uma grande parte do teatro musical.

Esta marca, a timidez de fatura, aparece bastante no ano que passou – a constatação não implica considerá-la boa ou ruim,  muito embora ela possa levar a uma lamentável redução do papel social do teatro. Louve-se, portanto, a grandeza do teatro musical, que assinou obras capazes de sacudir as tábuas da cena e do coração.

Neste estatuto, duas montagens em particular foram retumbantes – A Cor Púrpura e O Despertar da Primavera. As duas montagens tiveram o mérito excepcional de lançar nomes novos – e de extrema qualidade artística – na cena. A Cor Púrpura contou com uma direção de grande felicidade, assinada por Tadeu Aguiar, hábil tanto na direção de atores quanto cuidadoso no equilíbrio da alquimia do palco.

Sob a temática da conquista social do protagonismo negro e feminino, a montagem trouxe um debate transcendental para a sociedade brasileira. Além do viés étnico e de gênero, tocou-se na grande chaga da alma brasileira, o calvário do indivíduo e, nesta nossa sociedade de castas, o sofrido espaço reservado ao empreendedorismo.

Bem resolvida  na luz, na cenografia e nos figurinos, A Cor Púrpura lançou para o estrelato a jovem Letícia Soares, dotada de refinado carisma e bela voz. No elenco, desempenhos impactantes foram construídos por Lilian Valeska e Flavia Santana, ao mesmo tempo em que Alan Rocha demonstrou a sua maturidade profissional absoluta num requintado papel de coadjuvante cômico.

O Despertar da Primavera, uma remontagem de dez anos atrás, lavrou um tento semelhante – foram os dois maiores espetáculos cariocas do ano.  A direção de Charles Möeller, obra impressionante em 2009 por ser uma excepcional direção-não réplica, autoral e de extrema criatividade, surgiu agora mais refinada, pois o artista assinou também a direção de movimento.

A ideia da cena castradora, vertical, foi retrabalhada na cenografia de Rogério Falcão, agora evocando uma espécie de bunker social, um convento presídio cinzento, com impacto surpreendente graças à luz mágica de Paulo César Medeiros. Os figurinos surgiram mais poéticos, como se a época de opressão se estendesse ao longo de todos os tempos, notável concepção de Marcelo Marques.

O mesmo saque de Möeller em 2009 – as cenas musicais construídas como espaços mentais de expressão juvenil – ampliou a força do ousado musical, uma obra desconcertante em si, que juntou rock ao texto do século XIX. A opção tornou a peça de Wedekind mais contundente e, na criação brasileira, com notável tradução de Cláudio Botelho, arrasou as sensibilidades.

Afinal estamos numa sociedade em que o espaço da juventude, sob espesso véu de cinismo social, é irrespirável. Para completar a revolução, nomes novos de extrema competência foram apresentados às plateias, com vozes e desempenhos dignos dos mais cobiçados prêmios: Rafael Telles (Melchior), Tabatha Almeida (Wendla), João Felipe Saldanha (Moritz), Maria Brasil (Ilse).

A cena foi tecida como linguagem teatral de extrema sofisticação graças ao encontro entre drama e uma massa musical correta, bem executada e colorida de dor, libertação e denúncia. Defendendo os papéis adultos – os opressores sociais – Bel Kutner e Augusto Zacchi estiveram impecáveis.

A força do musical se afirmou ainda graças a uma delicada versão de Company, direção de João Fonseca, com Reiner Tenente liderando um elenco de total competência musical: estiveram em cena nomes nobres tais como Stella Maria, Myra Ruiz, Helga Nemetik, Wladimir Pinheiro, Victor Maia, Cristiana Pompeo. Um ponto alto foi a cenografia despojada de Nello Marese, um jogo sofisticado de caixas de presentes movido pelos atores sob luz espiritual de Luiz Paulo Neném.

Outros espetáculos musicais de grande fatura trouxeram debates e visões de cena inovadoras:  Merlin e Arthur ousou lidar com as projeções em cena num grau monumental, combinou MPB com grandes temas da literatura. Meu destino é ser star experimentou costurar as músicas de Lulu Santos  a um jogo dramático autônomo.

Vale ressaltar que qualidades cênicas exemplares também estiveram presentes em montagens musicais de pequeno porte – Cole Porter – ele nunca disse que me amava, Grandes Encontros da MPB, Oboró masculinidades negras, Quebrando  regras – um tributo a Tina Turner são grandes exemplos. Dramaturgia original, reversão dos paradigmas do musical biográfico ou temático e pesquisa avançada de temas étnicos foram as apostas. 

O vasto tema da solidão e dos embates do individualismo, caro à tradição dramatúrgica norte-americana, inundou a cena carioca, com a oferta de um vasto mergulho no desespero existencial contemporâneo. Paulo de Moraes, liderando o seu grupo teatral, a Armazém Companhia de Teatro, assinou uma montagem a um só tempo pungente, generosa e sofisticada de Angels in America.

Patricia Selonk e Joca de Moraes contracenando em cena num texto de absoluta densidade humana foram um episódio da História do Teatro. Para algumas sensibilidades cariocas puristas, a montagm foi chocante por ter sido financiada por São Paulo.

O mesmo carimbo estadual, paulista, no orçamento, permitiu que muitos esfumassem o estrondoso acerto estético assinado por Gabriel Villela na sua encenação de Estado de Sitio, de Camus. Numa montagem autoral límpida, contundente, em profunda sintonia com a cenografia de J.C. Serroni, Gabriel Villela coloriu a cena com o desespero de Goya e com o deserto existencial nacional.

A direção de movimento, voltada para o hierático e o painel de forte sugestão bidimensional, alcançou notas sublimes com a música de Babaya Morais e Marco França e os desempenhos desconcertantes de Elias Andreato e Claudio Fontana. Uma cena para não esquecer jamais.

A lista a percorrer tem certa extensão, portanto. Não se trata de condescendência ou visão parcial. Se olharmos o ano teatral que passou sob a ótica da busca dos diálogos e proposições, a conclusão natural  é a de que 2019 passou nos palcos com um elenco alentado de contribuições para a dinâmica teatral. Um exemplo importante pode ser situado na prática dos monólogos.

Cálculo Ilógico, de Jéssika Merkel, atriz e autora, trouxe o tema da autoria a um só tempo dramatúrgica e interpretativa, a partir de uma visão teatral absolutamente contemporânea, o trato das vivências pessoais. A cena-texto nasceu a partir do mergulho da atriz em suas emoções e, sob a supervisão do diretor Daniel Herz, surgiu algo que se poderia chamar de encenação orgânica.

Uma outra visão do mesmo campo, de um ângulo diferenciado, esteve presente em 3 Maneiras de Tocar no Assunto – união de relato, representação e performance, num desempenho mágico de Leonardo Netto, sob a direção inspirada de Fabiano de Freitas.

Arrebatador por focalizar um assunto tabu, ou no mínimo perigoso, Thelmo Fernandes, abordou, sob um colorido intenso de representação emocional entremeada de relato, a sedução do mal. O Diário do Farol, direção precisa de   Fernando Philbert, conquistou um impacto estético chocante graças ao jogo entre cenário (Natalia Lana) e luz (Vilmar Olos), capaz de sugerir a água, o isolamento e a instabilidade da alma – referências fundantes do trabalho do ator.

Muitos outros temas persistem por avaliar. A questão da autoria e dos valores atuais da dramaturgia estiveram no alicerce de Embarque Imediato, de Aldri Anunciação, bem como no espetáculo-depoimento-ensaio Meus Cabelos de Baobá, texto e atuação de Fernanda Dias. Freud & Mahler, de Miriam Halfin, surpreendeu ao se revelar um texto de desenho autoral muito sensível.

Um beijo em Franz Kafka, de Sergio Roveri, Relâmpago Cifrado, de Gustavo Pinheiro, 40 anos Esta Noite, de Felipe Cabral foram marcas importantes para o debate acerca da dramaturgia. Ariano, o cavaleiro sertanejo, texto e direção de Ribamar Ribeiro, comprovou a densidade que pode ser conquistada a partir do artesanato de grupo, marca de Os Ciclomáticos Companhia de Teatro.

Ainda no tom de trabalho de grupo, mas a partir de uma história mais recente, ainda que com uma equipe muito integrada, O cego e o louco, de Claudia Barral, impôs o desejo de que a Lunática Companhia mantenha um ritmo intenso de produção, pois a beleza da cena construída é alentadora.

E tanto mais se poderia assinalar: a invenção teatral excepcional de As Crianças, direção monumental de Rodrigo Portella, marcada não só pelo assunto contundente, a profunda crise ética e moral do mundo e da ciência hoje, mas, sobretudo, pelo desempenho fulgurante do elenco, reunindo Analu Prestes, Stela Freitas e Mario Borges. Em contraponto, se poderia exaltar a pureza das linhas de criação vigentes na direção de Gustavo Wabner, para Sylvia, uma comédia romântica – aquilo que se poderia chamar de bom e velho teatro comercial de qualidade, o teatro nosso de cada dia, que tanto nos falta.

Ou se poderia ainda registrar o impressionantemente belo cenário de Bia Junqueira para Eu, Moby Dick. Seria importante assinalar o clima de invenção vigente na instalação teatral Nastácia, direção ousada de Mia Yanagisawa , com ambientação criativa de Ronaldo Fraga, a partir de dramaturgia de Pedro Brício.

Sobretudo, do painel do ano que passou não se poderia omitir o nome de Ariadne Mnouchkine na direção brasileira de As Comadres.  Mas, acima de tudo, não se poderia jamais esquecer do prazer que foi ter em cena este ator irresistível que andou sumido, para o sofrimento da vida teatral – Pedro Paulo Rangel encantou a todos que foram vê-lo com o seu irrepreensível O ator e o lobo.

São algumas pequenas marcas, impressões delicadas, anotações discretas de um tempo curto. Um ano apenas. Vale ver, porém, quanto esta corrente temporal chispante trouxe para marcar a nossa sensibilidade. Algo deste legado ficará nos nossos olhos, corações e pensamentos, para que tenhamos sintonia com a marcha do mundo. Este ser passageiro chamado teatro não acontece em um ano – mas num ano ligeiro que passa ele transporta para um lugar mágico as potências das nossas vidas.

Serviço:

A coluna entra em férias – só volta em quinze dias.