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Para onde vai o teatro?

Na grande festa do Oscar, vi dois fatos retumbantes. Primeiro, uma busca para transformar o cinema em patrimônio do mundo, universal. Segundo, o esboço, muito palpável no teatro, mas que se espalha hoje um pouco por toda a parte, de transbordar a arte da cena para a plateia, um feito mais difícil no cinema, claro. Entendi, por isto, a fascinação oferecida por 1917.

Desconfio que transbordar signifique conhecer, saber a quem o fluxo criativo está se dirigindo. E esperar uma resposta. Nesta leitura, na cerimônia do Oscar, o discurso de Joaquin Phoenix, ao ganhar o trófeu de melhor ator, não foi um ato independente, isolado do contexto, antes realçou as cores de uma nova individualidade muito engajada nas razões do nosso tempo.

Talvez se possa dizer que a humanidade está mudando, de uma forma mais acelerada, em busca de ser… humanidade! Uma massa sensível antenada com o amor, o belo, a elevação do espírito. Neste caso, estas pessoas diferentonas, esquisitas, cheias de manias, que se acham especiais – os artistas – caminham para desaparecer? Afinal, o que é e quem é o artista?

Para muita gente, artista é uma espécie de alma penada: tira o sossego dos indefesos seres comuns, não sabe se mover direito no real, não tem muita ideia do que vem a ser dinheiro, cotidiano, etc. No Brasil, há um vínculo antigo preconceituoso entre vagabundagem e arte, uma das heranças da engrenagem colonial e escravista.

Ficamos presos no latifúndio, na ciranda da agro-exportação e da especulação. A industrialização acontece  por sustos e surtos, sobrevive engasgada. Fazer dinheiro é uma atividade entre o maldito e o grotesco. Vivemos no reino dos papéis, não exatamente teatrais – escrituras, ofícios, requerimentos, processos, burocracias, carimbos e quetais. Puro século XVIII.

No Rio de Janeiro, a falência acelerada da pequena indústria local se deu a partir dos anos 1920, com muitas fábricas de tecidos e de gêneros alimentícios fechando. Num jogo simultâneo, passou a crescer de forma admirável a construção civil, cega. Desertificação da cidade, a paisagem virou engrenagem para fazer dinheiro. Poucos jardins, remotas praças e escassa construção de teatros, sem a expansão proporcional da oferta de assentos.

Em consequência, apesar do século XXI e da imensa máquina de arte e lazer que conquista o mundo e transforma as gentes, é difícil falar em mercado de arte ou em estruturas de produção de arte por aqui. Assim, não temos um movimento amplo de difusão social da arte e da cultura.

Arte e cultura seguem como fazer e consumo setorizados, segmentados, como se existissem incontáveis homens brasileiros. A nossa humanidade tem cep e cpf, não é um valor social geral. Difícil, neste caso, tentar falar em uma arte do Brasil. São artes dos Brasis, na realidade. Não temos nem mesmo um teatro de encantamento nacional – uma  brasodway – apesar dos esforços de São Paulo.

Se alguém discordar, topo discutir: penso que o povo do Oscar olha aquele mar de artistas (e relacionados) na plateia e sabe bem com quem está falando. Há uma identidade. Historicamente construída. Eles são uma turma e sabem o que são. Quando, durante a eletrizante performance de Cynthia Erivo na canção Stand Up, de Harriet, o coro ganhou os corredores da plateia, sugeriu que aquele era o povo cantado na letra, chamado pela liberdade, apesar do tema real ser a dilacerante luta contra a escravidão e a guerra civil.

Tudo isto sem que a plateia – uma plateia de ouro, digamos –  precisasse sacudir os braços, fazer hola ou cantar um trálálá. A união  palco-plateia estava expressa e consolidada através da performance, apesar, como se falou em algum momento, dos matizes, na classe, quer dizer, dos conflitos e impasses, serem imensos. Há um talento, uma vocação e um negócio que os une.

Desconfio que não existe uma identidade artística comparável por aqui. Não sabemos quem é a classe artística nacional. Nem mesmo a classe teatral, que vive em bando, sabe de si. Sabemos, com certeza, que a classe teatral é muito jovem e é flutuante – o teatro é uma espécie de arte-dormitório, onde as pessoas fazem barulho antes de ir fazer outra coisa. Outra coisa séria.

Pois então, aqui, uma bela lição do Oscar. A necessidade de trabalhar para unir a classe teatral brasileira. Não é tarefa fácil por uma razão simples: ela não existe. Existem classes teatrais locais com vivências e necessidades bastante disparatadas. Uma larga parcela da classe não vive da arte: há desde mesada do papai até bolsa de estudos e salários das mais diversas profissões.

Não temos um recenseamento – nunca foi feito um censo teatral. Seria importante, neste momento histórico em que se deseja tanto ter poder e fala, que cada segmento do teatro  se unisse e apresentasse as suas qualidades, necessidades, reivindicações. Se nada for feito, continuaremos a ser canja rala pobre para doente grave, envoltos num expressionismo espontaneísta epidérmico.

Uma consequência interessante desta alienação de si é que, quando a nossa arte do palco pretende ser performativa, investir na identidade palco-plateia, explorar a famosa arte teatral de participação, esta integração não é do tipo Stand Up, como na canção do Oscar. É, antes, puro tralálá, sacolejo e transbordamento emocional pessoal imediato. Ainda fazemos os números de plateia da velha revista.

Em duas peças em cartaz no Rio, na semana passada, vi o uso do jogo de cena de inclusão da plateia. Nos dois casos, os recursos técnico-interpretativos do palco eram bastante rasos. Num, apesar da boa performance musical, a linha de representação dos atores ombreava com a habilidade de improviso dos alunos iniciantes do Tablado.

No outro, um ator experiente, mas sem especial temperatura cômica, a cavaleiro de um texto muito fraco, tentou em vão fazer a plateia se divertir. Talvez humor paulista para cariocas, quem sabe? Nenhuma graça. Nos dois casos,  apesar da animação histérica existente no primeiro espetáculo, o profissionalismo, o artesanato, a maestria da arte passaram longe, foram trabalhados fluxos expressivos superficiais. Emanações incapazes de semear identidade.

Diante das duas cenas, parecíamos estar diante de formas antigas de celebração, como os velhos festejos de corte ou de arraial, repletos de efeitos gratuitos, regidos por um mestre de cerimônias entre o descuidado e o entretido consigo mesmo. Neste jogo, a rigor, o público não importa, ele é qualquer coisa. Há um autoritarismo da cena, a imposição de uma fórmula e não a abertura de um canal de expressão sensível.

 Portanto, estamos caminhando para o teatro festa, em larga medida a negação da arte da cena. Falar em diluição da cultura no Brasil é sempre oportuno: mas é urgente perceber que a doença também é interna, não é apenas imposta por algum inimigo exterior.

Nos agradecimentos pelo Oscar de melhor filme, uma senhora da equipe de Parasita agradeceu ao apoio dos exigentes amantes de cinema que integram o público da Coréia do Sul. Surpreendente. Vale ouvir bem a sua fala. Demonstrou que existe circulação cultural na Coréia do Sul, público de cinema e devoção, dos cineastas, à arte, o bastante para aprender com as críticas exigentes… do público!

Quem é o nosso público de teatro? Ele ainda existe? Ou só temos apenas plateias circunstanciais, movidas por sensações várias e mutantes? Se o público existe, o que ele tem a dizer? Ele gosta do teatro que lhe é oferecido? Existe um lugar criativo teatral consolidado entre nós? Por que tantas casas vazias – e shows cheios?

Olhar o Oscar – uma festa de cinema – me fez dimensionar a imensa perda de teatralidade do teatro brasileiro contemporâneo. Não, não estou falando mal da vanguarda ou da vanguardite, prato fácil. Estou falando da nossa arte teatral mesmo. Somos os senhores da arte, os reis do palco – mas só deveríamos ter este lugar depois de ouvirmos o público. A pergunta é simples: cadê o teatro que estava aqui?

Se o palco não se enamora pelas palavras e imagens poéticas, difícil construir parcerias. Se o público não se sente arrebatado pela poesia apresentada em cena, sinal de que ela morreu. Bloco de carnaval, de animação, de arranque, de clóvis, de sujo, isto tem aos montes por aqui, somos mestres no ramo. O que falta é a bela palavra na cena, aquele velho poeta que abre os braços, solta o verbo e nos enleva. A bela palavra está morta, é isto?

De São Paulo chega um eco estranho – a absoluta Irene Ravache, dirigida pelo mago Elias Andreato, retorna à cena com o seu sucesso de público do ano passado – o monólogo Alma Despejada. Após esta nova temporada no Teatro Folha, o cartaz de sucesso anuncia viagem ao Rio.

Poderemos conferir, na ocasião, o grande mistério que envolve a peça – Teresa, a protagonista, uma senhora distinta, já morreu. É uma alma penada a vagar pela sua casa-lar, agora vendida e, portanto, condenada a ser abandonada. O texto é de Andréa Bassitt, autora também do adorável As Turca, de tanto sucesso.

O mistério, contudo, não está nem na trama nem na encenação, mas no fato da montagem ter sido detonada pela crítica. Não adiantou. Os críticos puseram tudo abaixo, mas a sutileza da cena e a delicadeza da arte de Irene Ravache, palpável nas fotos e filmes da internet, fez a plateia vibrar. Ao que tudo indica, o teatro aconteceu. Vale esperar para conferir, o episódio importa muito para o debate franco acerca de teatro no país hoje.

Enquanto esperamos, podemos ler o texto: a Editora Giostri lançou neste domingo passado, na etérea Casa das Rosas, na Avenida Paulista, o volume com a peça. Sorte grande, não? O teatro precisa ter esta existência complexa, com uma dinâmica de mercado vária, da cena às diferentes formas das páginas impressas.

Este é o ritmo que precisa ser seguido. Consolidar a arte do teatro como vivência cultural. A cena não se contem em si, no palco. Ela transborda também num sentido objetivo, concreto, real, se instaura na sociedade.

Ao fazê-lo, ela constrói caminhos expressivos para o transbordamento artístico, poético, além das sensações. Surge um teatro vivência que não é para esquecer, não é o gozo epidérmico do carnaval que passou.

Por estas e outras, o teatro não morre. Às vezes fica suspenso por um fio, olhando a festa dos outros, até tentando ser festa. Logo, reage, para nosso profundo conforto humano. Ao reagir, oferece a todos a chance de brindar à arte, irradiar a força de vida artística visível na festa deste Oscar que passou…

Alma Despejada

Autora: Andréa Bassitt

Editora: Giostri

Preço de capa: R$ 39,00. Nº páginas: 80. 14 cm x 21 cm.

http://www.giostrieditora.com.br

Serviço espetáculo

Espetáculo: Alma Despejada

Temporada: 10 de janeiro a 29 de março/2020. Sextas (21h30), sábados e domingos (20h)

Classificação: 14 anos. Duração: 80 minutos. Gênero: comédia dramática.

Ingressos: R$ 80,00 (Setor A) / R$ 70,00 (Setor B) – com meia-entrada.

Teatro Folha – Shopping Pátio Higienópolis – Av. Higienópolis, 618 / Terraço. SP/SP.

Tel.: (11) 3823-2323. Televendas: (11) 3823-2423 / 3823-2737 / 3823-2323.

Vendas online: www.teatrofolha.com.br. Estacionamento/Shopping: R$ 19,00 (primeiras 2h).

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Eliane Verbena / João Pedro

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