Varal de Vidas

 
Ela voltou. E veio turbinada, mais escandalosa do que nunca, cáustica, irreverente, disposta a tudo para zoar a vida medíocre dos seres vazios, os que não conseguem escapar da manada cega, os que não encontram um sentido nobre para nortear a vida.
E ela vai de novo horrorizar os doutos de plantão, os escravos das letras metafísicas mofadas e do palco transcendental. Os defensores dos nobres personagens de extração requintada, fiéis adoradores de uma dramaturgia herdeira dos grandes salões aristotélicos, vão perder a paz, não dormirão mais, tranquilos, em suas poltronas alcatifadas.

 

Senhores, voltou o tempo de rir – e rir muito. A velha comédia de costumes está mais uma vez entre nós, afiada, enfatiotada dentro da roupa justa do nosso tempo. Com uma diferença: não há qualquer cálculo apaziguador agora, não há o aceno a favor de uma diversão gratuita, dispersiva. A cândida sala de visitas de outrora, lugar eleito para a ação das nossas velhas comédias em uma rotina capaz de gerar a designação comédia de sala de visitas, foi banida, virou uma lavanderia. E que lavanderia – na verdade, uma sala de visitas de almas encardidas, impossíveis de lavar.

 

O texto de Fernando Ceylão tem a marca da atualidade em sua fatura: em lugar de ação dramática, talvez se pudesse falar em descrição dramática, uma forma de ação em que as personagens, espécies de personas vazias, ocas, descrevem a sua falta de opção existencial. A rigor, o autor desenhou um painel da alma brasileira hoje, parte assustadora de um caos existencial urbano aterrador, povoado por seres sem perspectivas, distanciados de uma visão ética do mundo. Não seria absurdo localizar na cena uma paródia da realidade política brasileira, uma réplica sagaz da Brasília sem lei que horroriza a todos.

 

Na direção, Guilherme Piva revela uma compreensão profunda dos mecanismos dramatúrgicos e das possibilidades estéticas e políticas do original: levou o quadro de humanidade-limite às últimas consequências, estimulou a ousadia dos atores e obteve uma cena de alta temperatura teatral. Envoltos na excelente cenografia de Aurora dos Campos, uma mistura de lavanderia sórdida com casa de entulho que vai além do hiper-realismo, emoldurados pela luz detalhista de Maneco Quinderé, os atores exploram o vazio de cada personagem até um grau de tensão próximo ao patético.

 

São quatro pobres diabos derrotados diante de tudo, que ambicionam conquistar um sentido monumental para as suas vidas. A sua mesquinharia existencial é registrada de forma direta pelo figurino, de Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues. Vladimir, o cérebro da cena, se impõe como uma espécie de atualização do malandro gigolô de outrora, o sujeito a um só tempo arrogante e sedutor, obtuso, desempregado e bon-vivant maltrapilho, uma construção requintada de Marcelo Valle, dos meneios do olhar até a ginga do corpo.

 

Ele é o namorado de Clívia, protótipo de loura burra sensual e carente, uma figura desenhada por Leticia Isnard com filigranas de emoção, da ingenuidade insinuante até a suposição de algum vago poder, pois ela herdou a modesta lavanderia que sustenta a todos (ou a quase todos) em cena. O contraponto ao par romântico é feito por figuras de apoio, um casal de comparsas, Primo e Regina, figuras que colaboram para a definição do casal central e ampliam o leque de apresentação da indigência urbana.

 

Primo figura como o parceiro limitado, simplório e parvo, ironizado por todos, um zé mané capaz de garantir aos parceiros a ilusão de inteligência, desempenho definido com extrema sutileza por Álamo Facó. Ao seu lado, sem um compromisso de afeto estável entre os dois, está uma amiga de Clívia, Regina, diabólica, intrigante, cerebral a seu jeito, primoroso desempenho de Inês Viana.

 

A apresentação da situação teatral estende um pouco a duração do espetáculo, mas nada acontece sem função. A qualidade dos trabalhos de ator, sem dúvida beneficiados por uma direção de movimento de extrema riqueza (Marcia Rubin), não permite que o tédio possa cogitar se instalar; explora-se a linha do mostrar e do sugerir, do contar e do apontar, porém sob intensa expressão imediata. O quarteto planeja, para sair da vida medíocre e da mesmice emparedada, sequestrar um homem que seria rico, um ex-patrão de Regina. A indigência de tudo é amplificada pelo fracasso do plano, derrubado por acaso.

 

No saldo final, o prazer da plateia tem gosto amargo. Apesar do riso solto, generoso, o espetáculo tinge de vermelho uma sociedade dilacerada, implodida, derrotada em seu potencial humano graças à falência da arte política, mecanismo de convivência social que deveria impor a busca pelo melhor de cada um. A nova comédia de costumes brasileira – ou de maus costumes – segue com brilho as funções maiores do gênero, a de fazer com que a cena transborde em crítica ao jogo social real e a de levar a plateia a pensar o sombrio cenário humano em que vive. Que bom vê-la de novo por aqui: que a sua presença nos anime a tentar mudar nem que seja algum pequeno detalhe da tragédia brasileira, um pouco da miséria de nós mesmos. Não deixe de ver, de modo nenhum.


Ficha Técnica
Texto: Fernando Ceylão
Direção: Guilherme Piva
Elenco: Marcelo Valle, Letícia Isnard, Inez Viana e Álamo Facó
Assistente de direção: Danilo Rosa
Cenário e objetos: Aurora dos Campos
Iluminação: Maneco Quinderé
Assistente de cenografia: Ana Machado
Figurinos: Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues
Direção de Movimento: Marcia Rubin
Supervisão musical e desenho de som: Marcelo Alonso Neves
Direção de produção: José Luiz Coutinho
Fotos: Fabio Seixo
Projeto: Guilherme Piva e Marcelo Valle
Realização: Marcello Valle e Oficina Teatral Produções Artísticas
Serviço
Estréia: 18 de abril (sexta)
Temporada: até 08 de junho
Horários: 21h (De quinta a sábado)/ 20h (domingo)
Preço: R$ 60, 00
Local: Teatro Laura Alvim
Endereço: Av. Vieira Souto, 176 – Ipanema
Telefone: 2332 2015
Duração: 90 minutos
Classificação Etária: 12 anos
Horário de funcionamento da bilheteria: de terça a sexta (16h às 21h)/ sábado (15 às 21h)/ domingo (15h às 20h)