Quando a cena é poesia
Dois símbolos absolutos da liberdade humana estão em cena: o trem e o teatro. A delicadeza do tratamento do tema, a insinuar que a liberdade é um bem maior ao alcance de todos, é obra da Argentina. Portanto, corra para ver, aproveite para estreitar as suas relações com o país irmão – Como se um trem passasse, de Lorena Romanin, autora e diretora argentina, está em cartaz no Teatro Poeirinha. É um espetáculo de excelência, teatro em tom maior.
Também, pudera, a Argentina conhece teatro tanto como qualquer hábil maquinista domina a sua locomotiva e governa os seus trilhos. Os hermanos não sofrem de preconceitos de arte, não acham que devem derrubar os teatros para se meter em galpões de pura pesquisa. Portanto, vale avisar de saída, dá para resumir a montagem em duas palavras – beleza irresistível. Do texto à cena, só há razão para ser feliz, saudar a crença no lado guerreiro da vida, aquele que o teatro ama mostrar.
A trama fala de um núcleo familiar sofrido, perdido num interior em que a grande relação com o mundo é a linha dos trens. A ferrovia traz o progresso e o sonho – e o perigo de se soltar no mundo. Suzana (Dida Camero), a mãe, ficou paralisada pela vida, como se tivesse sido atropelada por um trem, aquele sentido ruim do progresso. Ela teve um filho, Juan (Caio Scot), rejeitado pelo pai, e precisa ajudar a irmã da cidade a enquadrar a filha, Valéria (Manu Hashimoto), adolescente rebelde.
Suzana se desdobra para manter a vida modesta nos trilhos, mas o filho nasceu com necessidades especiais. Diante do desafio, solitária, ela vive em estado de perplexidade, ainda que seja professora, e não sabe muito bem como lidar com o garoto instável que passou a vida no seu colo e, agora, fato irremediável, se torna adulto e quer olhar o mundo.
O texto de Lorena Romanin tem todos os méritos da peça bem estruturada. A situação dramática se apresenta clara, objetiva, e há uma progressão da ação acelerada, cumulativa, resolvida, no final, por uma peripécia desenhada com sutileza. Trata-se de um texto muito positivo, daqueles que acreditam na vida, no potencial humano, na transformação das pessoas, mas sem pieguice ou apelação.
A direção da autora aposta todo o gás na valorização do trabalho dos atores. Segura, ela conseguiu estruturar um jogo de cena harmonioso, intenso, estabeleceu uma bela sintonia no elenco. Trata-se de uma contracena quente, pulsante, capaz de elevar a temperatura da plateia, arrastada pelo fluxo de emoções.
Caio Scot impressiona por sua notável capacidade de caracterização, que lhe permite elaborar um trabalho denso, difícil, sem mecanicidade qualquer, sem sentimentalismo ou auto piedade. Dos gestos truncados à voz, tudo nele ecoa como vontade de viver. Trata-se de um jovem ator notável, senhor de amplos recursos técnicos e de muita garra. Ele não representa, simplesmente se joga, sem rede, e leva a plateia junto.
Dida Camero traz uma parceria de alta voltagem – a sua mãe tem o desespero, o afeto, a carnalidade e a voracidade da mulher que, sozinha, precisa bancar o mundo para a vida acontecer. Lição de humanidade, Suzana é professora, quase uma professorinha, aquela que sabe do seu tamanho e não se envergonha de sua pequena obra. Esta grandeza de pura modéstia, comovente traço do desempenho, permite que se transforme e cresça.
Manu Hashimoto, menos experiente, mas muito engajada, estabelece uma tensão admirável no jogo dramático, com a sua jovem a um só tempo rebelde e ingênua, curiosa diante das ofertas do mundo. A atriz consegue transformar os maneirismos jovens do seu tempo em indícios universais de inquietude.
Para ambientar e mostrar este jogo de personalidades em conflito, em família, vitrine palpitante do eterno desafio entre o lar e o mundo, há uma cenografia de teatro de requintado artesanato, assinada por Dina Salem Levy. A casa, de madeira, encanta como sugestão de acolhimento e ninho, história ancestral de todas as famílias, pois lá na origem a humanidade toda teve um barraco para chamar de seu.
No ambiente único, uma sala de visitas de família simples, acontece a realidade e o sonho – se assim pudermos classificar o desfecho, uma cena teatral de intensa poesia, esculpida também pela luz magnifica de Renato Machado. A luz passeia na cena desenhando emoções, intenções e almas, para explodir num louvor ao viver no final.
Vale ressaltar, portanto, o acerto conceitual da cena, uma montagem em que a ideia de teatro circulou como moeda preciosa pelos fazeres e teares da equipe. O figurino, de Julia Marques, tem adequação precisa aos perfis, com alguns detalhes chocantes de tanta beleza – como o vestido-avental cor de ovo da mãe, a roupa com pinta de pijama de Juan, com impressionantes bolsos vermelhos, um senhor símbolo da situação.
Vá ver, portanto, pois a sua vida necessita disto, teatro em estado puro, estado de graça, aquela graça que significa renovar o coração. Observe, ao se emocionar, a beleza impressionante da paleta de cores escolhida, que faz com que, no desfecho, a cena pegue fogo, numa alquimia sofisticada de emoções, cores, luz. Eu sei, leitor, que você não precisa de mais nada para se reconciliar com a vida, fora isso – então, vá lá, não hesite. Pegue carona neste trem de progresso da alma chamado teatro e viaje, livre, nessa coisa rara tão redentora que costumamos chamar de poesia.
Texto e direção: Lorena Romanin
Elenco: Dida Camero, Caio Scot e Manu Hashimoto
Cenário: Dina Salem Levy
Luz: Renato Machado
Figurino: Julia Marques
Idealização e tradução: Caio Scot e Junio Duarte
Produção Executiva: CAJU
Como se um trem passasse
Teatro Poeirinha
Quinta a sábado, 21h; domingo 19h
Até 14 de abril de 2019
Duração 70 minutos
Classificação 12 anos
Ingressos: R$ 60 e 30
Rua São João Batista 104 Botafogo – RJ
21 2537 8053
www.teatropoeira.com.br
Assessoria de imprensa
Meise Halabi
Tagged: Caio Scot, Como se um trem passasse, Dida Camero, Dina Salem Lavy, Julia Marques, Lorena Romanin, Manu Hashimoto, Renato Machado, teatro argentino, Teatro Poeirinha