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Paris: de todas as almas, de todas as missas

Talvez algum dia, por um feliz acaso da sorte, você tenha tido a chance de estar num lugar de sonho. Um lugar daqueles em que as suas melhores expectativas estiveram alertas, para serem, com felicidade, atendidas.

 

Ou pode ser que isto tenha sido sempre só um sonho: o gostinho de passear por um lugar do mundo apaziguado, dominado pela alegria de viver, um cantinho para curtir como um aconchego seu. Enfim, um lugar ideal para a sua alma.

 

Seja lá como for, aproveite e celebre a vida. Está em cartaz no horário alternativo do Teatro Maison de France um acontecimento teatral adequado para reviver este tipo de sentimento, a busca do momento em que o melhor de si esteve livre, amando o seu ao redor, em comunhão com o mundo… Formidable!

 

A proposta é irresistível, em especial se alguma vez na vida você se encantou com o charme de viver tipicamente francês. Pois o espetáculo honra esta vertigem de sensações positivas, faiscante como uma taça de champanhe, um momento refinado de evocação sentimental. Sim, aproveite, a temporada será curta, repito: vá ver… Formidable. Na cena, as memórias, a voz e a elegância de Mauricio Baduh. Na plateia, você, envolto numa seleção refinada de canções francesas.

 

Trata-se de um espetáculo solo autoral muito especial – talvez pudesse ser definido com razoável justiça como uma performance, tipo de obra tão ao gosto dos jovens hoje. Pois a cena foi tecida com memórias e vivências do ator, levado a viajar ainda criança com toda a família para a cidade de Paris. Portanto, o projeto tem a assinatura dele na concepção.

 

A composição da cena criada por Mauricio Baduh registra com inteligência apurada o contorno geral da proposta: no palco, está uma espécie de lar da canção. No primeiro plano esquerdo, há uma sugestão de sala de estar doméstica. Ao fundo, um cenário esculpido mistura símbolos-ícones de Paris – a torre Eiffel, o casario, as luzes – e materializa a França de imediato no olhar. À direita, um habilidoso conjunto musical, numa formação bastante francesa de piano, contrabaixo, bateria, sax-tenor e acordeom, faz a honra máxima do acontecimento sob a regência impecável de Liliane Secco. Em síntese, para usar uma palavra muito adequada ao estilo francês, um luxo.

 

Líder absoluto da cena, Maurício Baduh confirma a sua qualidade de intérprete sofisticado – além da voz agradável, bela, afinada, ele tem uma temperatura de galã arrebatadora. Trata-se de um tipo de ator em que o princípio masculino se apresenta sob uma alquimia complexa (e irresistível, para a sensibilidade feminina) – ao mesmo tempo, ele é contido e vigoroso, romântico e cavalheiro, sonhador e mundano, elegante e descontraído, cartesiano e impulsivo, tímido e saidinho.

 

Nesta condição, ele apresenta as canções sempre sob uma aura sentimental precisa, objetiva mesmo, mas intensa. E desfia histórias e memórias com humor refinado, sob um perfeito sentido de tempo. Conversa com a plateia, preocupado em fazer a cena tocar de verdade o sentimento do auditório. Visível amante da música, ele usa o corpo de maneira altiva para ampliar o pulso das apresentações musicais.

 

Vale frisar, em especial, que as histórias são deliciosas e, hoje, o francês do rapaz é impecável. As aventuras narradas mostram uma família classe média brasileira rumando para Paris, para acompanhar a transferência do pai, com o seu séquito de mal entendidos hilários, naturais em situações de desconhecimento do idioma e da civilização da nova terra. Elas traduzem, ainda, como e quanto o fascínio cultural – o francesismo – se estabeleceu na alma do pequeno, para toda a vida.

 

Naturalmente, a canção de abertura é Ma Vie, de Alain Barrière, seguida de C’est si Bon, de Henri Betti, cartões de visita objetivos para ilustrar o que se pretende dizer com a cena. O roteiro percorre clássicos absurdamente amados por todo e qualquer admirador da cultura francesa – lá estão obras de Charles Trenet, Adamo, Charles Aznavour, Jacques Prévert, Jacques Brel e este tesouro absoluto da humanidade chamado Michel Legrand. O fecho, claro, cabe a Edith Piaf. Portanto, se você tem uma fibra que seja do seu coração ligada na França, nem cogite deixar de ir ver.

 

Até porque, importa destacar, alguns momentos ultrapassam os limites do belo, convidam a alma da plateia a flutuar em arrebatadoras sensações musicais. Se Mauricio Baduh desconcerta as almas com Hier Encore, muito bem resolvida à la manière de Charles Aznavour, a forma encontrada com Liliane Secco para Les parapluies de Cherbourg e Les moulins de mon coeur é para chamar o cardiologista. O ator-cantor se define em definitivo, com este trabalho, como um chansonier – por ironia, podemos acrescentar, ele se chama Mauricio, como Maurice Chevalier.

 

E qual é, afinal, a magia perturbadora capaz de explicar o poder desta cena singela? Na verdade, o espetáculo traz para a plateia um sentimento brasileiro profundo, pouco explorado na cena dos tempos recentes, mas muito corrente no nosso teatro do século XIX: a sensação nômade, migratória, errante, fugidia. A sensação de pleno desconforto nacional. Costumávamos considerar que éramos o país do futuro, uma terra por fazer; vivíamos portanto um desencontro com o presente, realidade desagradável, condição determinante de uma alienação sui generis.

 

Graças a este sentimento, dilacerante mas apaziguador, nos sentimos (e até nos tornamos) cidadãos ciganos do mundo, almas errantes, senhores de ninguém, seres livres para voar, como se gerados por uma terra inamistosa, apátria em lugar da pátria. Esta erradicação cívica com certeza favoreceu a nossa inclinação para amar Paris, mesmo de longe, ainda que de longe, vertigem sentimental por aqui bem desenvolvida a partir do século XIX. Com bastante facilidade, evidentemente, pois não é preciso insistir muito para que Paris e a França se tornem paixões profundas. Afinal, a História conta de um rei que proclamou, de costas para o seu protestantismo, que Paris bem valia uma missa.

 

Por isto, Formidable é tão sensacional. Arrebatador, insisto. Trata-se de um caso, de simplicidade comovente, de flerte com o nosso eu profundo. Ao lado de uma qualidade requintada de carpintaria teatral, um desempenho primoroso, uma sofisticação impressionante na concepção e na criação da música, somos arrastados para um redemoinho de sentimentos históricos latentes, profundos, favoráveis de saída a uma imensa empatia.

 

Formidable tem, portanto, a ousadia louvável de expor nossas heranças culturais mais secretas, aquelas que denunciam as nossas fantasias de traição-pátria, e de revelar um porto seguro histórico dos nossos seres. O abrigo requintado dos corações delicados daqui está em cena. Afinal, queiram ou não os verde-amarelistas mais exaltados, se houve na História um lugar capaz de nos encantar como lar da nossa alma, ontem, hoje e para sempre, este lugar cidade luz se chama Paris.

 

 

FICHA TÉCNICA


Texto, direção, roteiro e atuação: Mauricio Baduh
Direção Musical: Liliane Secco
Piano: Liliane Secco
Contrabaixo:Tássio Ramos
Bateria: Carlos Almeida
Acordeom e Sax Tenor:Roberto Bahal
Produção: MBADUH
Design e Operação de Luz: Leandro Mariz
Design e Operação de Som: Carlos Ferreyra

Serviço

Formidable
Temporada: 13 de junho até 04 de julho
Horário: quinta às 19h
Local: Teatro Maison de France
Endereço: Avenida Presidente Antônio Carlos, 58 – Centro – RJ
http://teatromaisondefrance.com.br/#emcartaz