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A falha da ciência, a certeza do amor

 
A cena, em linhas delicadas de rara beleza, sugere ser uma lâmina de microscópio: ciência no palco, ciência do palco. Sob as lentes – o olhar do espectador – dois seres inusitados, pessoas de aparência estranha. Um homem sorumbático, perdido em si, uma moça desequilibrada, quase inconveniente, perdida no mundo. Para o pensamento corrente cotidiano, o saber miúdo de todos nós, duas pessoas descartáveis, desagradáveis, até. Impossíveis protagonistas de uma história de amor.

 

No entanto, a vida não pode ser tão simples. A antiga certeza aristocrática, preconceituosa e discriminadora, origem da nossa mania de rotular as pessoas, está sob nocaute no mundo de hoje. Esta constatação simples, iluminada, é o centro do delicioso texto Heisenberg – A Teoria da Incerteza, de Simon Stephens, cartaz do Teatro Poeira. Deseja saber do que se trata, numa palavra? Pois bem, lá vai: imperdível. Corra para ver. Trata-se de uma peça que parece simples, simula candura, mas é rascante, densa e, o melhor de tudo, divertida. A encenação, quase uma demonstração científica, vai fazer uma grande diferença na sua vida.

 

No palco, uma jovem mulher de aparência desequilibrada – a sensacional Barbara Paz – tenta seduzir um homem bem mais velho, o inefável Everaldo Pontes, uma daquelas criaturas secas cujo projeto aparente parece ser se confundir com a parede. Mas, com a progressão da ação, estas impressões vão se esvair sob as lentes, ao longo dos diferentes encontros da dupla.

 

A estrutura do texto anda em círculos, como se fossem etapas de testes de laboratório. Ao final, a montagem nos dá a certeza de que a humanidade é um amplo tecido, algo que transborda das lâminas. A montagem brasileira, com tradução e adaptação de Solange Badim, condensou o original, acentuou este movimento, ao concentrar a ação no jogo da dupla.

 

A concepção do diretor Guilherme Piva apostou tudo na força da palavra como processo de revelação humana sensível: a fala e o corpo traçam um fluxo crescente, sob uma sintonia impressionante. Para tanto, ele deixou os atores em estado de liberdade, imersos na exploração dos limites dos personagens. E contou com a direção de movimento de Marcia Rubin, hábil meio para obter corpos palpitantes de palavras.

 

Manteve, contudo, a cena sob um enquadramento rigoroso, que evoca, precisamente, a lâmina dos microscópios, um desenho reforçado graças à cenografia de Sergio Marimba e à luz de Beto Bruel. O desenho de cena surgiu impecável, o resultado obtido foi uma geometria belíssima.

 

Assim, um longo banco praticável impõe uma horizontalidade forte ao espaço. Manipulado pelos atores, ele se multiplica em funções – é banco de estação de trem, mesa de refeição, banco, cama, plataforma para voar uma vida de sonho ou fugir da vida. Ele se completa por blocos móveis aptos para reforçar a geometria e prontos para servir à ação.

 

O fundo da cena, reforçando a horizontalidade, é destacado graças a placas gradeadas, também elas encarregadas de múltiplas funções, desde os cartazes da estação de trem até o carregamento de carne do açougue. Sob a luz preciosa, abissal mesmo, de Beto Bruel, a sugestão de um espaço para observar seres se consolida. Em vários momentos, as cores escolhidas pelo iluminador, fortes, sublinham esta concepção. Os figurinos, de Antonio Rabadan, fixam bem a lógica das personalidades e da ação, a música de Marcelo H intensifica as situações e sublinha os climas.

 

De certa forma, é como se a cena fosse desenhada por um estilo híbrido, um simbolismo expressionista, no qual pequenas referências delicadas oferecem motivos para o desenho de emoções intensas. Estas emoções são expostas, sugeridas, exploradas e podem ser, a seguir, desconstruídas.

 

Em consequência, elas se apresentam de forma impressionante, numa contracena de intensa teatralidade. Barbara Paz não economiza tensão para expor a mulher estranha, desprezada, mal amada – ignorada mesmo – que vive em permanente desconforto existencial, mas, ao contrário do que se poderia supor, trabalha com crianças. São impressionantes os sentidos que a atriz consegue reunir, para a definição da personagem, através de pequenos gestos e trejeitos.

 

Everaldo Pontes se notabiliza graças à densidade na construção de Alex: um espetacular apagamento diante do furor feminino. O impacto nasce do homem-nada, rechaçado pela vida, solitário, desimportante. Os gestos contidos e a fala seca escondem o açougueiro, alguém que retalha carnes, mas, contudo, ouve música como se fosse um poeta.

 

A rigor, a montagem apresenta uma história de amor com final feliz, ainda que em suspense. Uma história do tempo atual, um tempo em que o protagonismo pode ser de todos e de qualquer um, pois a História detonou o velho hábito preconceituoso de desqualificar as pessoas através dos rótulos pejorativos. Não existem mais galãs e damas ingênuas e não é possível saber ao acerto para onde caminham as histórias de amor.

 

Por isto, segundo o andamento das cenas, o mais notável no espetáculo acaba sendo o implacável exercício da dúvida, a refutação de conclusões fáceis, do tipo cqd (como se queria demonstrar), grato à velha ciência. Ao recorrer à teoria da incerteza, filha dileta das pesquisas científicas mais avançadas do nosso tempo, o texto nos leva para perto da vida, liberta e simples. A teoria da incerteza nos entrega, em paz, ao jogo irracional da existência cotidiana – ou seja, apenas confusão, percepção relativa em estado puro, sob uma aura de beleza bem requintada, cara ao teatro, por ironia, tudo aquilo que o microscópio, caçador de certezas, não nos deixaria ver.

 

Ficha Técnica
 

Autor: Simon Stephens
Tradução e adaptação:Solange Badim
Direção: Guilherme Piva
Elenco: Barbara Paz e Everaldo Pontes
Direção de movimento: Marcia Rubin
Iluminação: Beto Bruel
Cenografia: Sérgio Marimba
Direção Musical: Marcelo H
Figurino: Antonio Rabadan
Programação Visual:Cubículo
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Coordenação Artística: Valencia Losada
Produção Executiva:Thiago Miyamoto
Assistente de produção: Eduardo Alves
Direção Geral:Verônica Prates
Produção:: Quintal Produções

Serviço:
Espetáculo: Heisenberg – A Teoria da Incerteza
Estreia convidados: dia 12 de junho (quinta, às 20h)
Temporada: de 13 de julho a 02 de setembro
Local: Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104 – Botafogo – RJ. Tel.: 2537-8053)
Horário: quinta a sábado, às 21h | domingo, às 19h
Ingressos: R$70,00 (inteira) | R$35,00 (meia)
Duração: 80 minutos
Classificação: 16 anos
Gênero: comédia dramática
Horário de funcionamento: terça a sábado, das 15h às 21h | domingo, das 15h às 19h
Vendas online: http://www.tudus.com.br/
Site: www.teatropoeira.com.br