Assustados do bem, no Rio de Janeiro
Confesse sem medo: você anda vivendo de sobressalto em sobressalto, no susto, se esgueirando na vida. E sabe muito bem que a chance de acabar logo com isso não está no horizonte, é imprevisível. Pois, então, o que não tem remédio, remediado está, reze para que Susto, o cartaz mais divertido da temporada, que esteve até este domingo de pré-carnaval no Teatro dos 4, volte ao palco.
Para o espírito carioca, amante da irreverência diante de si e diante de tudo, o hilário Susto, texto virtuoso de Saulo Sisnado, é imperdível de verdade, coisa para chorar de rir. Mas acabou, para a tristeza geral de todos. Então, fazer o quê? Só nos resta torcer para que esta oportunidade tão sintonizada com o espírito da cidade não nos abandone, reencarne, retorne do além-cena para nos ajudar a aliviar os horrores nossos da atualidade. A cidade merece!
Você, leitor, deve estar intrigado, se perguntando qual o segredo de tanto sucesso, capaz de motivar uma crítica póstuma para uma peça fantasma? Não se espante. Em primeiro lugar, há o tom inusitado, a exploração de um gênero muito rico, dotado de enorme potencial, mas pouco trabalhado ainda nesta terra de tantas assombrações.
O que acontece no palco é, digamos, uma comédia de terror. Ou, antes, teatro de terror para rir. Ou teatro de rir para zoar com o terror, com as artes em geral dedicadas a flertar com o medo. Vou ser muito honesta: dá para rir tanto que até se consegue empalidecer os outros sustos, nada agradáveis, do nosso cotidiano carioca azedo.
O texto é uma inspirada brincadeira com o mundo dos filmes de terror, com a literatura de terror e de ares sombrios, com as grandes estrelas e o universo louco de vida das celebridades-cinco-estrelas dos tempos platinados de Hollywood, Hitchcock em especial. Há um turbilhão de referências de arte, sempre inspiradas, muito bem pensadas e engraçadas demais, desde a teatralidade de Os Mistérios de Irma Vap até os policiais de Agatha Christie. Descobrir as citações é uma das diversões.
Para acompanhar as lufadas vertiginosas é preciso estar atento. O fluxo de criação não para, segue um ritmo insano. As soluções formais do texto passeiam pelas diferentes modalidades do cômico, da farsa à paródia, do melodrama ao besteirol, uma maratona para tirar o fôlego da plateia. Há, contudo, uma entrega total da equipe à proposta – não há hermetismo, pretensão ou esnobismo, é para rir mesmo. Quem não quiser enveredar pela metalinguagem, também vai se divertir, mesmo sem desvendar as armações mirabolantes da turma.
Este resultado potente não nasceu do acaso ou da sorte. Susto confirma a receita para que se obtenha o melhor teatro, pois a peça foi produzida com o tesouro mais precioso da arte: o trabalho de equipe continuado. O conjunto, Os Surtados, está em atividade desde 2003, quando estrearam Surto, uma montagem muito bem sucedida, sucesso histórico de público. Isto quer dizer também que se trata, aqui, de teatro de ator, a mola mestra da equipe.
A rigor, a encenação de agora faz uma revisão de outro cartaz do grupo, O incrível segredo da mulher macaco, texto também de Saulo Sisnando, estreia de 2010. Os mesmos elementos estão reunidos na história, mas houve uma revisão geral da forma e algumas mudanças na equipe de arte.
Em Susto, a maior surpresa nasce da absoluta interação da equipe, artesanato fino sob um clima insano, pura obsessão pela arte. Impossível não perceber a relação inteligente com o texto, a maestria da direção assinada pelo autor, a intensidade da contracena de Wendell Bendelack e Rodrigo Fagundes. Renato Bavier, em participação especial, demonstra adesão integral ao desafio, sustenta o clima central da montagem com eficiência espantosa, em especial na cena com a plateia.
A trama, apesar de muito complexa e repleta de reviravoltas, pode ser resumida de forma simples. Um enigmático forasteiro, numa noite de tempestade, busca abrigo numa estranha mansão mal assombrada, pretexto para um desfile de figuras esquisitas, surpreendentes, assustadoras, galeria adequada para que os atores nos encantem com sua habilidade artística.
Wendell Bendelack dispõe de uma tessitura cômica autoral muito peculiar – ele estrutura o desempenho a um só tempo no belo domínio da fala e na intensidade física; concebe desenhos corporais felizes, orgânicos, mas de extremo impacto sensível. Rodrigo Fagundes faz a linha mais interiorizada, sóbria, opção que lhe permite alcançar efeitos paradoxais impressionantes, quando a contenção se transforma em desvario, sem perder a elegância.
Vale ressaltar, portanto, que a condição de teatro de equipe assegura a qualidade de tudo – os cenários despojados, mas objetivos, assinados pelo conjunto, servem com exatidão à ação dramática e ao jogo dos atores. A trilha e os efeitos sonoros, de Rodrigo Fagundes e de Saulo Sisnando, pontuam a curva de clima de maneira exata, assim como a luz, de Paulo Roberto Moreia, atenta às ênfases e aos climas da ação. Os figurinos, de Marcelo Marques, apostam na teatralidade com todas as cores e cortes, exploram com minúcias as personalidades e situam os fatos com muita objetividade.
O resto, já se pode imaginar, é o choro dos que perderam a chance para estremecer de medo ou surpresa com uma peça divertida, ou a alegria dos que amam teatro e percebem, diante deste trabalho tão precioso, que nem tudo está perdido nesta praia carioca assombrada por uma crise tão grande. A situação, com certeza, faz surgir uma pergunta ácida cortando o cérebro, desperta um fantasma urbano memorável.
A questão é simples, mas urgente – se este teatro cômico é a cara do Rio, se é tão fundamental recuperar a força da cidade, por quê motivo, afinal, a empresa hiper-carioca Lojas Americanas filial Passeio não aproveita a chance e recupera o velho Teatro Mesbla? Seria o abrigo ideal para este tipo de peça, que está sem casa, precisa de apoio e vai servir de esteio para a alma combalida da cidade.
Afinal, comércio e teatro sempre andaram juntos nestas plagas. Fica a dica: a cidade merece este bálsamo, merece ser surpreendida com sustos positivos e atos grandiosos, comparáveis ao gesto destes artistas exemplares.
Elenco: Rodrigo Fagundes e Wendell Bendelack
Ator convidado: Renato Bavier
Texto e direção: Saulo Sisnando
Supervisão artística: Duda Maia
Voz off: Malu Mader
Iluminação: Paulo Roberto Moreira
Figurino: Marcelo Marques
Trilha sonora e efeitos sonoros: Rodrigo Fagundes e
Saulo Sisnando
Gravação e mixagem: Christiano Pedreira
Concepção de cenário: Rodrigo Fagundes, Wendell
Bendelack e Saulo Sisnando
Programação de arte: Rodrigo Fagundes e Wendell Bendelack programação visual e desinger gráfico: Leonardo
Miranda
Produção de apoios: Alessandro Monteiro
Produção: os surtados prod. artísticas ltda.
Idealização e realização: Rodrigo Fagundes e Wendell Bendelack
Agradecimento especialíssimo para a equipe
barroso pires produções artísticas:: Jackeline
Barroso, Eduardo Pires e Liliane Xexéo
Após a temporada no Teatro dos 4, a peça persiste no limbo teatral carioca, pronta para reencarnar num teatro próximo a você. Fique atento.
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