DEMOCRACIA, DEMAGOGIA E BIOGRAFIA


 
Biografias. Ok, eles venceram, desconfio. E o sinal está fechado para nós, que somos cidadãos. Que não venha o pior, esperemos. Vou escrever no fluxo, como o Caetano. Vou fazer aquele texto direto de jornal, de quem vive de vender palavras e escrever a metro, papel na tinta. O carrinho da máquina só pode andar para a frente, não pode parar, preceito antigo. Vai direto, para frente e para cima, corrigir apenas erros de digitação… É a urgência e a perplexidade. Muita coisa para tratar.

 

Volto às biografias. E o que eu quero dizer é simples: todos precisam ler a Constituição Brasileira de 1988. Ou pelo menos o artigo quinto – que é bem longo, com 78 incisos. Primeiro, vale fazer um voo de olhos – incrível como a Constituição está remendada. O que impulsiona a tesoura, a caneta e a tinta? Como a Lei precisa ser transitória? O seu nome não é Constituição?

 

Depois, dá para ver que esta foi a primeira constituição do país de pleno perfil democrático. O que movia legisladores e juristas era, afinal, dotar nosso pobre país de uma realidade democrática. Ou não? Para trás, uma longa trajetória de miséria humana, uma história de massacres existenciais, morais, afetivos, violência integral, de doer. Então, antes de tentar olhar se existe projeto de censura na reivindicação dos que lutam pela manutenção do poder do biografado diante de sua biografia, comparando-se o Brasil com o mundo (oh povo colonizado!), o melhor é olharmos o sentido histórico das nossas leis (atenção: será que se trata de censura mesmo, neste caso? Eu discordo total, mas vamos lá…). Devíamos partir da razão de ser das leis que temos. Ler as leis com olhos de História.

 

Não me importo de vir a ser chamada de jurista carioca, se me derem a honra… Vai ser uma homenagem ao feijão ralo do bandejão do CACO dos meus tempos de universidade, o único bandejão que o governo militar deixou sobreviver no Rio daquela época. Veio no feijão. Mas eu gostaria de ser lida e de ter os meus argumentos considerados. Sugiro a galhofa já aqui para ver se dá para pular esta parte, este tom, pois para mim o tema é de uma profundidade terrível, confina com a invenção histórica do terror social brasileiro, os procedimentos que liquidam as vidas em nosso país, fazem com que sejam assombrações. Aliás, a propósito, fazer universidade sob regime ditatorial é opressão que ninguém merece, entre tantas que colecionamos.

 

Desconfio que qualquer alma popular bem vivida e provida de algumas luzes vai concluir, após a leitura da Constituição, que, assim como a Magna Carta da Inglaterra ou o velho código de Hamurábi, ela é uma grande vitória, um marco decisivo no advento do respeito à pessoa humana em nosso país. A Magna Carta conteve o poder absoluto do rei, o Código registrou em letra a condição geral de todos liberta do sabor dos poderes e paixões. Uso referencias longínquas de propósito: a necessidade é apontar a precariedade da vida das pessoas aqui. Sob este olhar, a nossa Constituição é a Certidão de Nascimento do Cidadão Brasileiro, mesmo que esta figura ainda esteja mais para entidade do que para realidade. Temos ainda legiões de almas vagantes, gentes que ainda não tiveram a graça civil de virar pessoas. Por isto a nossa Constituição é uma imensa vitória. Por isto é preciso lutar por ela.

 

Por isto, acredito que não existem partes contraditórias, acessórias, retalháveis ou descartáveis na Lei. A preocupação legal parece clara, precisa: instaurar a vigência da condição de cidadão para todos, na busca da possibilidade da democracia. Neste sentido, o direito à intimidade e à liberdade de expressão parecem ser indissociáveis, complementares. Só pode se constituir como pensamento e voz quem tem direito à integridade de sua forma de ser e de viver, direito à intimidade plena, o que significa respeito absoluto à vida privada. No Código Civil, de 2002, parece dominar o mesmo princípio definidor da pessoa como uma totalidade e para tanto são fixados os direitos da personalidade – onde se inclui o bloqueio do acesso à honra e à imagem de outrem e a inviolabilidade da vida privada.

 

E não é difícil explicar por que razão estas disposições legais são revolucionárias e essenciais para a vida democrática em nosso país. Estamos apenas nascendo como democracia, com a pretensão de virmos a ser uma sociedade de iguais. Até o final do século XX ainda não podíamos assegurar com tranquilidade que esta era a nossa forma de vida. Sob o regime militar tão recente, para ficar no último bloco histórico de liquidação dos direitos civis que vivemos, a vida privada era vilipendiada em tal grau que o cidadão comum, mesmo sem qualquer vínculo político explícito condenável segundo a ótica dos militares, não tinha o direito de escolher livremente os livros que desejava ler. Os livros proibidos eram contrabandeados como na colônia. O fato de ter um determinado livro poderia ser passaporte para a prisão. Durante o meu curso universitário, competíamos na arte de bem encapar volumes para andarmos, por exemplo, com o texto de Marta Harnecker, Los conceptos elementales del materialismo histórico, que estava na moda e tinha que ser lido, sem atiçar suspeitas de lesa-pátria.

 

Considero, assim, uma argumentação de má-fé inaceitável, uma construção lógica canhestra, que nem chega a ser sofisma, a frase oportunista que tem sido bradada contra Chico Buarque, de que a sua posição contra a preciosa biografia não autorizada (eles é que criaram este nome…!) é um ato de censura igual ao cerceamento que ele (e todos nós) sofreu sob os militares. Como assim? Quem está cerceando direitos – e um direito elementar da cidadania – são os pró-devassa da vida alheia.

 

E mais: a defesa do direito à inviolabilidade da vida privada também não significa dar aos censores e aos torturadores o direito de escrever a História – o que é um infantilismo de argumentação – pois o que se deseja estudar a respeito dos censores e torturadores não é nem nunca foi a sua vida privada, mas sim a sua vida pública, política, os atos que praticaram na ordem cidadã, comunitária. De Hanna Arendt a Cid Benjamin sempre se tem afirmado a banalidade do mal e a mesmice da vida privada dos algozes – então não vai ser aí que o interesse de estudo residirá. E portanto tampouco eles terão direito de censura sobre a pesquisa e a redação da História.

 

Parece lógico, neste contexto, que o clamor contra os biografados tenha o seu núcleo em setores da imprensa. Talvez para alguns esteja em pauta a delimitação de uma reserva de mercado. Muitas destas vozes são reedições das Irmãs Cajazeiras, fofoqueiras de plantão, padecem de uma curiosidade patológica a respeito da vida alheia, saiba-se lá por quais motivos. Produzem portanto textos efêmeros, descartáveis, textos que não são vitais para a construção do conhecimento coletivo. Biografias descartáveis, pois imediatas. E muitas editoras, fiéis a uma política capitalista dura de edição, caça níqueis, estão investindo alto nesta luta – será que é pura abnegação a favor do cidadão leitor e da cultura nacional?

 

Importante ressaltar: a biografia escrita por jornalista, mesmo o bom jornalista, com frequência se diferencia do trabalho do historiador e do acadêmico – ela não indica as fontes de informação, não precisa fazer a análise detida das versões. Enquanto o historiador precisa estabelecer o fato a partir de um rigoroso cruzamento de versões e de dados, através da crítica exaustiva das fontes, sempre declaradas, expostas, localizadas, o jornalista publica versões e jamais entrega as fontes. Por isto, é justo dizer que muitas das tais biografias não autorizadas são biografias bastante polêmicas – até mesmo quando abordam figuras históricas ou defuntas. Muito de sua substância não tem transparência.

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