Uma Dama de Teatro para chamar de nossa
Responda rápido: o que faz uma atriz – ou uma mulher de teatro – se tornar uma Dama de Teatro? Não, não estou falando do emploi antigo, dama central, dama galã. Estou falando Dama no sentido de senhora capaz de falar e se fazer ouvir em nome da arte, da realidade do teatro. Aquela mulher capaz de chegar no proscênio e impor o reconhecimento da cena como lugar de falas múltiplas, livres, poéticas, necessárias. De repente, quem ouve se reconhece ali e se percebe cúmplice, participante, gente da arte.
Bom, a esta altura toda a tribo interessada em teatro já sabe dos quinze minutos de protagonismo universal de Guida Vianna no Prêmio Cesgranrio, na noite de terça-feira. No rigor, foram doze minutos. Mas que minutos – algo assim para nenhum Andy Wharhol botar defeito. A performance foi intensa, espontânea, sincera, um jorro de coisas que precisam ser ditas, reditas e debatidas.
E vamos reconhecer, logo, de saída, o gol, pois a fala caiu bem numa festa cujo objetivo é exatamente este: acender o canhão e deixar a plena potência da arte brilhar sob a luz. Aconteceu. A festa foi linda, numa visão geral as escolhas dos jurados foram bem aceitas, os salões ferveram até tarde, mas a fala das falas, ficou no ar, quicando nas cabeças, nas rodinhas e no buchicho.
Guida Vianna ganhou o Prêmio de Melhor Atriz por seu trabalho impactante, de intenso desenho emocional, em Agosto, de Tracy Letts, direção primorosa – e muito ousada – de André Paes Leme. A estatueta foi entregue pela veterana Arlete Salles. O texto, com uma estrutura dramatúrgica ágil, moderna, ácida, apresenta o confronto e a dilaceração dos membros de uma família incapaz de realizar as aspirações e os sonhos dos seus integrantes, incapaz de ser um lugar pleno de amor. A mãe, defendida por Guida Vianna, é o epicentro de um vulcão capaz de destruir tudo ao redor.
Para a atriz, uma intérprete de extensos dotes técnicos, o papel foi um grande desafio – nome forte da geração setenta/oitenta, época em que iniciou a carreira profissional, Guida Vianna se formou e se projetou na cena brasileira no interior de um movimento de grupo que foi a tônica desta geração. Formada pelo Tablado, Guida Vianna fez sucesso no Grupo Pessoal do Cabaré, dirigido por Buza Ferraz, organizado pelo diretor partir da montagem de Cabaré Valentim, em 1980.
A linguagem do grupo – muito peculiar, de certa forma uma marca da geração – apresentava identidade clara. A cena e a contracena eram estabelecidas a partir da irreverência, da alegria, da aposta na teatralidade e na capacidade inventiva dos atores. Nesta linha, o humor, o deboche, a crítica e a límpida disposição para a interlocução e o enfrentamento eram atitudes definidoras dos atores. O objetivo era a cena despojada, mas fundada no entendimento do palco como local de livre criação. Portanto, um enfoque deslocado da dramaturgia de mesa, da contracena erigida ao redor dos grandes conflitos interiores e dos embates afetivos destrutivos.
Ao fazer quarenta anos de carreira, marca festejada com a encenação de Agosto, a mesma coragem juvenil, que foi a identidade da geração, frontalmente decidida a interpelar as maquinações do estado militar, norteou a escolha de Guida Vianna. O prêmio mais do que merecido chegou por causa de um trabalho corajoso, um enfrentamento decidido da própria trajetória de vida em arte trilhada até então.
Portanto, a fala de Guida Vianna precisa ser vista e pensada com a atenção fixa neste processo histórico. Trata-se de um atriz que representa efetivamente o novo na história da engrenagem teatral brasileira. Ela traz para o foco uma gente que abandonou o divismo, o projeto de ser estrela de capas de revistas iluminadas por paetês de plástico desbotado. Aqui, se insinua na prática teatral um jeito novo, antenado com uma nova ordem econômico-social do mundo.
Assim, sem desmerecer o grande teatro e as estrelas absolutas ou mesmo as estrelas autoproclamadas, ou os nomes midiáticos hábeis em atrair multidões – e no teatro brasileiro atual este elenco nem é tão numeroso – Guida Vianna agradeceu a premiação e falou em nome do trabalho. Falou de uma cena que se faz na luta, na batalha, na dureza, nos roteiros das pequenas salas e das verbas curtas, das filipetas nos metrôs, da falta de apoio das autoridades, dos poderosos, dos endinheirados e das várias instâncias governamentais.
O tom respeitoso ecoou no reconhecimento aos feitos dos grandes – e a sala acabara de homenagear o notável ator Antônio Fagundes por sua significação histórica e artística absolutas. Mas Guida Vianna partiu deste reconhecimento sincero para falar da multiplicidade da classe e de um outro teatro. O teatro da paixão cega, devotada, avassaladora, a paixão que esquece todo o resto – seja a conta do aluguel, seja a conta da luz, seja o delírio de ficar milionário – para ter um grande luxo: poder habitar uma humanidade impregnada de percepção ousada da vida. Sim, Guida Vianna é uma Dama do Teatro. Do teatro nosso de cada dia – aquele em que a certeza de que é preciso mover o mundo com a carne não pode faltar. E salve o teatro e toda as Damas que vez por outra se afirmam, para fazer do palco o centro nervoso do mundo.
Vencedores do Prêmio Cesgranrio de Teatro 2018:
Homenagem: Antonio Fagundes
Melhor Figurino
Kika Lopes e Heloisa Stockler por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Melhor Cenografia
Aurora dos Campos por “Tom na Fazenda”
Melhor Iluminação
Maneco Quinderé por “Hamlet – Som e Fúria”
Categoria Especial
Roberto Guimarães pela sua atuação como programador do Teatro Oi Futuro
Melhor Texto Nacional Inédito
Grace Passô por “Mata Teu Pai”
Melhor Ator
Armando Babaioff por “Tom na Fazenda”
Gustavo Vaz por “Tom na Fazenda”
Melhor Ator em Teatro Musical
Adrén Alves por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Melhor Atriz
Guida Vianna por “Agosto”
Melhor Atriz em Teatro Musical
Carol Fazu por “Janis”
Melhor Direção
Rodrigo Portella por “Tom na Fazenda”
Melhor Direção Musical
Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Melhor Espetáculo
Suassuna – O Auto do Reino do Sol
Jurados
Carlina Virguez, Daniel Schenker, Jacqueline Laurence, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Rafael Teixeira, Tania Brandão
Foto Eny Miranda, Divulgação
Lindo texto, uma homenagem libda!