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A impossibilidade do mundo

 
Ador do mundo desabou sobre a nossa cabeça – uma voz rascante, arrebatadora, nos ensinou tudo sobre a falência humana, a impossibilidade de amar, a solidão maior. Tinta de sangue, terra, fogo, paixão, luz, carência, veludo e seda, rock e blues, cores faiscantes, alguma evocação do Texas, vício demolidor, aniquilamento, ela está ali, cowboy, no palco do Oi Futuro do Flamengo, revivida. Ela é Carol Fazu, engajada numa homenagem comovente a Janis Joplin (1943-1970). Respire fundo e acarinhe a sua alma, você vai precisar.

 

A descrição registra a grandeza do trabalho de uma atriz excepcional, uma revelação absoluta, estrelar. E fala de um figurino, uma obra de arte plena em matéria de roupa de teatro. E de uma cena envolvente, um ato de teatro capaz de fazer a plateia levitar. Anote, vá ver. Diante dos seus olhos, você terá um raro momento de poesia em estado puro, bruto.

 

Sim, importa frisar, de saída, a qualidade do espetáculo em si, impressionante obra de arte teatral total. A direção de Sergio Módena, madura, objetiva, segue este tom poético, a busca efetiva de unidade expressiva rigorosa em todos os níveis da criação cênica. A proposta é seca, direta, enxuta. A equipe de criação dialoga no interior do mesmo conceito, sob afinação cristalina. Dá para perder a razão, flutuar volátil ao sabor da cena.

 

Tudo se faz a partir e ao redor da evocação de um dos maiores mitos da nossa época, a cantora Janis Joplin. Não há em cena, no entanto, um musical biográfico, mas um ícone, uma personalidade-pretexto para que se olhe a engrenagem voraz do nosso tempo. Assim, surge diante do público uma cena de grande impacto, hábil revelação do espírito trágico moderno. A essência de Janis Joplin está no palco, a vontade de poder e o dilaceramento do cidadão contemporâneo, este ser recém nascido que se acredita soberano, que aparenta ser o senhor dos seus desejos, prazeres e ideias, mas que segue à deriva, refém da marcha do mundo. Saber poético teatral.

 

A sabedoria cênica começa no texto de Diogo Liberano. Trata-se de um exercício de escrita dramática livre, um painel vertiginoso ao redor da estrela rebelde, inclinado a flertar com a trajetória fugaz da musa desgarrada, desgrenhada, auto-imolada diante do estrelato e do desespero existencial. Muito já se produziu sobre a jovem cantora. Diogo Liberano buscou ir mais longe, conseguiu fazer uma peça em que a matéria do desespero desliza entre músicas e centelhas de vida.

 

A partir de fiapos de pensamentos, declarações, reportagens, dados e alguma invenção, entremeados com músicas antológicas, o dramaturgo teceu uma partitura sobre o oco do mundo, aquele lugar vazio desnudado por ela nas canções. Artista genial, Janis Joplin sabia da farsa do estrelato, vivia a delicadeza abissal de sua arte e não escondia a repulsa ao automatismo fútil, consumista, frívolo, abrigo dos ingênuos. A peça lida com isto, sem rodeios.

 

O cenário de Marcelo Marques cria diferentes áreas de representação, sob uma estrutura metálica que evoca o mundo do show. Luz, coreografia, figurino, explosão corporal, dinamismo da banda – tudo se articula com fluência. Em vários momentos, o fundo da cena é pura escultura de luz, sugestão de espaço sideral. Destaque-se a beleza e o acerto do figurino de Janes Joplin, em seda e veludo, crinas de cavalo, colorido em tons de fogo, sol, fogueira, sangue, brasa adormecida, trevas. Na banda, as roupas mergulham, com extrema propriedade, no espírito dos anos 1960.

 

Difícil falar de cada parte quando cada parte é tudo, sintoniza com tudo, sob a mais extremada busca de integração, e oferece a experiência tão rara da unidade da arte. Mas, sem dúvida, o epicentro deste furacão teatral é único – é Carol Fazu. Vibrante, tomada pela música, impregnada pela certeza da fluidez desconcertante da vida, certeira nos gestos, arrebatadora na voz, ela não faz um xerox de Janis Joplin, não se propõe a ser um duplo.

 

A rigor, ela sintoniza o mesmo fluxo vital absurdo, devastador, a mesma vontade de materializar o impensável. Todo o seu corpo irradia o impulso de perseguir a intensidade da arte até o fundo, até o fim dos tempos, a qualquer preço. Vários momentos do espetáculo são tão agudos, na sua estrutura sensível, que são capazes de virar o público pelo avesso. A trilha sonora incorporou o essencial – estão lá Cry Baby, Little Girl Blue, Kozmic Blues, Maybe, Me and Bobby McGee, Piece of my Heart, Mover Over, Mercedez Benz, Tell Mama, Try (Just a Little Bit Harder).

 

Nada, porém, se compara ao desconcertante Summertime, apresentado no fundo do palco, com a atriz de perfil, sob uma luz etérea, de Fernanda e Tiago Mantovani. O jovem Arthur Martau (guitarra) deixa claro, neste momento, a sua extensa habilidade de instrumentista. A cena ameaça paralisar o coração de todos e de cada um, difícil não chorar.

 

Este número musical importa também para atestar a excelência da direção musical de Ricco Viana. Obrigado aos padrões criativos de Janes Joplin, criadora de jóias musicais inquestionáveis, imortais, Ricco Viana assinou variações e coloridos primorosos, suportes perfeitos para a atmosfera poética da cena, sem se tornar infiel. Marcelo Muller, Eduardo Rorato, Gilson Freitas e Antônio Van Ahn completam a banda, são artífices eficientes do projeto de materializar a cena como vida de arte, opção existencial da cantora.

 

Em resumo, este é um dos espetáculos obrigatórios da temporada, você não pode perder. Não precisa gostar de rock ou blues, não precisa sequer saber quem foi Janes Joplin ou conhecer a sua obra. Vá sem preconceito. Ir ao teatro, neste caso, vai lhe oferecer uma oportunidade única, a de ser, por um rastilho de tempo, absolutamente contemporâneo, peça afinada com a dor que nos reveste hoje no mundo, a dor insuportável que tentamos em vão esquecer, a dor que nos faz cidadãos de almas vagantes, perdidas, almas fingidoras que não sabem, na verdade, o que são.

 

Ficha Técnica
 
Idealização e interpretação: Carol Fazu
Dramaturgia: Diogo Liberano
Direção Geral: Sergio Módena
Assistência de Direção: Celso André
Direção Musicak: Ricco Viana
Cenografia e Figurinos: Marcelo Marques
Iluminação: Fernanda Mantovani & Tiago Mantovani
Banda:Marcelo Muller (baixo), Arthur Martau (guitarra), Eduardo Rorato (bateria), Gilson Freitas (saxofone) e Antônio Van Ahn (teclado)
Preparação vocal: Patrícia Maia
Visagismo: Marcio Mello
Camareira: Cycy Kalpakian
Programação Visual: Cacau Gondomar e Bruno Sanches
Direção de Produção: Alice Cavalcante e Ana Velloso
Produção Executiva:Alice Cavalcante, Ana Velloso e Vera Novello
Realização: Sábios Projetos e Lúdico Produções

Serviço
“Janis”
Teatro Oi Futuro Flamengo
(Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo/RJ- Tel.: (21) 3131-3060)
Estreia: 25 de maio de 2017, quinta-feira
Temporada: de 26 de maio a 16 de julho de 2017, de quinta a domingo às 20h
Preço: R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)
Duração: 80 minutos
Capacidade: 63 lugares
Classificação: 14 anos