No coração da arte

 

 
Dizem que a poesia é escrava do papel – uma grande mentira. A poesia não é um desfile de letras acorrentadas, achatadas, mas sim um fluxo esfuziante de energia libertadora que volteia pelo ar e, se deixarem, toma os teatros da vida sem trégua e sem dar espaço para pensar. Puro sentir. Duvida? O que se pode fazer, se você, escravo sim da pobreza de espírito, não viu Jazz do coração, novo espetáculo do poeta da cena Delson Antunes? Azar o seu. E de sua alma. A peça é exatamente isto: uma prova de que a poesia é coisa viva, pulsante, arrebatadora, capaz de vibrar diante de nós como o mais elevado elixir da existência.

 

É importante saber que muito desta visão da poesia, natureza legítima da peça, nasce da obra de Delson Antunes. O tema se reveste de extrema importância, pois justifica nomeá-lo poeta da cena. A sua forma de trabalho é precisamente construir cenas nas quais a obra escrita, literária, outra, enfim, conquista o espaço, se materializa diante da plateia, como se fosse resultado direto dos artifícios dos antigos trovadores. O texto do poeta se torna palavra de ator para se projetar como palavra no espaço, rede de sensações de arte, emaranhado de emoções.

 

Em Jazz do Coração, o diretor, também responsável pela dramaturgia, elaborou um roteiro hábil a partir de escritos vários de Ana Cristina César (1952-1983): sua correspondência, anotações esparsas e algo de sua contundente poesia. O espetáculo consegue tornar a poeta presente através da indicação de seu modo de vida, suas maneiras de sentir, de ver o mundo e de pensar a ordem cotidiana. Mas não se obteve uma biografia – o interesse é, a rigor, a arte, o fluxo da palavra que faz o poeta ser poeta. De certa forma, é uma biografia da arte, a poesia de Ana Cristina César em trânsito pelo mundo, pela vida.

 

E o que se pode fazer? A nossa alma cotidiana agradece os instantes de encantamento. Eles resultam naturalmente do desempenho de Françoise Forton e Aline Peixoto, intérpretes apaixonadas dos textos, duas atuações requintadas, complementares, desenhadas com a essência da emoção feminina. Françoise Forton, mais etérea, expõe o tom elegante, altivo e de fina ironia sempre presente nos escritos de Ana Cristina César. Aline Peixoto sublinha a ingenuidade e um certo ar indefeso diante do mundo. As duas resolvem sem hesitação a partitura minuciosa de movimentos programada pela direção, trabalhada por Adriana Bonfatti, executam e cantam números musicais, de fatura muito inteligente, assinados por Pedro Luís. E contam com um desenho de cena bem resolvido, muito forte, composições pictóricas resultantes da harmonia reinante no projeto, uma feliz associação entre a cenografia de Jeane Terra, os figurinos de Carol Lobato e a iluminação de Luis Paulo Nenén.

 

Diante da plateia, as cartas são lançadas, num jogo de letras e emoções, a tradução de uma escrita fina, manuscrita, sugestão de movimento do coração para o mundo, de um coração que se dilacera com o mundo. E, afinal, recebemos um banho de poesia, obra da arte – o poeta está em cada um de nós, nós que sabemos que a poesia não é escrava do papel, pois ela é a verdadeira inventora do mundo. Imperdível. Não deixe de ver.

Fotos: Guga Melgar


FICHA TÉCNICA
Da obra de Ana Cristina Cesar
Dramaturgia e direção: Delson Antunes
Elenco: Françoise Forton e Aline Peixoto
Músicas: Pedro Luís
Direção musical e preparação vocal: Suely Mesquita
Cenário: Jeane Terra
Figurinos: Carol Lobato
Iluminação: Luis Paulo Nenén
Direção de movimento: Adriana Bonfatti
Assistente de direção: Marcéu Pierroti
Programação visual: LSD Design
Direção de produção: Elaine Moreira
Produção executiva: Rodrigo Becker
Assistente de produção: Jeferson Neto
Produção e assessoria de imprensa: Barata Comunicação
SERVIÇO
Casa de Cultura Laura Alvim (Porão)
Av. Vieira Souto, 176, Ipanema
Terças e quartas às 21h
R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia)
70 minutos. 10 anos
Estreia 19/08. Até24/09