O Carnaval já me deu duas emoções imensas – as duas vieram de Madureira. A primeira foi quando o Império Serrano se tornou campeão em 1972, com Alô, alô, Carmen Miranda e eu cheguei em Madureira para dar aulas (eu dava aulas de História do Brasil em um curso supletivo e estava nas vésperas das provas) e Madureira cantava o samba de Wilson Diabo, Heitor e Maneco. Da sala de aula, em um segundo andar perto da estação, começamos a ouvir a massa sonora que vinha da rua, até que as aulas foram suspensas, pois ninguém conseguia pensar em outra coisa que não fosse o sucesso estrondoso da verde e branca. Chorei pelas ruas, tomada por uma emoção inexplicável, pois era irresistível o fluxo sentimental que varria o bairro. E na verdade eu era Portela.

Aprendi a ser Portela lá no subúrbio, onde nasci e me criei. Nunca desfilei na escola, mas acompanhava os seus fracassos e sucessos, adorava as suas músicas, fossem de carnaval ou não. Nos anos oitenta, passei a dar razão às vozes que protestavam contra a Portela, denunciando que ela se tornara uma escola invadida, tomada por sambeiros de ocasião. Então, carnavalesca vira-folha, eu me tornei Mangueira, muito embora o meu coração palpite acelerado por todas as co-irmãs – na verdade, eu gosto muito de escola de samba, eu sou mesmo é Qualquer Uma Serve. Ou Acadêmicos do Vira-Folha. E desfilei pela primeira vez na Avenida Rio Branco, no ato simbólico de criação da Tradição, que pretendia ser um atestado de óbito ou uma sacudidela forte na águia de Madureira. Até então eu nunca desfilara. De lá para cá, não desfilei muitas vezes, mas desfilei no Império Serrano, na São Clemente, na Mangueira, na Mocidade Independente, na Rocinha. E na Portela.

Desfilar na Portela em 2005 foi a segunda grande emoção do Carnaval na minha vida. Mas foi uma emoção diferente, chocante. Em lugar do choro de alegria de outrora, a primeira sensação foi a de espanto. Cheguei cedo na concentração. E nunca vi uma concentração tão dispersa, tão confusa, tão desorganizada – ainda que seja curta a minha experiência de desfile. Bem, diante do caos, eu já fui Portela e se eu não sou mais, eu sou de samba. Tratei de fazer o que podia – ajudei a vestir baiana, ajudei a orientar criança, dei água a quem tinha sede, orientei (como?!? Inacreditável!!!) com as parcas informações que eu tinha quem estava mais perdido do que eu…

Custei muito a encontrar a minha ala. Com a experiência de outros desfiles, decidi não procurá-la: sabia que a ala – uma ala de aluguel – iria aparecer a qualquer momento, porque era enorme. Quando ela apareceu, fiquei ainda mais atônita: os que estavam ali não eram nem sambistas, nem sambeiros, eram sambobos, criaturas que não entendem nada de samba ou de carnaval, nem de escola de samba, mas que desejavam desfilar na Sapucaí para colecionar esta vitória no currículo de desvario emocional ou aparecer na televisão. Os sambobos disputavam os lugares dianteiros avidamente, muito embora não soubessem o samba, não soubessem sambar ou dançar, nem soubessem o que vem a ser um desfile. Na verdade, eles pulavam, como se estivessem fazendo um tipo curioso de aeróbica. A ala não contava com diretor de harmonia e o dono da ala, visivelmente contrariado, ficava ainda mais carrancudo quando se perguntava quantas pessoas deveriam ficar em cada fileira, para que se organizasse a bagunça…

Finalmente, um diretor de harmonia da Portela chegou. Logo outros apareceram. Nervosos e perplexos, tentavam impor alguma ordem à baderna. Alguns sambobos estavam tão bêbados e drogados que não conseguiam entender nada – já estavam em ritmo de pirueta, quando o sujeito fica rodando, rodando, feito cão atrás do rabo; ameaçavam desabar no chão a qualquer momento. Como havia uma variação de colorido nas fantasias, os diretores de harmonia começaram a gritar que deveriam ser organizadas fileiras de três pessoas de cada lado, enquanto no meio seriam feitas fileiras de seis pessoas, para arrumar um pouco a paleta de tons. A ordem não foi atendida com facilidade – os sambobos se recusavam a aceitar que era preciso ter um número exato por fileira, para que o desfile tivesse um bom andamento… e a hora de entrar na avenida se aproximava perigosamente.

De repente, os diretores da Portela perceberam que as fantasias da ala estavam mal pintadas. Sob a decoração mal feita, usando lixo reciclável, apareciam marcas famosas de diversos fabricantes de bebidas… e aí veio a ordem cruel – arrancar todas as latas para que a Portela não perdesse ponto por merchandising… Uma samboba que lutara aguerrida para ficar bem na frente rodou a baiana; ela se recusava aos berros a tirar suas latinhas, sob a alegação que pagara pela fantasia do jeito que a fantasia estava e não ia estragar a roupa por ordem de ninguém. Após algum tumulto, para alegria dos catadores de latinhas, começou uma verdadeira guerra aos anunciantes famosos, com as latas arrancadas e jogadas ao chão. É possível imaginar o estado das fantasias depois do episódio, em especial o estado dos chapéus, que perderam parte da tinta e o desenho harmonioso que permitia a composição de um conjunto…

Finalmente, o desfile começou. Um diretor de harmonia foi obrigado a arrancar o papel com a letra da mão de uma samboba, que insistia em entrar na avenida lendo. A ala se espalhou pela Sapucaí na maior confusão, como se fosse um bloco de sujo suburbano das antigas, com aquele bando de gente pulando, sem ter a menor idéia do samba. Faziam zig-zag, iam para a frente e para trás, em um furor indescritível. A distância entre eles e a escola – qualquer escola! – era tão grande que, na concentração, um sambobo teve a coragem de ficar lendo a letra do samba aos berros debochadamente, achando provavelmente absurdas as afirmações deduzidas das oito metas da ONU. Eu nunca tinha visto alguém debochar da escola em plena concentração.

Não vi o resto do desfile da Portela. Quando cheguei ao meu lugar na platéia do sambódromo, depois de tirar a fantasia, revoltada com o que vira na minha ala e na concentração, soube que o final da passagem da azul e branco tinha sido constrangedor. Em casa, vi a gravação do desfile. E chorei. Chorei ao ver a águia da Portela sem asas, parecendo um frango de padaria. Chorei ao ver as imagens da velha guarda e do final do desfile. A Portela voltou a ser a Vai Como Pode.

Apurados os resultados, a Portela não foi rebaixada. Caiu a Tradição que, honestamente, estava péssima, mas não fez um desfile tão ruim. Uma julgadora conseguiu dar nota dez às fantasias da Portela… Nota dez! Creio que é preciso um debate aceso no mundo do samba sobre a formação dos julgadores. Qualquer um que tenha acompanhado os desfiles daquele ano com alguma atenção, ainda que possa ter preferências pessoais e idiossincrasias, vai admitir que algumas notas foram inexplicáveis. Parece que os jurados tiveram uma certa má vontade com enredos patrocinados, alguma fraqueza de joelho diante de nomes históricos fortes (como parece ser o caso da Portela) e uma timidez lamentável diante do novo (caso da Unidos da Tijuca, a grande injustiçada do ano de 2005 – mais uma vez – mesmo que possa ser bastante discutível o tipo de marcha-desfile que a escola insinua). Pelo sim, pelo não, o carnaval teve uma grande campeã de ponta-cabeça, a querida Portela, que não foi rebaixada. É torcer para que as coisas mudem nos terreiros do velho Natal: o acaso e os santos não estão sempre de plantão!