A liberdade e a morte do amor
Você é livre, completamente livre, liberal inveterado, filho do paz-e-amor, um ser do amor total. Adora esfregar a sua liberdade na cara do mundo. Sua carta de alforria foi forjada nos idos de 1960. Mas o mundo, este paquiderme monolítico ancião, nem te liga, segue o mesmo. Ou quase.
Ou pior: será que a sua liberdade é liberdade mesmo ou acontece apenas como egoísmo hedonista? Será que ela massacrou pessoas, dissolveu compromissos afetivos antigos, que atavam os seres em preciosas cadeias, essenciais para a construção progressiva da vida? Perguntas corrosivas, inquietantes, diretas. Não, não é provocação. Não, elas não estão sendo lançadas ao ar pela direita burra conservadora. Por isto, é preciso ouvir. E pensar.
Este é o cálculo da dramaturgia ácida de Mike Bartlett, um jorro de ironia impiedosa que vai jogar a sua alma neste abismo. O autor está em excelente companhia – o Grupo 3 de Teatro, uma das melhores equipes teatrais brasileiras dedicadas, em profundidade, ao teatro de pesquisa atual.
Portanto, largue tudo, todos os seus amores descartáveis, e vá ao Oi Futuro do Flamengo conferir. Você vai adorar, vai esquecer sua entrega aos afetos vazios. Vai encontrar o amor eterno: a velha busca pela verdade, oferecida por um teatro de verdade. Nada consegue ser mais inebriante do que o teatro de verdade de nosso próprio tempo. Um luxo.
A esta altura, você adivinhou o centro da questão, vai ver uma daquelas peças premiadas, um trabalho que será considerado um dos melhores espetáculos do ano. O impacto não é só resultado da tessitura surpreendente do texto. A direção, de Eric Lenate, é tão virtuosa na direção de cena quanto na direção de ator.
O seu mérito maior é a aposta na unidade orgânica da interpretação, quer dizer, Eric Lenate obteve dos atores desempenhos profundos, intensos, viscerais, propícios para expandir a força do texto até o seu limite maior. Os atores apresentam trabalhos vivos, contíguos à sensibilidade do espectador, distantes de qualquer tentativa de criação de um museu da sensibilidade.
Ao lado desta fluidez apaixonada dos atores, o diretor concebeu um desenho de cena em sintonia direta com as densas proposições do texto. E isto a um ponto tal que os atores-personagens comandam a construção da arquitetura da cena, apesar do apoio eventual da contra-regragem. Eles montam e desmontam os cenários.
O gesto equivale ao propósito do autor, de indagar a respeito do nosso poder para construir o mundo, e de perguntar sobre a responsabilidade, no mundo, de cada geração. Num acordo profundo com a cenografia, de André Cortez, a ideia central do texto aflora neste genial jogo de rearranjo do mobiliário e dos objetos de cena.
A iluminação, de Gabriel Fontes Paiva, reforça a concepção, funciona como instrumento preciso para aproximar ou distanciar a plateia, desenha com rigor as intenções da ação cênica. A marca, afinal, também ecoa na trilha sonora, de L.P. Daniel, capaz de unir Beatles e Caetano.
O resultado imediato é desconcertante. A dramaturgia e a trama ganham impacto notável com estas escolhas. O texto, afinal, ainda que deva ser visto como uma comédia amarga de feitio britânico, é, no fundo, uma peça de tese. Mike Bartllet formulou uma visão dos anos 1960, de seus protagonistas e de seus efeitos, e consegue defendê-la com um rigor digno da tradição britânica, consegue demonstrá-la através de personagens bem estruturados.
Na versão brasileira, envolvidos por uma cenografia moderna e impregnados por uma disposição absoluta para questionar o público sobre o nosso tempo, os personagens se tornam plausíveis em profundidade, convincentes no mais alto grau, são ideias encarnadas, arquétipos humanos impressionantes. Promovem uma identificação forte com a plateia, direta, como se fôssemos carne da mesma carne.
A trama é bem simples. De 1967 a 2014, em três momentos, os personagens encenam a história de sua geração, libertária, incendiária, iconoclasta, decidida a mudar a forma social da vida, mas incapaz de efetivamente gerar um mundo melhor. Um painel do contexto político e social da época desfila no palco.
Vestidos, graças aos figurinos precisos de Fabio Namatema, ao sabor dos diferentes tempos históricos, Débora Falabella, Yara de Novaes, Rafael Primot, Ary França e Mateus Monteiro constroem um generoso painel dos valores do nosso tempo. Do seu trabalho surgem figuras familiares. E não é para menos. A inteligência do autor ancorou o ponto de partida do debate num foco fervilhante de significados e emoções. A sua escolha privilegiou um episódio-símbolo da história contemporânea, estratégico para o tema: a eclosão mundial do fenômeno The Beatles, epicentro do furacão juvenil que varreu a superfície da Terra.
A ação começa no dia 25 de junho de 1967, data em que foi feita a primeira transmissão mundial de televisão, ao vivo, para 26 países. A BBC solicitou ao jovem grupo musical a criação de uma canção para o evento, e assim nasceu a consagrada All you need is love, vista como um hino para a libertação humana através do amor. A canção arrastou multidões.
O acontecimento é usado para mostrar o início de um caso de amor, o envolvimento de dois irmãos com uma garota. Débora Falabella (Sandra) traduz o desabrochar da irreverência feminina mais petulante com autêntica luz juvenil e um tom elegante de cinismo capaz de apostar sem dó na ruína do mundo. Hasteia sem medo a bandeira flamejante do amor. Ao seu lado, no primeiro tempo da ação, Mateus Monteiro (Henry) revela com segurança o partido juvenil oposto, o dos caretas, sujeitos entregues aos velhos modos, incapazes de se comover com a alegada revolução de costumes.
Sandra marcou um encontro com ele, na casa dele, mas se joga nos braços de seu irmão mais novo, Kenneth, calouro universitário como ela. E Rafael Primot (Kenneth), o jovem irmão porra louca, mergulha num desempenho mais do que ousado, faz pulsar, sem limites, a alma do transgressor libertário, anarquista, que despontava na época. Direto, despojado de artifícios, o ator recorre a intensidades expressivas surpreendentes, arriscadas até, para desenhar o perfil radical e demonstrar o forte desejo de niilismo.
Yara de Novaes inunda a cena com uma trama sensível magnética, requintada, a um só tempo volátil e objetiva, elegantemente debochada, ao apresentar a figura de Sandra adulta, em 1990 e em 2014. Uma interpretação soberba. A atriz materializa, numa espiral vertiginosa, o relativismo de valores mais cruel de nosso tempo, uma louvação ao amor amoral.
As fortes cores do seu trabalho mostram o alcance destrutivo da liberdade absoluta do eu, o primado da esperteza, da futilidade, da hipocrisia, da pseudo-abnegação. Em nome dos seus prazeres, tornou-se uma mãe de família omissa, convicta de que o amor é tudo e é, de saída, a mais completa liberdade, o que faz com que, no seu amor, não exista lugar para o outro.
Ao seu lado, Ary França se revela capaz de sustentar um duelo de titãs – impõe a figura arrogante e miserável de um Kenneth envelhecido, mas torpe na sua devoção ao culto do ego, refratário aos efeitos da sua cegueira existencial, incapaz de notar qualquer drama ao redor. Fútil, superficial e sem autoridade, Kenneth é o perfeito pai-banana. Mesmo divorciados, são pais deploráveis, construíram um destroço de família.
Os dois filhos são joguetes nas suas mãos. A filha, Rose, promessa de grande musicista, é a frustração em pessoa, se resume a um esboço humano contido, amargurado, filigrana de auto aniquilação, mostra uma Débora Falabella em surpreendente contraponto com o desempenho do primeiro ato. Atriz admirável, ela apresenta o outro lado da inconsequência primeira, um excelente trabalho.
Rafael Primot retorna à cena no filho dilacerado por um emaranhado de crises interiores, no limite da demência por abandono materno e omissão paterna, demência que acaba por se instalar no segundo ato. O amor e a liberdade de fachada, pregados pelos pais, geraram dois fracassados, duas ruínas humanas, incapazes de gerir as próprias vidas com dignidade.
Uma legião de filhos derrotados anda arrastando os tênis furados pela superfície do mundo. Talvez você possa argumentar que a engrenagem da história é maior do que os seres e que esta moenda não perdoa ninguém, devora a todos. Poderá dizer que só sabemos mesmo o fio da história de cada vida depois que ela já passou, vivemos no automático. E assim você vai tentar escapar da incomoda discussão proposta pelo autor, a pergunta dilacerante a respeito do sentido verdadeiro dos nossos atos e a respeito da trajetória que desenhamos no mundo, para as outras gerações.
Bom, não se iluda e não procure abrigo fácil. O texto, afinal, não tem respostas. O desejo é, antes, incomodar, tirar o espectador do conforto, fazer perguntas e levar a pensar. Há, no palco, uma forma nova do teatro político, dirigida a cada um, para sacudir a escala de valores pessoais, importa destacar.
Com certeza, ao ver esta peça, você vai chegar à conclusão de que ideias simples de amor e de liberdade podem mudar a superfície dos dias, oferecer noites intensas de confraternização musical diante da TV, mas talvez elas não signifiquem exatamente isto, amor e liberdade, para a alma da sociedade. Para tecer o destino, cantarolar é pouco.
Há outra opção, contudo. Diante de você, um teatro de qualidade estética ímpar. É teatro sério, vertiginoso de tão sério. Você tem a liberdade de ir ver. E terá a energia radiosa de um teatro que pergunta sobre a possibilidade de mudar a sua vida mais profundamente do que The Beatles. Está em cena um chamado para um novo mergulho no amor. Um mergulho profundo, muito mais livre, impregnado pela necessidade de reconhecer a intensidade do ser. Em duas palavras: não perca.
Autor: Mike Bartlett
Tradução: Maria Angela Fontes Frederico
Diretor Artístico: Eric Lenate
Elenco:
Ary França
Débora Falabella
Mateus Monteiro
Rafael Primot
Yara de Novaes
Iluminador: Gabriel Fontes Paiva
Trilha Sonora: L.P. Daniel
Cenário:: André Cortez
Figurinos: Fabio Namatema
Produção: Grupo 3 de Teatro (Débora Falabella, Gabriel Fontes Paiva e Yara de Novaes)
Realização e Montagem: Grupo 3 de Teatro
Assessoria de Imprensa:Silvana Cardoso (Passarim Com & Mktg)
REDES: facebook/grupo3deTeatro
www.grupo3.art.br
Patrocínio: Oi Futuro
Love, Love, Love
Estreia para convidados: 19 de janeiro de 2017 (5af) | 20h30
Temporada: De 20 de janeiro a 12 de março de 2017
Horário: Quinta-feira a Domingo | 20h
Local: Oi Futuro Flamengo
Endereço: Rua Dois de Dezembro, 63 | Flamengo | RJ
Preço: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia)
Telefone: (21) 3131-3060
Capacidade do teatro: 63 lugares
Duração do Espetáculo: 110 minutos
Classificação etária: 14 anos
Gênero: Humor Ácido
Horário da Bilheteria: De terça-feira a domingo | 15h às 21h
Venda antecipada: Somente na bilheteria do teatro
Informações para a imprensa: Silvana Cardoso
Tagged: André Cortez, Ary França, Débora Falabella, Eric Lenate, Gabriel Fontes Paiva, Grupo 3 de Teatro, Love Love Love, Mateus Monteiro, Mike Bartlett, Oi Futuro do Flamengo, Rafael Primot, The Beatles, Yara de Novaes
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Assisti a peça, adorei! Parabéns pela sua crítica detalhada é maravilhosa! Você é um luxo, ler suas críticas é uma aula fantástica ❤
Obrigada, Regina – e obrigada por gostar de teatro!!!