Talvez se possa dizer muito da grandeza de um artista a partir de suas apresentações em circuito privado, institucional. Neste segmento de exercício da arte, existem muitas histórias loucas, casos surpreendentes – nomes de projeção capazes de exigir cachês exorbitantes e nenhuma densidade profissional. Ao longo da vida, de show em show, pode-se deparar com situações inacreditáveis – estrelas que esquecem o show vendido para uma empresa e aparecem esbaforidas, em surrados trajes de ginástica, ou o cantor célebre de rara antipatia disposto a invadir o palco para a apresentação acontecer logo, mesmo que o gesto signifique atropelar o ritual de beija-mão que costuma rolar após o discurso do presidente da empresa que – justamente – o contratou. Talvez a imaturidade do mercado explique gafes tão estrondosas.
Mas dá para esquecer tudo isto diante do banho de profissionalismo assinado por Maria Rita no show festivo do Dia do Médico, da UNIMED. Que senhora cantora, que senhora artista, que beleza de apresentação. O espetáculo é despojado, puro ato de musicalidade vibrante. Em cena, os cinco músicos da banda recebem a cantora, vestida para festa, em um terninho rosa pink de corte elegante, decorado com paetês pretos e um decote profundo, próprio para decorar uma silhueta de estrela.
Maria Rita chega cantando – a escolha para a abertura não podia ser mais apropriada, a Rita Lee de Agora só falta você, convite à libertação. O tema segue em Encontros e despedidas, de Fernando Brant e Milton Nascimento. E a abertura do show se fecha no lirismo viajante de Caminho das águas (Rodrigo Maranhão). O canto serve para Maria Rita dissipar um certo nervosismo, aquele frisson de pisar em cena, tensão logo diluída em palavras. A cantora saúda a plateia, contida mas desenvolta, parabeniza os médicos, fala de improviso do prazer de estar ali e de seu gosto por festa. A plateia segue um tom comportado, bastante comovida com a qualidade da voz e da apresentação da artista. Não é um show para sacudir o esqueleto e despachar a alma para o ostracismo…
Ela comenta a situação atual de sua carreira: entrou em uma fase de dedicação às músicas de Gonzaguinha, a partir do recente Rock in Rio. A febre explica o bloco seguinte. A justificativa para a escolha elenca as razões que nos levam, nós todos, a respeitar a obra do cantor-compositor: a qualidade das composições, o gosto-Brasil. A elegância malemolente e o carisma de Gonzaguinha ecoam na explosão que se segue, uma sensacional versão samba-pop da irresistível Eterno Aprendiz. Vem o samba miudinho – Eu acredito é na rapaziada. O tom rascante de Comportamento Geral se instala forte, reverbera no jogo e na ginga de corpo e no solo de guitarra de estremecer o coração. A canção adensa a atmosfera humana intensa que a artista consegue irradiar. O bloco Gonzaguinha culmina com uma batucada arretada em É e um arranjo pródigo em explosões sonoras em O Homem Falou.
Diante do microfone de pé, a cantora pede aplausos para a excelente banda e lembra o acontecimento emocional que foi a comemoração dos 30 anos da morte de sua mãe, Elis Regina, em 2012 – a maior cantora deste país, observa. A emoção é sincera: sem hesitar, ela conta como foi difícil enfrentar a força criativa da mãe, cantar o seu repertório, atitude necessária e afinal possível nas comemorações. A expressão sentida provoca fortes aplausos, que são ampliados neste bloco, em que canta em homenagem a Elis, apresenta pérolas do repertório da mãe. Digamos que é puro ponto de combustão: a voz afinada e de timbre cristalino, agradável, envolve a todos em uma aura mágica, pois Maria Rita é mais doce, mais meiga, mais sedutora – ela é mais perto, faz bater coração com coração.
E a noite segue, envolvente, divertida, pulsante – segura de si, em paz com a imensidão do mito nacional absoluto que é a sua mãe, Maria Rita é um bálsamo musical para quem gosta de boa música. A noite se instala como prazer, vale por tudo o que vem, grandezas de Milton Nascimento e Gonzaguinha, vale por esta atmosfera encantatória, um fluxo magnético que envolve tudo. Elis vive e está impregnada por um jeito celestial de ser. Não, nada disto: Elis não queria nos deixar e nos legou um tesouro musical faiscante, puro fluxo de belas sonoridades, em duas palavras, Maria Rita. Gente, que show! Valeu, para não esquecer.
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