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Algo de novo sob a luz:
tempo de guerra, tempo de paz

 
Máquinas de morte, dor e destruição: para isto fomos feitos por D’. O nosso destino é aniquilar a vida, arrasar a Terra. Depois de nós, não será o dilúvio, mas o fim do fim. Ou não. Qual seria, afinal, o sentido da vida? Por quê vivemos em estado de guerra, homens lobos dos homens, algozes de nossos melhores sentimentos? O que nos leva a persistir no ímpeto de matar?

 

Para quem se atormenta com estes grandes enigmas humanos, dolorosos, Meu Saba, cartaz do Espaço Sergio Porto, significa a reconciliação com o palco, significa ter o alento de um teatro inteligente. A temporada será curta, corra para ver: há um novo tipo de teatro em cena, a um só tempo conceitual, emocional e engajado. Em duas palavras, sensacional e imperdível. Seco, direto, estruturado sob uma forma tributária da sensibilidade atual, belo de doer, ele traz questões fundamentais para a reflexão. Questões temáticas, políticas e existenciais. E questões teatrais.

 

Elas giram ao redor de uma personalidade grandiosa do nosso tempo, o ex-primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin (1922-1995). Um dos grandes artífices da busca do fim da guerra no Oriente Médio, Prêmio Nobel da Paz em 1994, com Arafat, ele foi morto a tiros em 1995 por um judeu ortodoxo, da corrente inconformada com os caminhos propostos para a paz na Palestina.

 

De saída, a montagem traz o tema da perda de grandes homens, estes seres raros, capazes das maiores renúncias pessoais em função do bem comum. A cena responde ao tema, numa articulação engenhosa, de imensa voltagem criativa. Num trabalho de profunda harmonia entre a direção (Daniel Herz), a cenografia (Bia Junqueira) e a luz (Aurélio Di Simoni), ela lida com a ideia do lugar da celebridade, graças a uma passarela, de tijolos cor de terra, que se torna inefável por causa da iluminação no seu interior, inserida num palco branco como a paz. Seria a passarela não da vulgaridade, mas do sentido maior da vida; interrompida, pois falta um trecho de tijolos. Graças ao jogo das cores escolhidas e às variações da luminosidade – há mesmo uma menorah feita de luz azul – o espaço evoca a imagem coletiva inconsciente de Israel e do Oriente Médio. Por si e em si, a cena ferve de emoção. E de política.

 

Mas aqui surge a delicadeza maior do projeto – meu saba significa meu avô, o parente doce que costumamos amar, espécie de pai de chinelos. Quem conduz a peça é Noa Ben-Artzi Pelossof, a neta amada de Rabin, a jovem que perdeu o avô querido no momento em que ele, vitorioso, iniciava a sua obra de maior grandeza, e acenava com a esperança de alguma paz para os corações delicados dispostos a lutar por um outro mundo. Impregnada pela dor mais nobre da perda familiar, a cena aproxima a emoção e a política de cada coração.

 

Noa Ben-Artzi escreveu um livro, “Em nome da dor e da esperança”, testemunho pessoal, afetivo e político, importante para a continuidade da obra do avô, um ano após a sua morte. A atriz Clarissa Kahane leu a obra e teve a ideia de transformar o texto em teatro. Miguel Colker, Daniel Herz e Evelyn Dizitzer aceitaram o desafio. A adaptação da obra, feita por Clarissa Kahane, Daniel Herz e Evelyn Dizitzer, encontrou um formato ousado para expressar o sentido do livro – optou-se por localizar a ação na cerimônia solene do enterro de Rabin. O espetáculo acontece sob um conceito de tempo transgressivo, inovador, a sua duração simbólica é a dos trinta segundos em que a jovem deve se levantar e chegar ao palanque para, em seu nome e em nome da família, fazer a última homenagem ao avô. Dividida entre o tempo real e o tempo interior, a cena se torna eletrizante.

 

Clarissa Kahane tem todo o engajamento possível no projeto ousado, um monólogo de extrema dificuldade. A sua juventude técnica como atriz empresta um brilho extra à ação, confere impacto e sinceridade às palavras. Numa espiral dramática requintada, ela dá nervos e sentimento ao palco, mas sob uma forma contida, moderna, alternância de relato, análise e dramatização. Ela precisa expor a expectativa dolorosa da cerimônia fúnebre formal e o interior devastado, mas pleno de emoções, vivências, lembranças, carinho. Enquanto a sua mente ensaia a ação física imediata, de percorrer a passarela, para chegar ao palanque e falar de amor à guerra, o seu racional tenta rememorar os fatos relevantes de sua vida e do seu tempo e a sua emoção viaja pelos meandros sentimentais usuais numa hora de perda. É uma ciranda teatral em vertigem emocionante, obra de uma bela atriz.

 

Vale destacar o alcance impressionante da luz de Aurélio Di Simoni neste espetáculo – em várias sequências, o espaço de representação surge como pura construção da luz. Há uma partitura rigorosa de movimentos, oscilações sentimentais e argumentativas, soluções sonoras (e como é adequada a música de Antonio Saraiva) na qual a iluminação desponta como princípio norteador.

 

Assim como o figurino (Antonio Guedes) se projeta ao propor a imagem de uma jovem moderna de luto, a cena teatral adquire um impacto muito particular ao reconhecer que se trata, em especial, enfim, de um tema de luz. Para sugerir o debate amplo de um assunto tão urgente como a guerra, numa sociedade como a nossa que vive em estado permanente de guerra civil, é preciso contar com uma proposta deste porte poético, em que a plateia se torna um ser sentimental regido pela luz. Ousada, densa, impactante, política, sentimental, luminosa – eis a cena teatral necessária para o nosso tempo, para celebrar a inteligência maior da vida. Trata-se de um espetáculo de paz essencial para um mundo em guerra.


Ficha Técnica
 
Direção: Daniel Herz
Elenco: Clarissa Kahane
Autoria: Noa Ben Artzi-Pelossof
Adaptação: Clarissa Kahane, Daniel Herz e Evelyn Dizitzer
Direção de Produção: Miguel Colker
Consultoria Dramatúrgica: Evelyn Disitzer
Diretor Assistente: Wendell Bendelack
Assistente de direção: Carol Santarone
Iluminação: Aurélio Di Simoni
Cenografia: Bia Junqueira
Figurino: Antonio Guedes
Música: Antonio Saraiva
Direção de Movimento: Duda Maia
Assistente de cenografia: Zoé Martin-Gousset
Assistente de figurino: Adriana Lessa
Design: Luisa Henke
Fotos: Pedro Fulgencio – Frito Studio
Comunicação: Rodrigo Schuwenk
Programação Visual: João Suprani e Ana Seno
Produção: Henrique Botkay
Coordenação de Produção: Agatha Santos
Produção Executiva: Rodrigo Wodraschka
Coprodução: Albert Saadia
Assistente de administração: Marcelo Bento
Produção Geral: Araucária
Idealização: Clarissa Kahane e Miguel Colker.

Serviço
“Meu Saba”
Local: ECM Sérgio Porto (Rua Humaitá, 163 – Rio de Janeiro)
Temporada: 17 de abril a 30 de maio
Dias e horários: Sexta e sábado, às 21h e domingo, às 20h
Capacidade: 130 lugares
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 60 minutos