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Uma nova coluna do blog terá este formato: vai aparecer de vez em quando, sem periodicidade certa, com temas pontuais. Quer dizer, mais especialmente, com temas biográficos – falar um pouco de artistas arrebatadores, aquelas personalidades do teatro capazes de deixar as plateias contemporâneas sem fala. Nomes do presente, nomes da história. Por isto, o nome – Monólogo e Monodrama.

Para a estreia deste formato novo, uma escolha natural – Vera Holtz. Sem dúvida, um nome forte da atualidade teatral brasileira, uma hábil tecelã de sintonias com o melhor das almas do nosso tempo. Atriz vocacionada para falar com o espírito coletivo, ela é um autêntico fenômeno popular.

Contudo, vale a ressalva, de saída: tal qualidade não nasceu de sua alentada carreira na televisão, repleta de papéis de impacto, em diferentes novelas. A qualidade vem, antes, da sua forma de ser: a atriz é um furacão em feitio de gente, uma verdadeira turbina criativa. Dizem que já nasceu assim, nasceu e a luz da cidade ao redor apagou…

Para honrar a definição, ela retorna ao palco numa montagem no mínimo desconcertante. Rastilho de pólvora. Nitroglicerina teatral pura. Afirmações curiosas? Pois é. São justas. Os substantivos explosivos parecem redondamente adequados à verdadeira travessura cênica que ela resolveu apresentar. A atriz entra em cartaz a partir desta semana em Ficções, no Teatro I do CCBB. Antes mesmo de ver, já sabemos, ela vai explodir os nossos corações e gerar um tsunami de sensações renovadoras da vida. Afinal, não há dúvida: é o objetivo do melhor teatro, compromisso de ouro da atriz.

O convite irresistível nasceu de um projeto idealizado por Felipe Heráclito Lima, apresentar uma encenação inspirada no livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari. A dramaturgia e a direção foram assumidas por Rodrigo Portella, um esteta inspirado devotado à poesia da cena, sempre preocupado em fazer o palco pulsar vertiginosamente.

Se considerarmos o fato de que o original de Harari se estrutura ao redor da busca da inteligência mais aguda a respeito da vida, dá para termos uma ideia do tamanho da ousadia cênica.  No livro, um bestseller que se tornou longseller, o autor defende a visão de que o grande trunfo da espécie humana diante das outras espécies reside na sua potência para criar coletivamente, inventar, imaginar, e, a partir daí, instaurar uma realidade de cooperação entre milhões de almas. Na tessitura do texto, artistas criadoras muito sensíveis às formas dramatúrgicas transgressivas atuais dialogaram com Rodrigo Portella – Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa.

Naturalmente, difícil encontrar uma atriz mais adequada ao papel. Como juntar em cena, numa intérprete, texto conceitual de história, representação, invenção, vontade de ficção, gana de viver, diálogo com a plateia e com o tempo…? Reconheçamos de saída – Vera Holtz possui um talento dramático absoluto, transpira teatralidade. Ela transitou ao longo de sua carreira, com extrema desenvoltura, das formas dramáticas mais tradicionais ao contemporâneo e ao pós-dramático.

O início da vida profissional aconteceu com uma montagem histórica de grande impacto. Paulista, depois de uma passagem fugaz pela EAD, ela escolheu o Rio para viver, ingressou na Escola de Teatro da UNIRIO e passou nos testes realizados pelo diretor José Renato (1926-2011), professor da escola, para compor o coro de Rasga Coração, último texto de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) encenado em 1979.  

Rasga Coração – 1979, foto de divulgação.

Ali, algumas conexões teatrais profundas foram tecidas – José Renato foi o fundador do Teatro de Arena e se tornou um grande conhecedor de Brecht, apesar de trilhar uma carreira decididamente comercial a partir dos anos 1960. Vianninha, projetado graças ao Arena, se tornou o maior líder e a maior inteligência do teatro engajado nacional. Se o ponto de partida foi comum, as trajetórias se afastaram. Mas, com o passar do tempo, os opostos se aproximaram.

Diante das dissidências da geração, Rasga Coração marcou uma guinada a favor do teatro, a percepção de que a grande arte do palco podia conciliar uma densidade estética inquietante e o sonho de revolução, com a realidade da bilheteria e do mercado. No meio da encruzilhada, estava a jovem iniciante Vera Holtz. E o entendimento prático do embate, aliado à descoberta da paixão pelo teatro, se tornaram guias de sua vida.

Theatro Musical Brazileiro – Nelson Carega, Anabel Albernaz, Marshal Netherland, Vera Holtz, Fabio Pilar. Foto de divulgação.

A atriz estrelou com força total em 1985, num outro espetáculo histórico – Theatro Musical Brazileiro – Parte 1 (1860/1914). A originalíssima criação assinada por Luiz Antônio Martinez Corrêa (1950-1987) se tornou o grande marco histórico da retomada do gênero musical nos palcos nacionais. Apesar da intensidade de sua personalidade artística, na qual a temperatura dramática atinge facilmente coloridos trágicos surpreendentes, Vera Holtz tem, ao mesmo tempo, uma forte expressividade musical, um corpo impregnado de música, qualidade que viabilizou desempenhos de impacto em espetáculos musicais.

Um certo Hamlet – Fodidos Privilegiados.

No Theatro Musical Brazileiro – Parte 1 a sua performance arrebatava o público de forma irremediável. Exuberante, divertida, iluminada por uma força interior contagiante, Vera Holtz se revelou no seu melhor: estrela de teatro. Nunca mais a sua inventividade cênica se submeteu a qualquer limite; trabalhou com Gerald Thomas, mergulhou no inquieto universo criativo do diretor  Antônio Abujamra (1932-2015), ao lado de quem integrou a primeira formação da companhia Fodidos Privilegiados. Tornou-se estrela nacional incontestável com Pérola, de Mauro Rasi, em 1995, trabalho que lhe garantiu a conquista dos prêmios Mambembe, Shell, Sharp e Apetesp.

Pérola, Sérgio Mamberti, Emílio de Mello e Vera Holtz.

E não parou por aí, claro. Sim, Vera Holtz estremeceu a sensibilidade carioca, em particular as almas femininas, com o seu desempenho em O Palácio do Fim, de Judith Thompson, em 2011, uma direção de José Wilker revolucionária no seu artesanato de imersão racional no caos. Com uma máscara humana plena de dor e de revolta diante da barbárie que pode envolver a espécie, Vera Holtz fazia do repúdio feminino à guerra do Iraque um libelo contra todas as guerras.

Palácio do Fim, 2011.

Apesar da carreira intensa na televisão, a atriz não se manteve nunca distante do palco. Desposou pesquisas refinadas a respeito do universo de Beckett, ao lado dos irmãos Guimarães, assinou direções felizes com Guilherme Leme Garcia, dirigiu uma flor de delicadeza cênica em Sonhos para vestir, com a atriz Sara Antunes.

E tem mais. Vera Holtz sempre foi uma amante inveterada das artes visuais. Dotada de domínio técnico no campo, criatividade e muita habilidade artesanal, ela causou sensação na internet durante a pandemia de coronavírus graças a invenções divertidas e performances deliciosas, intervenções-relâmpago perfeitas para sacudir comodismos e pasmaceiras.

Em resumo, contemplar a obra de Vera Holtz traz para nós, contemporâneos, a certeza de que ela representa uma fortuna teatral rara: justamente a certeza de que uma artista pode, com o seu talento, demolir barreiras sensíveis limitadoras das forças revolucionárias maiores da vida. Será este um postulado querido para o historiador Harari?

Pode ser. Se existe dúvida, ela, no entanto, não integra o perfil da atriz. Então, que ninguém duvide. Fique alerta. Agora, em Ficções, a nossa nitroglicerina teatral mais pura vai explodir a sua alma. Mas, não se aflija, mantenha a calma. Dos cacos, nascerá uma felicidade renovada diante do ato de viver. Vera Holtz garante.