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O mais que perfeito teatro do nosso tempo

 
Talvez você, amante do teatro, tenha um grande medo: a morte ou a esclerose senil de sua arte adorada. Condenada por velhice em nosso tempo de tecnologia impiedosa, ela estaria sem função, pronta para desaparecer. Pois esqueça o peso dos séculos, as ameaças sombrias dos faustos do século XIX e comemore com uma festa teatral. Ela está logo ali, irresistível, inebriante, no Teatro dos Quatro – é a montagem sensacional de Morte Acidental de um Anarquista, de Dario Fo (1926-2016).

 

Prepare-se para usar a sua inteligência, desprezada em tantas rotinas contemporâneas. E para rir, rir até não poder mais, aquele riso irmão da melhor racionalidade. Em cena, está um time de gente de teatro impregnada até o mais fundo da alma pelo encanto e o desafio do palco. O seu líder é um assassino violento da pobreza de espírito – o mirabolante Dan Stulbach.

 

O mais impressionante na montagem, uma direção de Hugo Coelho em brilhante sintonia com os conceitos de Dario Fo, é a ideia de diálogo teatral com o presente. Presente, aqui, significa, ao mesmo tempo, a idade do mundo, a nossa era histórica, a situação do país, a poética do texto, a plástica da cena e o virtuosismo do elenco.

 

A arte de Dario Fo nasceu da admiração, desde a infância, da atuação dos fabulatori populares italianos, uma forma de teatralidade muito mais do que secular. Nas praças, nas feiras, ao ar livre, eles construíram uma longa tradição de autênticos cômicos devotados ao divertimento público, crítico, inteligente, disposto a indagar com acidez a arquitetura da vida. Farsesca e por vezes carregada nas tintas, esta arte pressupõe a construção de canais diretos de comunicação com o público, transportado sempre para o fogo da representação. A lição está inteira em cena. E funciona a ponto de matar de rir.

 

O eixo da trama é o desnudamento da estrutura do jogo político que rege o mundo hoje. O procedimento se filia diretamente à arte do legítimo artista da rua: pretende revelar o mecanismo convencional de cristalização do poder, voltado para a liquidação da discordância, da crítica, da inteligência, enfim, do cidadão, reduzido a massa de manobra.

 

O estado moderno, impedido de usufruir das velhas teorias do direito divino e, hoje, até mesmo das teorias de legitimidade ideológica, erigiu mecanismos para impor versões dos fatos e para disparar uma cortina de escândalos. Assim, o homem comum é soterrado por uma vertigem de dados e sensações, aprisionado pela inércia causada pelo espanto ou pela anestesia mesmo.

 

No texto e em cena, Dario Fo decidiu explodir tudo: soltou um louco na delegacia. A inspiração veio de um fato histórico simples. Em 1969, um atentado terrorista em Milão matou dezessete pessoas e deixou oitenta e oito feridas. Um ferroviário anarquista foi preso como um dos suspeitos e morreu, atirado do quarto andar da delegacia. Foi comprovado que ele estava morto antes da queda, mas o inquérito, logo arquivado, definiu a morte como suicídio.

 

Na peça, um louco, personagem de ficção, detido por falsidade ideológica, pois tem a mania de assumir diferentes profissões sem estar habilitado, inferniza a delegacia, justamente aquela em que houve a morte do anarquista. Ao perceber a oportunidade de se transmudar em juiz, ele consegue desnudar a farsa do poder e revelar a verdade, do fato em si e do poder.

 

Encenada pela primeira vez em 1970, a peça se tornou sucesso mundial. E a sua eficácia como forma teatral do nosso tempo aparece cristalina nesta montagem. A partir da direção e da dramaturgia, também de Hugo Coelho, concebeu-se um jogo cênico dinâmico e de extrema modernidade, dialógico, em que o foco do texto segue a obra original, mas, ao mesmo tempo, abraça o fervilhante Brasil que nos abriga (ou nos deserda).

 

Dan Stulbach, ator de extensos recursos expressivos, a um só tempo histriônico, extrovertido, e cerebral, improvisador e concentrado, personifica o louco sob uma linha fiel aos fabulatori amados por Fo. Ele segue o caminho sugerido por Dario Fo, incorporou as suas lezioni: não hesita em usar as formas populares de contação dialogada e relato, domina a arte do improviso, explora o uso do corpo segundo afiada linguagem corporal.

 

A inteligência cênica se estende por todo o elenco: Henrique Stroeter, Riba Carlovich, Maíra Chasseraux, Marcelo Castro e Rodrigo Bella Dona sabem muito bem onde o espetáculo deseja chegar. Note-se a existência de um desenho peculiar da ação, em que o protagonista, louco, conta com um núcleo de antagonistas, as autoridades envolvidas no caso.

 

Assim, há uma constante exposição do ridículo do poder, linha desenhada com fina elegância por Henrique Stroeter, Riba Carlovich e Marcelo Castro. Maíra Chasseraux, como a repórter investigativa decisiva para a apuração do caso, amplia o poder de corrosão do louco, desenvolve um hábil contraponto em que a loucura se torna gesto coerente.

 

Vale destacar ainda a notável sonoplastia e a sugestiva paisagem musical, desenhadas por Rodrigo Geribello, um homem-som, inserção criativa propensa a valorizar a principal ideia da montagem, a de acreditar na transformação e na potência do ser humano.

 

Rodrigo Geribello surpreende por seu poder de invenção, é capaz de inusitadas criações sonoras, ao vivo, em cena. O mesmo efeito ecoa do cenário. Ele é, a um só tempo, visivelmente frágil construção de papel, fácil de ser derrubada, mas imponente imagem da massacrante burocracia usada pelo poder para diminuir o cidadão.

 

Sob uma luz em geral aberta, muito pensada para o encontro do palco com a plateia, os figurinos, de Fause Haten, são indicações de lugares sociais, efeitos de cor, mas, em especial, amostras de um mundo comum, bem cotidiano – afinal, o poder que mata está aqui, todos os dias, entre nós.

 

Em resumo, tudo em cena fala da vida de hoje e convoca o espectador a interagir, a pensar junto a partir do riso, o velho riso desabrido. Aquele mesmo riso que, desde os gregos, no teatro, espeta o cérebro e a alma do cidadão.

 

Se você sabe que precisa de sua inteligência afiada para viver este mundo agitado e, além de tudo, ama teatro, corra, a temporada vai ser curta, não deixe de ver. O teatro de verdade, apesar das ameaças de suicídio acidental, está vivo. Alegre-se: há um teatro do nosso tempo vivo, pulsante, vá comemorar. Tome cuidado, apenas, para não morrer de rir. Ou dar a louca pelas ruas, com uma disposição alucinada para explodir o lado podre do poder no mundo!

 

Ficha Técnica
 
Texto: Dario Fo
Tradução: Roberta Barni
Dramaturgia e Direção: Hugo Coelho
Elenco: Dan Stulbach, Henrique Stroeter, Riba Carlovich, Maíra Chasseraux, Marcelo Castro e Rodrigo Bella Dona
Música ao vivo:Rodrigo Geribello
Cenário: Marco Lima
Figurino:Fause Haten
Iluminação: Hugo Coelho
Assessoria de Imprensa no Rio de Janeiro: Barata Comunicação
Assessoria de Imprensa em São Paulo: Daniela Bustos e Beth Gallo – Morente Forte
Projeto Gráfico: Vicka Suarez
Produção Executiva: Katia Placiano
Realização: Quadrilha da Arte
Produtores Associados: Selma Morente, Célia Forte e Dan Stulbach

Serviço
Morte Acidental de um Anarquista
Teatro dos Quatro
Temporada 2017 RJ: de 03 de Março a 02 de Abril – Temporada Prorrogada até 30 de Abril
Estreou em 23 de setembro de 2015
Shopping da Gávea – R. Marquês de São Vicente, 52 – Gávea (402 lugares)
Informações: (21) 2239-1095 / 2274.9498
Vendas: www.ingresso.com
Bilheteria: de segunda a sábado, das 13h às 21h; domingo das 13h às 20h ou até o início do espetáculo. Aceita somente dinheiro. Pagamentos com cartões somente pelas vendas online.
Sextas 21h | Sábados às 19h30 e 22h | Domingos às 20h
Ingressos:
Sextas R$ 70 | Sábados e Domingos R$ 80
Duração: 80 minutos
Classificação indicativa: 12 anos