A fascinação por seu impacto na alma popular tem feito o circo povoar os sonhos do teatro de nosso tempo. E o deslumbramento tem seu preço: tornou o tema um tanto gasto e difícil de trabalhar com força e originalidade. Pois o velho circo de sempre é o tema do espetáculo Na Lona, sob um tom marcado por razoável indefinição. Trata-se de um circo um tanto improvável: falido, ele é tocado por três mulheres palhaças maltrapilhas, que vagam livres pelas estradas em busca do público. Esquecido o princípio de realidade, que não permitiria que tal conjunto existisse ou, caso existisse, sobrevivesse, vale olhar para a cena com olhos de poesia, reconhecer a arte do picadeiro como mero pretexto para um estudo de linguagem. Sob a direção de Fabianna de Mello e Souza, a partir de um argumento de duas das atrizes, o elenco feminino criou a encenação através de processo colaborativo, forma de autoria e criação muito difundida entre os grupos teatrais hoje. Trata-se, de certa forma, da revisão da criação coletiva de outrora, com o recurso à improvisação e ao compartilhamento da autoria ao lado do diálogo com as competências artísticas especializadas mais convencionais, que não eram prezadas nos grupos libertários dos anos 1960/1970.

Ainda assim, nesta proposta, a direção manteve o elenco livre, entregue demais às próprias inquietudes, com resultado muito desigual. Há uma oscilação perigosa do estilo da cena, que resulta indefinido, pois a montagem recorre a quadros e ações de extremo realismo (como o quadro do sono), ao lado de cenas inteiramente teatrais ou ficcionais (como  a seqüência da maquiagem da velha atriz) e de cenas híbridas (a preparação da sopa). Em geral, as cenas se alongam mais do que o necessário, extrapolam o tempo adequado para comunicar o seu sentido à platéia, muito embora a dedicação e o empenho das atrizes, Cris Muñoz, Fabiana Poppius e Flávia Lopes, exerçam grande poder de sedução, com bom uso do corpo em fluxos criativos quase sem falas. A seqüência do circo-teatro, a mais forte de todas, merecia maior desenvolvimento, assim como todo o momento do espetáculo circense, melhor resolvido do que toda a extensa demonstração da rotina da equipe. As passagens de cena e o manuseio do cenário portátil e colorido (Clarice Bueno e Laura Shalders), contudo, obedecem a ritmos e a soluções frágeis, de quebra da ilusão e da teatralidade.

Vale destacar que “Na Lona” é um projeto de trabalho denso, atesta a seriedade do grupo As Comediantes. Os figurinos (concepção das atrizes) ardilosos, a luz (Aurélio de Simoni) simples e funcional, as músicas originais (Samantha Rennó e Luiza Brina) de extrema adequação ao tema, auxiliam a montagem a traduzir, sob coloridos fortes e com uma profusão  barroca de objetos, o encanto que o picadeiro continua a exercer para a busca da renovação da linguagem do ator; a montagem tem atrativos para quem se preocupa em acompanhar as vertentes de pesquisa da cena, ainda que o velho circo não se instale como senhor dos humores da noite.