Crônica cotidiana: a TV nossa de todo dia

 
Preparem os lenços – ou melhor, os lençóis, mas de quatrocentos fios de algodão egípcio. Sim, Félix Khoury foi assassinado. Não vale reclamar, mandar carta para a emissora ou manifesto-bomba para o autor. Não vai adiantar, até porque o doce terrorista da trama, o doutor Pérsio, desistiu dos sonhos explosivos por amor. Então, nada vai ecoar no Projac contra a decisão. O bicho fera está morto. É claro que já tem uma procissão de viúvas, uma fieira enorme de gente que gostava mesmo era de ver o coisa ruim em ação… Pode? Ou não, as viúvas serão vencidas por um novo herói nacional?

 

Bem, se houver choradeira, não vai ser a única lamúria contra a novela Amor à vida, desde a sua ida aos ares no horário nobre. Se fôssemos fazer uma lista das queixas, este muro das lamentações superaria a muralha da China. O engraçado é que as reclamações usuais, até aqui, não eram semelhantes ao luto por causa da morte do bandido número 1 da trama. As queixas nasciam da estranha propensão da novela para ignorar coerências e lógicas próprias da vida rotineira, além de atropelar desdobramentos naturais ou continuidades da própria ação. Exemplos? Ah, renderiam uma novela nova.

 

Para ficar em uns poucos casos recentes, incomodou o bandido Félix sair de casa levado pela mãe, para ir confessar seus crimes na casa da irmã, e ir parar, de carro, na casa de Niko, o sempre competente Thiago Fragoso… E quando chegou em casa, Pilar e Maciel namoravam no jardim. Ou seja: não dava para ele ter dado um pulo em casa para pegar o carro, pois teria sido visto. Mas esta é das leves: reclama-se do assassinato inacreditável de Mariah, sem berreiros, da cena do casal limpando o sangue do chão e da entrada de Cesar em cena, sem que ele se desse conta do forrobodó… E de ninguém, até agora, ter procurado a desaparecida, que tem marido e filho! Uma mulher muito mal amada. Outro incômodo, a queixa contra o tempo que passa e as crianças que não crescem: nem o filho de Aline, nem o filho de Niko, nem a popular Maryjane.

 

E a coisa vai mais longe – como as pessoas mudam de linha de ação de forma tão grotesca, como a outrora saltitante Amarylis? Como um médico rico, de família rica de médicos tradicionais, dono de hospital de luxo, grande conhecedor de uísque, bebe uma gororoba adulterada aos litros sem engasgar…? E consegue ficar confinado em um ermo com uma mulherzinha arrivista de perfil duvidoso, quando contava, certamente, nos agitos da sociedade e da família, com deusas de salão arrebatadoras? E não tem os camaradas de banco de escola de medicina para ativar a pesquisa de sua doença?

 

Bobagens, vamos combinar. O problema é simples: é outro. A novela não deseja fazer polaroide do cotidiano ou das rodas da vida. O que o autor deseja, o experiente Walcyr Carrasco, é botar a vida para rodar e… enveredar por outros lados da existência. Há um outro momento do folhetim em pauta. Sim, tudo o que vem do cotidiano espoca na tela como pretexto, mas para mostrar não a ordem reconhecível do cotidiano. O que se pretende, neste caso, parece ser a busca de um formato novo para o modelo novela, fato importante para discutir.

 

Amor à vida – e o título, quem sabe, é uma declaração neste sentido, amor à vida, exuberância de formas de existir – procurou fazer da novela uma pura enxurrada sentimental. Há um painel diário de sensações, emoções, sentimentos, percepções. O que se pretende é disponibilizar uma nuvem feérica de sentimentos em tempo integral, coisa que pode se erguer sobre um fiapo de lógica cotidiana. Ou lógica nenhuma.

 

Claro que a propaganda do BBB prejudicou esta linha, ainda que tenha desembocado na caixa de vidro, lugar de exposição-contemplação… Claro que o núcleo popular, apesar da excelência de Elizabeth Savalla e Luís Mello, dois atores experientes e disponíveis para a brincadeira de exercitar múltiplas emoções, descambou para a repetição cansativa dos mesmos motivos, em desvantagem para Tatá Werneck. Mas, em compensação, alguns atores do núcleo central, o dos ricos, levaram o telespectador a ganhar na loteria da arte da emoção na telinha.

 

Há a excelente Paolla Oliveira, a respeito de quem tenho ouvido injustíssimas queixas, nestes lugares públicos habituais em que comentamos as novelas – salões, feiras, salas de espera… Tem gente que acusa a atriz de ser fraca e sem sal, um absurdo completo. Paolla foi sorteada com um papel dificílimo – uma menina rica desprovida de todas as defesas habituais das meninas ricas, que a protegeriam de Ninho, Félix, Alejandra e que tais.

 

Sustentar ingenuidade e desproteção para embarcar nas ciladas propostas, francamente, ela é uma atriz monumental. E brigar pelo amor da filha (a ótima Klara Castanho) e de um namorado pobretão, mocinho muito implausível defendido com galhardia por Malvino Salvador, foi um percurso de uma grandeza interpretativa única. As variações afetivas ao seu redor, em descompasso com o que seria o seu lugar social, foram imensas. E ela singrou o mar de lágrimas como experiente almirante.

 

Acompanhar o romance de Nathalia Timberg e Ary Fontoura soa como outro grande prêmio deste novo mundo algodão doce do coração – dificilmente se vê, na TV, um caso romântico comparável, de velhos bem velhos, em paralelo com ações coadjuvantes decisivas, que dão o sentido maior ao casal. Eles seriam os confidentes de Pilar – um novo desempenho esfuziante de Suzana Vieira. E de Antonio Fagundes, respectivamente.

 

Aqui o assunto fica monumental mesmo, gigantesco. Perdoem os penitentes de plantão e em vigília, mas todas as arbitrariedades que possam ser cometidas contra o bom senso deixam de ter qualquer importância quando servem para fundar uma paleta de emoções como a que tem sido desenhada por Antonio Fagundes no contorno inacreditável de César Khoury. A sua cegueira e o rol de expressões ao redor da situação constituem obra antológica – e ainda bem que ele não morreu lá pelos meados da trama, como se veiculou nas páginas de boatos. Para nós, no sofá, ele é o pai legítimo e intenso de Paolla Oliveira e Mateus Solano, agora, na reta final, reconciliados e alçados à condição de prováveis heróis redentores do patriarca discutível.

 

Para chegar a tanto, não há mais dúvida, assassinaram o Félix amado de todos sem piedade! Nenhum ator se beneficiou tanto deste novo modelo de folhetim como o jovem ator – ele lavou a alma e não apenas as mãos. Curioso observar como o desejo de desfilar uma galeria multifacetada de afetos gestou uma dupla curiosa – a filha, fruto do amor proibido, amada em desmedida pelo pai, ao lado do filho, filho segundo enxerido sobrevivente ao primogênito, fruto de um casamento nem tão emocionante assim, inclinado a aventuras várias ao redor… Ela, emparedada pelo carinho, ele, atiçado pelo desamor, ainda que desfrutasse da obsessão da mãe.

 

Sim, o assunto é Mateus Solano. Existe explicação para uma figura destas? Ele não hesita, ele tasca, como aqueles meninos valentes de rua e terreno baldio de outrora, que embarcavam em qualquer brincadeira. Diante do papel quase anedótico, conseguiu fazer uma revolução. O seu Félix foi um convite ao afeto transgressivo desde o primeiro olhar. Descaradamente gay, mas enrustido, impiedoso, venenoso, maledicente e cínico, seria um psicopata a mais na história das novelas.

 

Ou não. Gênio do mal, exalava tal empatia na sua ruindade que virou o queridinho de todos, um feito surpreendente, um psicopata impossível, um grande mal amado talvez. Ele não fez pouco: no mínimo, jogou uma criança recém nascida em uma caçamba de lixo. E foi amado de forma tão doentia pela mãe adorada que ela o perdoou, sob o fantástico argumento de que não poderia, ela também, jogar aquele homenzarrão enorme na rua… Como se houvesse comparação possível. Depois desta, não há volta. Está feito: mataram o Félix. O bandido precisou evaporar graciosamente, por amor, foi o milagre do cachorro-quente.

 

Mas, ao que tudo indica, isto não muda nada. Ele ressuscitou, pronto para o final feliz! O turbilhão de afetividade que Mateus Solano se acostumou a acionar vai continuar em foco, com outro sinal. O rosto puro, límpido, tocado por mínimos movimentos dos olhos, sobrancelhas, face, lábios, pescoço, é a ferramenta do ator soberano. É impressionante a alquimia de sua arte: ele faz com que as palavras transportem ideias e sentimentos, a um só tempo, traz estas sensações e percepções para impregnar a face e espalha-as para o corpo – por isto era tão arrebatador para o público vê-lo em movimento e aos berros, em uma dança desengonçada: “olha o hot-dog do Félix”…

 

E assim, não houve jeito: a carrocinha pegou todos nós, vira-latas, cachorros quentes de carência afetiva, brasileiros comuns cuja menoridade cívica conduz à hipertrofia sentimental, de uma só vez. Félix morreu, mas Mateus Solano venceu de fio a pavio, astro querido da nossa forma mais brasileira de diversão. Há quem não goste dela – desculpe. Não sabemos com certeza absoluta se Deus é brasileiro, mas a novela é. Amor à vida se impôs como um liquidificador de emoções em que Félix é um retumbante barman. Ao menos por isto, que venham os lençóis que comoveriam Cleópatra. E vida longa para as boas novelas da TV.

(foto da barraca de cachorro quente tirada na Rua do Ouvidor, no Centro do Rio de Janeiro. Créditos David Szpacenkopf)