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Carnaval: papo sério

 
Falam em crise – e não sei dizer se entramos nela. Sim, a coisa está de dar choque em tomada. Mas, para ser bem franca, o Rio de Janeiro está em crise faz tempo. Atolou, voltou ao pântano original. Até nisto a cidade é de vanguarda, está à frente do país. Se bem consigo raciocinar, o Rio está em crise desde a fusão. Começou a afundar quando deixou de ser cidade-estado. E o estado do Rio, como um todo, teria começado a afundar lá pelos idos de 1920. Mas esta não é a história desejada aqui. A questão em pauta é outra – depois do ouro, do café, dos tecidos, da moda, o único produto local de exportação que nos restou é… o Carnaval! É isto: podemos vender alegria para o mundo.

 

Pois bem. Neste caso, precisamos conversar sério e começar a arrumar a casa. Da nossa imensa lavoura do Carnaval, o produto mais acabado, o melhor produto, é o Desfile das Escolas de Samba. É o que temos no momento. Precisamos, então, cultivar a plantação. Não, não é para o Estado, esta coisa deformada brasileira que atrapalha tudo sempre, intervir, interferir mais do que já interfere. A questão é outra: a linha de produção está aí, pronta. Só falta ser entendida, assumida e melhor tratada. A sociedade civil precisa empoderar o desfile de Carnaval. E se apoderar dele.

 

Acompanho os Desfiles das Escolas faz tempo, primeiro como gosto espontâneo familiar, depois, bem depois, como interesse intelectual. Mas sempre como foliã. Já torci por várias escolas, atualmente não saberia escolher uma, o meu coração anda dividido. A ressalva vai logo aqui para deixar claro um ponto importante – não tenho interesse comercial no fato, não pertenço a qualquer agremiação e não tenho, no momento, nenhuma ocupação profissional carnavalesca. Apenas sou carioca, gosto de carnaval desde a infância, já desfilei muito, acompanho sempre as escolas e acredito na força do carnaval.

 

Isto posto, passemos aos fatos. Há um universo infinito de problemas e questões relativas ao carnaval por resolver, dentro do pensamento de que urge cuidar do melhor que temos para vender. Tanto é problema o sambódromo, pequeno para abrigar uma festa móvel que não para de crescer, como o montaedesmonta das arquibancadas do Mangue, um caso à parte na história da festa. As arquibancadas do Mangue são inacreditáveis. Chocantes mesmo, mas não se pode acabar com elas, garantem a ilusão triste de que o povo mais sem dinheiro pode participar do folguedo. O problema mais grave e imediato, de solução simples, é a filmagem e a transmissão do desfile pela TV. Também é inacreditável. E precisa ser debatido, para ontem. Para chegar num patamar de dignidade do produto.

 

Não existe qualquer problema no monopólio, na venda do direito exclusivo de filmagem. Mas quem se habilita ao cargo deve ter em mente que este é um serviço de amor ao Rio, de política cidadã de proteção da cidade, pois o potencial do produto é imenso e o seu significado para o Rio mais do que estratégico. Quem é do Rio tem obrigação de defender o Rio. Vale repetir: é o que temos para vender. As Escolas de Samba são as relíquias vivas da nossa cultura no presente. São construídas por uma forte parcela da população, que se engaja resoluta, cúmplice, na elaboração da obra. E têm uma história notável. As Escolas de Samba são preciosas. E são uma fonte de renda expressiva para o Rio, muito embora esta condição não obtenha a valorização condizente.

 

Um exemplo: o tango, na Argentina, não é desprezado ou desmerecido como o samba aqui. Existe uma estrutura séria de valorização do tango, desde o tango para gringo até o tango para portenho. Ao chegar em Buenos Aires, dá para programar uma noite de tango a cada dia, por vários dias, em padrão justo de conforto e até de luxo. A gradação das ofertas é imensa. Há mesmo muito tango de chapéu, na rua. Existe um vasto material cinematográfico e documental a respeito do tango. E tudo muito elegante, sem mesquinharia. Não passa pela cabeça de ninguém abordar o tango sob um tom casual, espontaneísta, improvisado e desrespeitoso. O tango não é um baixo comércio, é um assunto sério. Ninguém despreza o tango, em especial dentro do universo do tango.

 

Neste carnaval de 2016, graças à crise e a um teimoso joelho delicado, decidi não ir para a avenida sambar. Optei por um programa que não seguia faz tempo, desde o retiro imposto pela maternidade: ver a concentração, a preparação dos carros na Presidente Vargas, e acompanhar o Desfile pela televisão, inclusive o maltratado Grupo de Acesso. Vou comentar os dois programas, para apontar problemas urgentes e de fácil resolução, que a LIESA e o mundo do samba precisam, no meu entendimento, considerar.

 

Na concentração dos carros alegóricos do Grupo Especial, fiquei espantada com a ausência de profissionais do memorialismo ou do jornalismo. Não vi cobertura de imprensa, de documentarismo ou de filmagem, durante todo o tempo que passei na avenida. Levei boa parte da tarde, nos dois dias do desfile especial, zanzando. E só esbarrei com populares, muitos tipos estranhos ou assustadores, profissionais do carnaval e trabalhadores.

 

Algumas escolas não contam com esquema de segurança maior, para proteção dos carros, exceção apenas da Imperatriz Leopoldinense, protegida por uma notável equipe profissional. Se um maluco resolver acabar com a folia, é fácil. Ao mesmo tempo, para a memória do carnaval, importa muito registrar a situação da concentração, em especial este momento raro, em que os carros estão prontos (ou quase!), mas ainda estão sem foliões, aguardam na pasmaceira do fim do barracão o início do rebuliço.

 

Depois, a transmissão pela televisão. Atualmente, a detentora dos direitos para o Brasil e para o mundo é a TV Globo. Acho que a empresa faz um belo trabalho, generoso, grande mesmo, é louvável, investe alto, mas ainda há muito por fazer. Existem entraves que ultrapassam os limites do canal de TV, são nossos, culturais, de oposição ao carnaval. A festa não é vista como algo a que se possa dar maior importância. E aí começa a dificuldade.

 

Em primeiro lugar, a televisão deveria reconhecer que o carnaval é o Carnaval, a nossa festa maior, o nosso ato mais sublime de cultura – portanto, assim como paramos a vida para entrar no bloco ou para ver o bloco passar, a televisão deveria fazer uma Programação de Carnaval. Quem não gostar, pode ir para o retiro. Não tem o menor sentido sacrificar a transmissão ao vivo dos desfiles por causa da grade rotineira da emissora.

 

Este ano, escolas como a Estácio e a Vila Isabel, de extremo interesse para o Desfile, foram prejudicadas, sem falar no prejuízo para o telespectador. A televisão não vê a inteireza do Desfile, trata como se qualquer olhar fosse bastante, como se não houvesse problema em cortar um pedaço. Este é o ponto número um do tema: o desfile é um Desfile, Carnaval é papo sério. A vida tem que mudar.

 

Quer dizer, por aqui, o problema é colossal: somos ruins da cabeça e doentes do pé – não gostamos de samba. Nem das Escolas de Samba. Nem de carnaval. Quando muito, fingimos gostar. Ou gostamos e escondemos, com vergonha alheia, como se estivéssemos errados, culpados por cometermos uma terrível transgressão. Não reconhecemos o tesouro que possuímos. Desprezamos esta nossa imensa riqueza. Estamos mergulhados num preconceito embolorado, herdeiro do século XIX, contrário à grandeza desta forma de expressão. O Carnaval é a nossa identidade secreta. Pecado mesmo.

 

Achamos que o nosso belo Carnaval é só carnaval, é uma coisinha. Pois só assim podemos explicar a esdrúxula situação de ignorarmos o início do desfile para ficarmos ligados num corriqueiro programa de variedades ou num capítulo de telenovela. E, depois, quando a avenida entra no ar, mostrarmos todo o Desfile como se fosse um emaranhado de coisinhas.

 

Sim, é este imenso desprezo que explica também toda a forma da cobertura, simplista ou quase amadora, às vezes até leviana, constrangedora, espontaneísta, dedicada a ver tudo como algo pequeno, desimportante. A transmissão deste ano foi pontilhada por erros absurdos de informação que poderiam ser resolvidos com a simples leitura do material de imprensa (sempre muito detalhado, precioso!), elaborado pelas Escolas de Samba. Sem falar ainda em todo o material da LIESA, os manuais, releases, revistas e roteiros de trabalho. Ou nos livros, teses, dissertações. Faz tempo o Carnaval se tornou objeto de estudo sério, mas a televisão não percebeu.

 

Mais grave. A televisão esquece um dado fundamental: quem decide virar a noite na frente da televisão vendo o Desfile, gosta de Desfile, quer ver o Desfile, quer saber como está resolvida esta obra de arte tão curiosa, pois, caso contrário, teria muitas outras opções para ocupar a tela ou a vida. Quem vê o Desfile deseja ter informação completa. E para o mundo, temos a obrigação de mostrar o produto inteiro, fascinante e único. Só vai passar a noite diante da televisão quem gosta de Escola de Samba. E quem estiver ali por acaso, vai gostar de saber o que vê, pode até fidelizar, acabar gostando.

 

O resultado do nosso preconceito na cobertura da televisão é gritante: a televisão ignora o Desfile como unidade porque ela não reconhece a identidade do Desfile das Escolas de Samba – não percebe que se trata de fazer um documentário cultural, registrar um fato que acontece segundo uma forma própria de manifestação. Na verdade, quem cria está na avenida, o artista é o samba, o diretor de imagem e de telejornalismo não precisa criar nada, basta filmar o que acontece.

 

Trata-se de uma obra de arte para ser mostrada, arte em movimento – não há sentido em fazer cortes mirabolantes e criar sequências aleatórias para algo que está acontecendo, obedece a uma forma estruturada segundo suas leis peculiares de criação. Basta pensar na cobertura de um jogo de futebol – não vale ir procurar notícia vadia na arquibancada no pleno calor do jogo, não vale filmar o goleiro adversário ocioso enquanto a bola rola no meio de campo em direção ao outro gol. Simples assim.

 

Este ano, a presença de Milton Cunha na cobertura da Globo foi preciosa, ele se revelou um autêntico Rei do Samba, para recorrermos ao nosso gosto por títulos, coroas e reinados. Salvou muito do desastre geral da cobertura. Mas, os demais jornalistas presentes, ainda que sejam profissionais de excelente gabarito e notável qualificação, grandes comunicadores, não demonstraram desenvoltura diante do tema.

 

Os erros de informação foram incontáveis, a identificação das escolas era uma lista de dados secos (que poderiam ser lidos na tela e estavam em todos os guias dos jornais), as escolas passavam sem que o tratamento dado aos enredos ficasse claro, fantasias sensacionais passavam desapercebidas, a dança do mestre-sala e da porta-bandeira não ficava no foco, várias comissões de frente se tornaram enigmas, vários carros alegóricos e destaques não foram focalizados. Ao mesmo tempo, inúmeras tomadas intermináveis dos cantores, da bateria, de celebridades instantâneas ou de beldades de aluguel desperdiçavam um tempo precioso.

 

A estrutura do desfile não recebeu tratamento objetivo – basta ver os compactos dos desfiles para elencar um rol impressionante de cochilos. E os comentários de assuntos pessoais, inoportunos, incomodaram bastante. O encontro com figuras das escolas pós-desfile, para entrevistas desnecessárias e confraternização fora de hora, prejudicou sempre a cobertura da escola seguinte. E isto sem falar nas lamentáveis matérias feitas nas arquibancadas, sempre inventando assunto, pois nada digno de nota acontecia ao redor dos repórteres escalados para ficar no meio do povo.

 

Em comparação, no Desfile das Campeãs, no sábado de Aleluia, apesar dos recursos técnicos muito limitados e de falhas eventuais de jornalismo carnavalesco, a TV Brasil, escalada no susto para a cobertura, fez um trabalho de qualidade louvável. Houve o reconhecimento do Carnaval como Carnaval e o do Desfile como forma de arte. Comentaristas especializados traziam informações, em geral pertinentes, esclarecedoras, o fluxo das imagens não traía o fato.

 

Aliás, em velhos filmes disponíveis na internet, é possível ver algumas coberturas realizadas pela extinta TV Manchete, marcadas também por uma outra visão dos desfiles. O tempo passou, mas vale conferir.

 

Sim, impera nas filmagens antigas da velha tevê muito de uma mentalidade constrangedora lamentável, sexista, determinante de uma edição de cena discutível, tributária da valorização do turismo sexual. Ela é lamentável não por causa de uma censura moralista, mas por reduzir a dimensão do Carnaval, transformá-lo num comércio pequeno. Infelizmente, o problema continua ainda hoje. O furor sexual sempre existirá na festa popular, mas deve figurar como ingrediente acessório, não pode ser alçado ao papel de protagonista, não pode promover o desvio do foco principal, o turbilhão criativo da festa. O Carnaval é uma festa do povo, não é uma festa da prostituição.

 

De toda forma, numa avaliação rápida, o trabalho dos velhos jornalistas revela uma linha preciosa de abordagem, muito especializada. Fizeram a escola das Escolas. Os grandes nomes? Destaque-se a qualidade da narração de Paulo Stein e a ciência de Fernando Pamplona (1926-2013), Haroldo Costa, Maria Augusta, Albino Pinheiro (1934 – 1999), Maurício Sherman, Sérgio Cabral, Mauro Costa (1939-2011), José Carlos Rego (1936-2006).

 

O fã das escolas de samba exige muito, com certeza. Mas o assunto é maior do que as paixões eventuais. Se nós quisermos honrar a nossa riqueza cultural e cuidar da fortuna que nos resta com seriedade, não adianta fazer coberturas descartáveis, ligeiras, em que o samba aparece como curiosidade brejeira ou assunto sem importância, coisinha de carnaval. O samba e as Escolas de Samba são produtos de exportação, vale insistir. Assunto sério, nunca é demais frisar. Sim, estamos falando de grande comércio – o Carnaval se tornou comércio faz tempo, sem deixar de ser uma usina de alegria. Se uma coisa diminuísse a outra, não existiria mais Carnaval. Falta olhar com seriedade esta forma tão nossa de fazer arte no meio da vida, no meio da rua.

 

Existem grandes jornalistas, alguns maduros, velhos profissionais de carreira, outros até bem jovens, especialistas no assunto, capazes de gerenciar uma linha de cobertura densa, séria, profissional, tudo o que precisamos para honrar a história profunda de um povo que diz no corpo, na poesia e no pé a sua ambição de contribuir para tornar mais humana a vida no mundo. Alguns textos destes profissionais são comoventes indicações de caminho. As Escolas de Samba e as suas organizações sabem muito e prezam os seus saberes.

 

Se há uma crise séria em algum lugar, algo a seu respeito já se sabe com muita clareza: não dá mais para tratar a pulsação mais intensa do povo da terra como fato irrelevante, coisinha de pouca expressão. O povo não está em crise: o país ainda não afundou porque o povo segura a corda, inclusive com a potência da economia informal. A crise não é de expressão,também. A crise é do poder.

 

Chegou a hora, então, de o poder apostar na saída de sua crise com a abertura de espaço para a expressão mais plena e legítima do povo. No pacote está incluído o Carnaval. Nunca antes em todo o tempo se viu tanta gente por aqui, pulando na rua. Chegou a hora de tocar o apito, liberar o porto a favor do samba. Vamos cultivar o nosso talento, vender sem vergonha o nosso melhor produto para o mundo, vamos deixar a gente bronzeada mostrar o seu valor. E, senhoras e senhores, a coisa é simples: isto começa com uma transmissão decente do Carnaval pela TV.