Entender o próprio tempo sempre foi um ato de louca ousadia – e este é, em alguns momentos ao menos, o desejo profundo do teatro. Pois não é outra a opção em cena em Deus é um DJ, texto do alemão Falk Richter, autor que permanecia inédito nos palcos daqui. A montagem é irresistível por esta razão simples: tem o sabor do nosso tempo, faz as perguntas da nossa época, aquelas que assolam os nossos travesseiros.

O original foi escrito no final dos anos 1990 com o objetivo de tentar aproximar o teatro de novas formas de arte, brindar com o universo jovem e indagar a respeito da relação entre tecnologia, mídias, ser e liberdade. Talvez, por causa deste vínculo tão explícito, imediato mesmo, o texto pareça algo datado – mas, ainda que a tecnologia, de lá para cá, tenha disparado em velocidade supersônica, o problema de fundo, humano, permanece – e não parece antigo ou reacionário perguntar sobre o valor da pessoa diante da espiral de consumo e de aniquilação humana que vigora ao nosso redor. Um farto deserto existencial nos cerca, ampliado a cada minuto pela atraente invenção tecnológica que nos envolve: vale conjeturar a respeito dos desenhos existenciais necessários para se mover nesta atmosfera.

A trama é simples – um casal de jovens artistas multimídia, imagens fortes do presente, um DJ e uma VJ, é contratado por uma galeria de arte para viver como bichos em vitrine. Cercados por câmeras, eles se transformam em imagens vendidas e veiculadas na internet, meros artigos de consumo. Eles vivem confinados na galeria e em sua rotina misturam suas histórias, suas pessoas, suas artes e o projeto para o qual foram alugados. Os limites entre arte e vida resultam esfumados e esta nota é percutida todo o tempo.

A encenação acontece no interior de um espaço novo – o Cubo – ele próprio uma proposta de ruptura do limite entre as artes, graças à combinação das funções de galeria de arte e de espaço teatral. Ainda assim, a direção de Marcelo Rubens Paiva não cometeu ousadias e manteve a separação palco-plateia convencional, bem como o desenho geral da representação. Buscou, no entanto, com bastante sucesso, diluir as fronteiras entre a realidade dos atores e a situação teatral, ampliando o efeito proposto pela peça. A cenografia de Ana Kalil traduz com limpidez as exigências do texto, papéis desempenhados também pela direção musical e pela sonoplastia (Nado Leal), pela luz (Tomás Ribas) e pelos figurinos (O Estúdio). Na criação de imagens e em toda a definição da visualidade do espetáculo há um grande profissionalismo.

O maior encanto da montagem, contudo, é o trabalho dos atores, um casal ainda sem forte projeção na cena teatral, mas dotado de perfis exuberantes. Vale a pena ver o trabalho deles em cena, é muito bom. Maria Ribeiro e Marcos Damigo conseguem traduzir o tom informal essencial para o andamento da trama, um misto de despojamento, arte e encenação. A necessidade de induzir o espectador à dúvida, ao questionamento a respeito do que vê, à definição das cenas, entre performance, vida ou teatro, é uma constante. Há um domínio da arte admirável, discretas filigranas de emoção, alguns bons efeitos de realismo e um tom elegante de distanciamento crítico, uma espécie de vontade de mostrar uma trama em ação. Enfim, o presente está no palco. E é um alento constatar, graças ao trabalho da equipe, a atualidade de uma lição antiga – não estamos sozinhos. Seja qual for a voltagem de invenção da sociedade humana, seja qual for o risco que corramos de virar postas de vida em esquisitas vitrines, o teatro está do nosso lado, pronto para nos ajudar a pensar a respeito do labirinto que – hélas – conseguimos inventar para nos perder.