O Teatro Assassinado

 
Copacabana, a pátria carioca do pecado, abriga um cartaz de teatro dedicado à transgressão teatral mais monumental da história do país. De certa forma, trata-se de um assassinato do teatro. Quem quiser conferir, vá ver a peça Salina (a última vértebra), do grupo Amok, cartaz no Espaço SESC Copacabana. Todo o território proibido do teatro brasileiro está lá, no meio da cena, em cores berrantes e corpos desnudos, para quem quiser ver.

 

Trata-se de uma ousadia nunca antes tentada – o teatro devotado à pesquisa de linguagem, à experimentação e à invenção do espaço decidiu incorporar aos seus estudos o tema efervescente da expressão afro-brasileira ou negra. A partir do texto do autor francês Laurent Gaudé, Ana Teixeira e Stephane Brodt, na direção, ousaram propor um espetáculo difícil, uma estranha combinação entre a palavra sentimental, a exploração intensa da corporeidade e a forte expressividade africana. Ainda que a montagem seja bastante longa e a trama um tanto previsível, o saldo final é emocionante em vários sentidos – vale a pena ver.

 

Em primeiro lugar, trata-se de um escritor contemporâneo, inédito aqui, deliberadamente empenhado em escrever uma peça impossível – um texto que não pretende obedecer às regras do mercado, não segue modismos e não tem padrão submisso a qualquer instância exterior. Trata-se de um original em estado de liberdade. A história contada pelo texto transpira drama quase em estado bruto, à beira do dramalhão; significa, em último grau, o confronto entre o indivíduo e o coletivo, a transgressão e a tradição, o desejo e a lei, ainda que não possa chegar a ser considerada uma tragédia. Fiapos de vivências africanas flutuam por toda a parte, quase num esforço de demonstração de uma forma de ser do continente, ao menos em sua parcela tribal.

 

A palavra sentimental deriva desta condição. A trama parece ecoar os enfrentamentos africanos de que se houve tanto falar, mas sob viés literário, pois as histórias reais são bem mais violentas. Salina, um ser sem história, adotada pela tribo em que apareceu vagando, ama um jovem, filho do poderoso da aldeia, mas foi escolhida pelo filho mais velho e é obrigada a aceitá-lo. Casada à força, violada, ela dá à luz um filho tão detestado quanto o marido. Por omissão diante do marido agonizante, recebe a pena de expulsão da aldeia e, exilada no deserto, cultiva a sua ira ao ponto de conceber mais um filho, o seu braço de vingança, caminho para um final de conciliação.

 

A saga heroica se impõe como se concebida sob medida para o Amok: exige intenso trabalho físico, notável exploração da expressão do corpo, traço característico do grupo. A cena é um jogo absoluto de corporeidade sublime, com certeza o ponto mais arrebatador da montagem, realçado pelos figurinos e pela cenografia, também dos diretores, de forte pegada africana. A música de Fábio Simões Soares surge orgânica, integrante da economia dramática, pulsa e faz pulsar todos os detalhes do desenho das cenas – uma obra admirável.

 

É muito difícil (e provavelmente absurdo) tentar entender a montagem a partir do comentário isolado das habilidades e competências. A marca do Amok – goste-se ou não de seus trabalhos – é uma ourivesaria teatral de extremo requinte. Como se fosse uma lenda africana, tudo se encaixa em tudo e tudo encaixa no todo. Um exemplo muito ilustrativo pode ser apontado: a luz, de Renato Machado, eficiente para o desenho da ação, fundamental para o desenrolar da progressão dramática, perfeita para apontar climas, corpos, expressões. O resultado comovente – e altamente subversivo – é a forte expressividade africana da cena.

 

E neste ponto reside o que de melhor se pode desfrutar desta encenação. De súbito, num golpe de palco, o Amok trouxe de volta para o centro da cena a discussão mais fundamental da história do teatro brasileiro que o palco daqui calou, omitiu, sufocou desde o século XIX. Nossos primeiros atores, entre o amadorismo e o exercício profissional, eram mulatos e negros, posto que aos brancos de família da época não assentava a transgressão de estar em cena. Estes negros e mulatos omitiram os seus batuques, empoaram de talco as faces e digladiaram com as palavras para recitar os versos clássicos da moda, sob o escárnio de muitos da plateia, que os viam como degoladores de poesias, incapazes de honrar tais textos. A profissionalização, no século XIX, reforçou cada vez mais a estética branca e relegou, em escala crescente, os negros e mulatos aos batuques das senzalas e guetos. Nosso grande espetáculo, a escola de samba, nasceu e cresceu longe do teatro.

 

Algumas iniciativas isoladas trataram de tentar romper as barreiras; nas revistas, a arte dos morros e errantes estrelas mulatas ou negras chegaram ao estrelato, mas esta era uma cena estigmatizada. Abdias do Nascimento lutou por elencos negros à frente de grandes textos e nos palcos nobres da cidade. Mas a expressão negra propriamente dita, a pulsação física e sentimental dos antigos batuques, que horrorizava os pregadores brancos, esta sempre esteve fora do palco nacional, mesmo nas revistas negras, voltadas para modelos franceses e americanos.

 

Agora temos um elenco negro numa proposta inteiramente nova, que ergue o véu antigo do teatro e traz a revisão do passado, a nossa negritude suprimida, o nosso pecado histórico. Os atores, corpos negros em sua inteira esbelteza, ainda hesitam no domínio da dramaturgia, oscilam em algumas contracenas, ainda tateiam na forma nova recém inventada, de conciliar palavra dramática e intensidade corpórea tribal, mas chegaram a um resultado comovedor. No conjunto, o desenho das cenas e do desempenho físico é de alto padrão. As danças, os jogos expressivos, as lutas são momentos de enlevo para a plateia.

 

Sergio Ricardo Loureiro transpira liderança e desenvoltura, imprime ao corpo um ímpeto magnético admirável. Graciana Valladares desenha o principio do feminino no espaço com leveza e requintada sensualidade; suas danças são atos delicados de entrega e concentração. Luciana Lopes mobiliza toda a expressividade em composição física detalhista, sustenta sequências desafiadoras, formas de ser que se assemelham a forças da natureza, às vezes em prejuízo das palavras. André Lemos se estrutura como guerreiro, materializa a imagem da força, trilha explorada também por Reinaldo Júnior, com resultado mais tímido. Thiago Catarino, apesar de transparecer juventude técnica, tem porte altivo e uma imagem de grande beleza, se projeta nas danças e sequências de movimento. Ariane Hime, responsável pelo papel título, sustenta a tensão da cena com muito garbo, enfrenta com naturalidade os vários desafios técnicos e desenha contracenas de impacto emocional, mas hesita na sustentação das transformações finais do papel. Na verdade, todo o elenco responde com desenvoltura ao imenso desafio, funciona efetivamente como elenco: o resultado alcançado engrandece a noite.

 

Sim, o espetáculo é longo, a trama em alguns momentos soa repetitiva ou previsível. Mas não se pode ficar sem ver esta montagem, ela é obrigatória. Ela se constitui como uma revolução na história do teatro brasileiro, um teatro que desde o seu início se negou a incorporar a força poética da negritude na sua maneira própria de ser, um pouco na visão de época de que a expressão negra era a capital do pecado, fruto de gente inferior.

 

Pode se dizer, assim, que esta cena representa pela primeira vez o assassinato do teatro brasileiro, ao menos naquilo que ele procurou louvar desde sempre, o teatro branco europeu, virando a face contra os seus atores primeiros, atores negros, obrigados a empoar os rostos de talco, para fugir de si e instaurar uma outra lei. Agora, afinal, eles estão em cena, rostos lavados, corpos negros cientes de si, o pecado do teatro ao alcance de nossos olhos, uma cena histórica de redenção.


Ficha Técnica
 
Texto: Laurent Gaudé
Direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco: André Lemos, Ariane Hime, Graciana Valladares, Luciana Lopes, Reinaldo Junior, Robson Feire, Sergio Loureiro, Sol Miranda, Tatiana Tibúrcio e Thiago Catarino
Música: Fábio Simões Soares
Luz: Renato Machado
Assistente de Direção: Vanessa Dias
Coreografias: Tatiana Tibúrcio
Cenário e Figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Bonecos: Maria Adélia
Tradução: Ana Teixeira

Serviço

“Salina (a última vértebra)”
Temporada: 26 de fevereiro a 29 de março
Espaço SESC (Arena)
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana
Tel informações: (21) 2547-0156
Dias e horários: quinta à sábado às 19h30 e domingo as 18h30
Ingressos: O preço do ingresso será de R$ 5,00 para comerciários; R$ 10,00 para jovens de até 21 anos, estudantes e maiores de 60 anos e de R$ 20,00 para os demais.
Bilheteria aberta de terça a domingo, das 15h às 21h
Capacidade: 180 lugares
Duração: 3h (20m de intervalo)
Classificação: 12 anos
Gênero: drama