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Teatro em forma de oração

 
Há uma poesia delicada e cortante nestes seres que chamamos de mulher. Por isto, o mistério da alma feminina, desde sempre capaz de intrigar a sensibilidade humana. Como entender alguém que está entre a natureza, a criação da vida, a ordem prática do cotidiano, mesquinharias da vaidade, a regência de um mundo incontável de miudezas e grandezas, o ato do pensamento? A beleza deste abismo está em cena e é o ponto mais arrebatador de Santa, trabalho de Angela Vieira e Guilherme Leme Garcia – uma obra tocante, surpreendente, imperdível. Não deixe de ver, é deslumbrante.

 

Não se trata de uma peça de teatro convencional, cotidiana. Talvez o mais adequado fosse qualificá-la como instalação cênica em movimento. O inusitado começa na forma de ocupação do Teatro Tom Jobim – o público entra por uma lateral sinuosa, percorre cantos obscuros do edifício, vai para uma arquibancada no palco, uma inversão da expectativa teatral e da relação espetacular rotineira. O ponto de vista foi invertido. Guilherme Leme Garcia, na direção e na concepção, pretende sacudir a forma de ver e de perceber.

 

Diante dos olhos surpresos da plateia, uma imensa cena branca, linda, esfumada, esvoaçante e delicada, de plástico branco, semelhante a um emaranhado de véus, se estende por toda a superfície visível. A beleza da cenografia de Bia Junqueira – em especial graças à massa branca impressionante, um volume cênico em estado de mudança e de oscilação – funciona por si como uma vivência estética ímpar. A luz de Tomás Ribas, sem dúvida, participa ativamente desta construção, amplia o impacto sutil. É de arrepiar.

 

Em tais condições, a dramaturgia, de Diogo Liberano, não apresenta um recorte convencional. A obra foi pensada a partir da sala de ensaio, aconteceu como um percurso criativo colaborativo, em equipe. A palavra funciona, portanto, como um dos meios da invenção poética, não conduz a proposta, é parceira. Acontece em diferentes registros, como palavra confessional, evocativa, libertária, estranhada, fraturada, como parte da paisagem sonora, ao lado da música.

 

Neste jogo, narração, expressão de sentimentos e de ideias dão o tom da partitura cênica verbal. Ainda que Angela Vieira e Guilherme Leme Garcia, devotos da cena, atuem, só para o final acontece algo que se poderia chamar, muito vagamente, de contracena. A maior parte do tempo, há uma busca pela expressão feminina e o ator surge como pretexto, um meio para que a atriz exponha referências sobre a mulher no amor – mais até: o ponto que se busca é a indicação de traços da identidade da mulher, em especial a mulher em estado de solidão. Um amor passado, vencido, serve de mote.

 

Talvez o autor Diogo Liberano seja um pouco jovem para focalizar o tema, bastante denso e polêmico. No fundo, a proposta gira ao redor da antiga ideia da mulher como santa, princípio de devoção ao outro, de abdicação, supressão de si. O foco seria a saída, a ruptura deste limite, uma trama do nosso tempo, pois não era comum questionar-se esta santidade em nossa sociedade.

 

Imagens de rara beleza, graças ao cenário, à luz, ao magnético figurino de Rui Cortez e aos atores ilustram o debate, inclusive para erigir a imagem de santa, à certa altura. Mas a dramaturgia, em especial no último movimento do trabalho, parece pouco contundente, superficial, para expressar o conceito proposto. A direção embarca também, afinal, neste sentido menor, um arremedo de situação realista se insinua para a construção do desfecho, a pulsação criativa cai. No saldo, o ponto forte do trabalho, arrebatador, é o requinte da invenção cênica, a coragem da ousadia poética, apesar da quebra no final do percurso.

 

Para dimensionar melhor o feito, destaque-se em particular a beleza dos corpos de Guilherme Leme Garcia e Angela Vieira. Plásticos, expressivos, impregnados pela ideia da obra, eles hipnotizam a plateia e formam uma unidade artística admirável com o conjunto das linguagens envolvidas na cena. Luar Maria, na direção de movimento e na coreografia, obteve uma fluidez de comunicação e de expressão decisiva para este resultado.

 

No fundo, a obra celebra a arte de Angela Vieira. E ela responde ao desafio. Há um impressionante equilíbrio entre a atriz e a bailarina no seu desempenho. Ela mantem uma extrema concentração, mantem vivo o ponto de tensão interior, ao mesmo tempo em que desenha o movimento do corpo no espaço sob uma ordem técnica precisa. Guilherme Leme Garcia se projeta como parceiro assumido, partner dedicado à revelação da arte da protagonista. Enfim, é um presente teatral oportuno para o público, uma cena de delicadezas bem vinda no cenário rústico vivido hoje no país: ilumina a alma.

 

A sensibilidade surge como a nota dominante no trabalho em particular quando o cenário branco se move magicamente, sob uma luz diáfana, graças a um simulacro de força natural – o vento. Nesta hora, toda a palavra parece ociosa, desnecessária, redundante – a pura contemplação do jogo da cena registra aquilo que se queria demonstrar. O que seria? Talvez algo do mistério eterno, etéreo, imponderável desta parcela frágil do mundo, detentora do segredo da vida, esta coisa chamada mulher. Se a poesia arrebata o seu coração, não deixe de ver – é um espetáculo na medida para as suas inquietações. Celebre no teatro o que nem sempre temos hoje na vida, infelizmente, a suprema delicadeza de ser mulher.


Ficha Técnica
 
Elenco: Angela Vieira, Guilherme Leme Garcia
e Antonio Negreiros (em setembro)
Dramaturgia: Diogo Liberano
Instalação/cenografia: Bia Junqueira
Iluminação: Tomás Ribas
Figurino: Rui Cortez
Concepção e Direção: Guilherme Leme Garcia
Codireção: Gunnar Borges
Direção de Movimento e Coreografia: Luar Maria
Direção Musical: Marcello H.
Trilha Sonora: Marcello H. e Marcelo Vig
Programação Visual: Alexandre de Castro
Assessoria de Imprensa: LAGE Assessoria – Fernanda Lacombe
Fotos: Dário Jr Foto e Artes e Pedro Damasio
Criação solo: Guilherme/ Antonio, Gunnar Borges e Guilherme Leme Garcia
Assistente de Figurino: Claudia Sin
Assistente de cenografia: Zoé Martin-Gousset
Assistente de produção: Pyetro Ribeiro
Realização da cenografia: Zoé Martin-Gousset e Bruno Jacomino
Operação de luz: Leandro Alves
Design e Operação de Som: André Cavalcati
Contrarregra:: Pyetro Ribeiro e Thiago Hortala
Camareira: Maria Lucia Belchior
Produção Executiva: Maria Albergaria
Direção de Produção: Sérgio Saboya

Serviço
De 25 de Julho a 4 de outubro.
Sábado, às 21h. Domingo, às 19h
Teatro Tom Jobim – R. Jardim Botânico, 1008 – Jardim Botânico
Valor do Ingresso: R$40,00 (inteira) R$20,00 (meia)
Telefone: (21) 2274-7012
Capacidade: 92 pessoas
Censura Livre
Tempo: 60 minutos.
Horários da bilheteria:
Segunda-feira: Não abre.
Terça à quinta-feira: 14 às 18:00 (ou caso tenha espetáculo, aberta até o horário de início do mesmo).
Sexta e sábado: 14:00 até o horário de início do espetáculo.
Domingo: 14:00 até o horário de início do espetáculo.
Venda site ingresso.com: 24 horas