A gripe e o pecado: longe do teatro
Dizem que tudo está escrito nos astros: não adianta espernear, pois na hora do nascimento cravaram um mapa e pronto. No entanto, o ser humano está longe de ser um mecanismo simples. Assim, dizem outros que não, não é nada disto – estava no céu uma disposição, mas, se você não prestar atenção nos caminhos, vai tropeçar e as estrelas vão mudar de lugar. Parece que as estrelas adoram mudar de lugar.
O que posso dizer? Não sou cigana – na infância, no subúrbio, aprendi a correr de ciganas até não mais poder, pois elas, segundo o conselho dos adultos, raptavam crianças, escondidas embaixo das saias lá não muito limpas. Depois da prisão nas roupas fedorentas, vendiam as presas – ninguém sabia para que rumo. Os cavalos, ao que diziam, viravam carne seca, mas a petizada, nunca souberam explicar. Na dúvida, pernas para que te quero: ciganas, não!
Assim, não entendo nada destas previsões, conjunções astrais, ainda que namore mapas, baralhos confusos, predições, sortilégios. Que graça teria a vida se não tentássemos supor que já está tudo decidido, é só virar a carta e pá? Uma cartomante aqui, um descarrego ali, vida que segue – e vai sempre surpreendendo.
Pensamentos dispersivos. Sempre acontece quando sou obrigada a ficar de cama. Peguei um livro, mas, o volume sensacional, excelente comparsaria para a gripe, não me livrou dos pensamentos saltitantes. Ao contrário. Piorou tudo. Pois no tal livro descobri que a data de nascimento do Rio de Janeiro é outra. E, portanto, a carta astrológica da cidade também é. Vivemos enganados sob estrelas falsas!
A descoberta, segundo este livrinho tinhoso que me pegou com mão de cigana fora de hora, seria do meu colega de Doutorado, o brilhante historiador da saga carioca, Nireu Cavalcanti. Infelizmente vejo pouco o velho colega de turma, distante dos saraus doutos da UFRJ. Felizmente, leio muito. E recomendo o colega, ele faz descobertas deliciosas. Mas não sei onde ele publicou – se é que já publicou – a nova certidão do Rio.
Enquanto procuro, para recomendar, vale indicar a leitura deste livro outro novidadeiro, sinuoso como os velhos caminhos da cidade maravilhosa. Trata-se do último romance de Alberto Mussa, A Biblioteca Elementar. Prepare-se: você vai ler de um sopro. Ou de um tiro. Sim, é um romance policial. E a graça é que se passa no Rio de Janeiro do século XVIII.
O livro é ardiloso como um contrabandista cigano, envolve a vítima por todos os lados, encena enganosas facilidades. Há um crime por desvendar – e o convite vem logo de saída. Há um passeio encantador pelas ruas, pelas paisagens humanas e sociais da pequena cidade do Rio de Janeiro. Há o misterioso mundo cigano acotovelado nos limites da cidade, logo ali na atual Rua da Carioca, a velha Rua do Egito, depois Rua do Piolho.
Mas há, em especial, um autor inteligente, preocupado em dividir o seu prazer com o leitor, como se a escrita fosse uma parceria inusitada. Assim como o cidadão contempla o seu mapa astral, assim ele pode e deve ter consciência de sua urdidura. O olhar inquieto também deve surgir diante das páginas escritas. Sinais da invenção literária afloram aqui e ali no texto, com muito humor. E várias perguntas ficam no ar.
Qual teria sido exatamente o destino traçado nos astros para esta bela cidade? Mussa afirma, a partir da aludida pesquisa de Nireu Cavalcanti, que a fundação do Rio aconteceu, na verdade, no dia 28 de fevereiro. A partir da voltagem erótico-sensual da trama, é para pensar que a cidade, para ele, nasceu destinada ao pecado. A Inquisição também pensava assim. Ou a linha bem sensual do romance significa apenas uma adesão a um gosto de hoje?
A galeria de tipos e de personagens presente no livro é sensacional – vários com razoável inspiração histórica, sempre coloridos pela notável capacidade inventiva do autor. As páginas, contudo, são poucas para uma gente tão sedutora e você leitor, ficará com a incomoda sensação de que eles pulam do texto e tentam passear um pouco ao seu redor, na sua vida – querem viver mais. No fundo, a a leitura do texto traz uma pergunta embutida numa queixa – por quê um esqueleto tão robusto para tão poucas carnes?
Sim, a história é seca, rápida, surpreendente e fulminante. E poderia se estender, se desdobrar por, ao menos, umas cinquenta ou cem páginas a mais. Como seria uma festa na Rua do Egito? Como era o cotidiano das casas, a vida miúda das mulheres? E o convento, com sua ordem terceira? Como segredos tão sombrios conseguiam ser guardados em casas de portas abertas? Quais eram os livros mais preciosos da biblioteca, preferidos pelas duas mulheres?… Como foram reunidos e ficaram juntos, numa época tão iletrada?
Como podem perceber, a obra é centelha no pavio, dispara o gatilho da curiosidade. De fato e de foco, uma circunstância me deixou maravilhada, condição bem adequada para uma cidadã devota da cidade maravilhosa ao ler um livro tesouro sobre o Rio. Foi o papel, na trama, da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, a minha igreja de coração no Rio, muito embora considere uma graça a de Nossa Senhora do Brasil. Mas, a da ordem terceira…
Acontece que, no romance de Massa, a Igreja da Ordem Terceira tem um papel central. E que papel. Desconfio que, a bem da verdade, ela não era um emaranhado de ruínas em 1733, já estava edificada nas datas escolhidas para a ação. Basta uma consulta rápida à história da construção do templo publicada na página do convento. Mas literatura é liberdade, a hipótese sugerida pelo autor é saborosa e contém uma lógica cigana, transgressora, que capturou a minha atenção.
O que me deixou zonza de verdade foi o fato do terreno da igreja, ainda não completada para o olhar do autor, ser o palco de tórridos encontros sexuais. Encontros adúlteros bastante peculiares, impossíveis de detalhar para não revelar partes vibrantes da trama (alguns leitores se incomodam com isto e tudo o que eu desejo é que corram para ler o livro). E por que fiquei zonza?
Quem conhece a igreja, muito modestamente retratada na foto acima, sabe do que estou falando. Ela é um alucinante convite para o êxtase: conseguiram fazer uma obra de arte tão intensa que o efeito é arrebatador, dá ao corpo e à alma a sensação de levitar, como quis fazer Wagner com a sua música, ou Dante, com o fecho luminoso da Divina Comédia.
E o que tem isto? No meu entender, é de uma cortante inteligência transgressora fazer supor que um templo tão inefável possa ter brotado do solo dos desvarios mais descabelados, orgiásticos, dos sentidos. Há, por aí, uma questão pessoal, confesso. A história é rápida, mas interessante, para indicar o poder de mobilização sensível que a escrita de Mussa consegue acionar. Ao menos no meu desvario!
Acontece que eu conheci a igreja por volta dos meus doze anos. Eu era católica, bem devota, por livre escolha. Conheci no curso da minha mãe (minha mãe tinha um curso de artes femininas) uma jovem mulher deslumbrante, recém casada, mas muito desencantada com o casamento, ex-modelo-manequim. Casou com um funcionário mediano de alguma coisa, morava no subúrbio por causa disto, morria de tédio e era uma leitora compulsiva.
Eu achei a figura muito singular: maquiadíssima, sempre na moda, era bem extravagante. Como eu era leitora compulsiva, ficamos amigas. A diferença é que ela lia livros da biblioteca rosa para moças e eu lia José de Alencar – estava dedicada à leitura da obra completa (!!). Logo ela me emprestou livros muito agradáveis, esvoaçantes como borboletas, adoráveis para quem, menina ainda, brigava com as frases alencarinas.
Muito bem: um dia, depois de violenta noite de briga, a minha amiga ficou viúva. O marido morria de ciúmes insuportáveis, doentios, bateu muito nela, tentou matá-la com uma garrafa quebrada e se feriu. Ele era hemofílico, sangrou, morreu. No bairro correu o burburinho de que ela, de alguma forma, o matara. Mas nada foi provado contra ela, ela se mudou e, muito minha amiga, me convidou para uma missa em intenção da alma do morto.
Sim, a missa foi na Igreja da Ordem Terceira da Penitência. Eu já andava pelo Rio, fui sozinha e, quando passei a soleira, entrei numa das maiores crises de heresia de todas as crises vividas na minha vida. Esqueci morto, amiga, viúva, Deus, igreja, padre, o que fosse. Mergulhei na eternidade da celebração do absoluto flutuando, aérea, em suspenso naquela luz dourada, submersa num mundo de brocado de ouro. Não, não dá para traduzir em palavras. Foi a missa mais deslumbrante da minha vida, completamente sem missa.
Portanto, o que eu posso dizer esta semana nesta coluna, diante deste livro tão especial sobre o velho Rio brejeiro e pecador, diante de uma cidade que desaba e de um país que treme e hesita? Primeiro, atenção: a data de aniversário da polis mudou! Depois, lembrem bem, por aqui sempre estiveram todos dispostos para cair no pecado e para abraçar a traição. Mas, não mudou, a carta astrológica?!? Vamos entrar na linha e levar o pecado para a literatura?
Não, nada, disso aí. O que importa mesmo? Importa que eu fiquei de cama, traí o teatro e fiquei muito feliz. Portanto, comprem o livro, leiam, por favor. É uma excelente homenagem à cidade. E à literatura. E aos estudiosos e pesquisadores do Rio. E à igreja mais deslumbrante que quaisquer olhos já viram. E se você não estiver gripado, de cama, aproveite a primavera e suas brisas ainda amenas – vá até lá, visite a igreja. E construa a sua versão a respeito destas loucuras transgressoras: embarque na delícia que é a carioquice na literatura. Enquanto ainda deixam…
MUSSA, ALBERTO.
A Biblioteca Elementar. Editora Record, 192 páginas. Mapa e cartas celestes: Mayara Lista.
BREVE NOTA HISTÓRICA
Sobre a Igreja da Ordem Terceira, há registro de que em 1726 Manuel de Brito entalhou o retábulo e o revestimento das paredes da capela mor. Em 1732, fez os púlpitos e Manuel da Costa Coelho teria feito o douramento da capela-mor. Portanto, em 1733 não havia um refúgio em ruínas para noites vadias.
https://patrimonioespiritual.org/2015/07/25/igreja-da-ordem-3a-de-sao-francisco-da-penitencia-rio-de-janeiro-rj/