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                  Almas de aluguel

Talvez você saiba muito bem o que acontece nos bastidores da política. E entenda o motor implacável capaz de acionar os movimentos dos homens do poder. Você sabe, então, o quanto os tais senhores se esfalfam para, abnegados, construírem uma vida melhor para todos. Consequentemente, a política seria a arte de pôr em prática o bem comum. E nada mais, além do bem comum, teria o poder de tirar o seu grande líder da cama…

Qual a consequência natural desta grandeza de chefia? Paz social, realização humana, harmonia pública, sob uma afiada prosperidade econômica. Então, em sossego, você suspira feliz e sabe bem o que dizer aos amigos e aos inimigos, recita sem hesitar certezas monolíticas a respeito das intenções e das ações do seu chefe. Ele é luz, estrela, bússola e norte, flor da manhã do porvir.

Ah! Você nem percebe, mas, afinal, segue feliz a coreografia imposta ao seu corpo por… palavras de ordem! Elas brotam impositivas dos comitês dirigentes do partido do seu notável guru. Eles seguem planilhas cegas, destinadas a fazer com que se viva no paraíso. O paraíso deles, claro. Então… o seu guru mente, engana…?

Bom – a vida não é perfeita – o seu guru pode não ser culpado; ele pode não ter poder de mando absoluto lá no partido. Pois é – imagine, também o seu comandante supremo, até ele, tem mandantes.  Num nível mais alto, ele pode ser um teleguiado dos poderes superiores, tanto como você.

Sim, o seu partido saberá melhor do que todos, melhor do que o seu líder, melhor do que você, exprimir a grande necessidade do momento, do amanhã e do futuro. De lá virá a deixa: grite, berre, proclame, marche, se recolha, cale. Resta a você, pessoa esclarecida e engajada na luta pelo bem maior, erguer a cabeça, cerrar os punhos e seguir aos berros a passeata amiga.

De onde será que vem o comando? Um lugar acima do líder, acima do partido, distante das ondas da arraia miúda das ruas? O quê, afinal, nos governa? Pois então, os poderes que movem a sociedade ultrapassam a esfera do sujeito, estão acima da vontade objetiva… São forças históricas.

O mais complicado, porém, nasce do encontro das forças históricas profundas com as personalidades. Os historiadores, hoje, pensam e pesquisam bastante a respeito. A sociedade parece ser gerida por grandes fluxos de forças, sobre-humanas e, digamos, cegas. Ao mesmo tempo, em cada pessoa anda um mistério, não? Como os dois polos se articulam? Qual a chance de partículas humanas ínfimas mudarem a História? Como funcionam estas partículas?

Talvez você não saiba nunca aquilo que, de verdade, move o seu chefe: ganância, ambição, vaidade, psicopatia, trauma de infância, bullying mal resolvido… ou generosidade, devoção lírica ao ser humano, altruísmo, iluminação espiritual? Ele é sujeito do processo histórico ou objeto? Talvez, mais do que o poeta de Pessoa, o seu político de estimação seja um fingidor. E finja tão completamente, a ponto de fingir que sente a dor social do momento, quando, a rigor, nada sente. Quer apenas ter uma mansão ou uma dacha, caviar, boa vodca, melhor uísque e vinhos caros.

Este é o drama – existem estadistas, seres raros, devotados à construção do bem social, e existem politiqueiros, figuras banais vorazes, caçadoras de bens sociais. Não é fácil distinguir um do outro, óbvio. Os politiqueiros se esmeram na arte de dourar suas armas de sedução. E por vezes alcançam enorme sucesso. Ao lado da dupla, existem os políticos, espécie de funcionário público diligente e, quando temos sorte, honestos e batalhadores…

Qual o problema? Teria sido sempre assim? O que há de novo? Na verdade, há muita coisa nova. Há um ser humano novo e um mundo novo. Uma enxurrada de ideias, conceitos, conhecimentos percorre os dias e pode banhar a vida de qualquer um. É só querer e buscar. Dá para ser livre e olhar além, ver através dos antolhos.

Existe uma teia de forças bastante intrincada ao redor de todos os cidadãos, ela integra o panorama da vida moderna.  Desde o iluminismo, graças à defesa do poderio dos seres comuns, todos dotados de direitos iguais, eles teriam se transformado na coluna de sustentação do poder. Bom, ao menos hipoteticamente. Nos levaram a acreditar nisto e, cacilda, acreditamos. Podemos querer ser poder... a partir daí.

Contudo, em geral o ser humano comum passa pela vida na condição de analfabeto político. Ninguém aprende política na escola. Artes preciosas como a retórica e a lógica formal simples andam longe dos bancos escolares. Assim, fica difícil ler as entrelinhas, os bastidores, o pano de fundo da cena política.

O resultado? Apesar de contar com um aceno do poder, a plateia é olhada como gado e aceita se comportar como tal. Desposa as palavras de ordem mais banais e acredita nelas. E o pior: este jogo de miséria moral humana se espraia com universalidade, na direita e na esquerda. Ainda não existe uma arte da política nova, adequada a isto de novo que somos, os novos cidadãos do mundo.

Sob a nossa novidade, a novidade que nos preside, perguntamos. Por exemplo: Quais os mecanismos existentes no interior do nosso ser que acionam a nossa disposição para a crença absoluta no líder x ou y? Qual o emperramento mental que obscurece a nossa visão da vida e consegue arrastar as pessoas para a morte coletiva, por exemplo, como no caso de Jim Jones, pregador do fim do mundo? Por que este cidadão novo consegue abdicar de si e se tornar uma ridícula massinha de modelar?

Existe uma forma de miséria existencial tão densa a ponto de uma multidão se transformar em exército de marionetes, quer dizer, seres movidos por uma vontade exterior, alheia? Algo parecido com a grande tragédia que aconteceu em Canudos?

Esta doação profunda para ser do outro, quando se pode (e se deve!) ser de si próprio, revela-se com uma força brutal, arrasadora, no trabalho excepcional do ator Amaury Lorenzo, sozinho em cena no solo A Luta, um dos melhores trabalhos teatrais do ano. A peça voltará ao cartaz agora em dezembro – programe-se para ver.

Trata-se de uma performance teatral belíssima, um daqueles trabalhos que você vai ver para não esquecer nunca mais. Primoroso alquimista de sensações, o ator vai reger a sua alma e, ao final, vai lhe ajudar a juntar forças, para você deixar de ser alma de aluguel.

Sob a direção de Rose Abdallah, o ator recorta a saga de Canudos – o texto assinado por Ivan Jaf é uma adaptação da terceira parte do clássico de Euclides da Cunha. Através de uma presença física intensa, com um fluxo de energia lancinante, Amaury Lorenzo materializa com perfeição o milagre do teatro. A um só tempo, ele consegue ser paisagem e humanidade, tiro e reza, pasmaceira e desespero, carência e onisciência, guerra e paz.

A forma teatral moderna – ou antes contemporânea – fundamenta a prática do solo como multiplicidade expressiva. Ao lado da representação física, aparece o relato seco e a narrativa inspirada, a representação emocional e sensorial, a explosão interpretativa.

A força expressiva do seu corpo, da sua voz e da sua presença transportam a plateia para o infinito – apontam para a necessidade do presente, urgente, de ser em plenitude. Cada pessoa precisa se tornar senhora de si e senhora do seu mundo, conquistar a governança das próprias ideias, a favor da liberdade social.

A cena apresenta um desenho rigoroso; a quase estreia de Rose Abdallah na direção revela uma profissional com pleno domínio da linguagem do palco. O ritmo, o andamento, a curva dramática são frutos de requintada maestria. O fluxo poético alcança um grande impacto, também, graças à luz artesanal preciosa de Ricardo Meteoro e à música original, de extrema eficiência para ao desenho da curva dramática, de Alexandre Dacosta.

Canudos denuncia o imenso abismo humano sobre o qual repousa a sociedade brasileira desde sempre; lá está evidente a precariedade do jogo político nacional, a rarefação da cidadania, a objetificação e a liquidação do humano. Sob a liderança de Antonio Conselheiro, formou-se uma comunidade religiosa e monárquica de impressionante pobreza. Ainda assim, após a declaração de guerra contra os revoltosos em 1896, o governo republicano sofreu sucessivas derrotas até conseguir chegar ao extermínio do arraial. A gana dos miseráveis sustentava o seu poder de enfrentamento, eles não sofriam de qualquer medo dos canhões.

Uma das grandes heranças sociais de Canudos foi o aparecimento das ‘favelas’ – nome tomado de empréstimo ao acampamento militar firmado para combater os revoltosos. Diante da indiferença glacial dos políticos e das elites, os heróis da luta se tornaram os primeiros favelados do Rio de Janeiro e a forma precária de vida se expandiu sem qualquer atenção relevante desde então. Cuidando de si, o poder ignorou o quanto pôde o imenso problema social.

Favela da Praia do Pinto, fotógrafo ignorado.

Vale perguntar então: o que fazem os políticos diante das profundas mazelas da cidadania nacional? Arregaçam as mangas de verdade ou engabelam os incautos com cenas, simulações ou cortinas de fumaça paliativas?  Lidam com as densidades desafiadoras que nos envolvem ou apenas conspiram, tramam a favor de si, para, gerentes de luxo da indigência, singrarem ilesos o tenso mar social ao redor, sustentados regiamente pelo trabalho da sociedade?

Dignidade, texto contemporâneo do espanhol Ignasi Vidal, uma incursão memorável neste universo, vai entrar em cartaz no dia 25 próximo, no Teatro de Arena do SESC Copacabana. A ficha técnica reúne um time teatral de alta voltagem criativa. Em cena, dois velhos amigos, Thelmo Fernandes e Claudio Gabriel, celebram 30  anos de carreira e de amizade.

Eles integram o elenco de ouro do palco brasileiro na faixa da maturidade plena – estão no seu esplendor profissional maior. Para coroar o encontro com uma carga de teatralidade irresistível, a direção foi entregue a Daniel Dias da Silva, também tradutor do texto.

Em sintonia com o grande debate humano e existencial do momento, a trama envereda justamente pelos bastidores da política ao mostrar o encontro de uma dupla de políticos, Francisco, líder de partido, e Alex, seu fiel assessor. Um tenso jogo de segredos e surpresas desfila diante do público, ao ponto de sacudir a velha amizade e impor perguntas fortes a respeito dos limites éticos da ação política. Sim, ética e política.

 

Talvez a oportunidade de contemplar trabalhos teatrais tão oportunos e tão bem formulados não traga a solução para as perguntas mais profundas que nos governam hoje. Mas, com certeza, a chance de olhar poesias de invenção tão revigorantes ajudará a todos a insistir no caminho da liberdade. Auto libertação. O tema é forte: o que fazer para levar a política a funcionar em sintonia com os ritmos sociais novos?

Simplesmente, temos políticos no poder em descompasso total com o novo conceito de cidadania que molda nossos dias e orienta a vida de muitos de cada um de nós. Chegamos a um patamar do processo civilizatório frontalmente desafiador – será que temos realmente uma sociedade dialógica, democrática e livre, propícia a viabilizar a plena existência do cidadão, liberto para pensar e desejar? Ou permaneceremos ainda, por longo tempo, sob um extenso rol de talvez, submersos a um mar de bolorentas palavras de ordem?

A LUTA

SERVIÇO:

Nova Temporada: 02 à 18 de dezembro de 2022

Sala Rogério CardosoCasa de Cultura Laura Alvim

Av. Vieira Souto, 176 – Ipanema, Rio de Janeiro – RJ

Telefone: (21) 2332-2016

Dias e horários: Sextas-feiras e sábados, às 19h, e domingos, às 18h.

Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia-entrada). Vendas na bilheteria e no site https://funarj.eleventickets.com/#!/home

Lotação: 40 lugares.

 FICHA TÉCNICA:

Autor: Ivan Jaf (baseado na Terceira Parte de Os Sertões, de Euclides da Cunha)

Direção e Idealização: Rose Abdallah

Ator: Amaury Lorenzo

Direção de Movimento: Amaury Lorenzo e Johayne Hildefonso

Iluminação: Ricardo Meteoro

Assessoria de Imprensa: Maria Fernanda Gurgel

Música Original: Alexandre Dacosta

Vídeografia: Sérgio Lobato | Cambará Filmes

Fotos: Nando Machado e Vitor Kruter

Identidade Visual: Inova Brand

Realização: Abdallah Produções e Bambu Produtora

Assistente de Produção – Juliene Pontes

Operação de Som: Samantha Korb

Duração: 60 minutos de espetáculo

Classificação 14 anos.

DIGNIDADE

SERVIÇO:

Temporada: 25 de novembro a 18 de dezembro

Dias da semana: Quinta-feira a domingo

Horário: 20h

Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)

Local: Teatro de Arena do Sesc Copacabana

Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana / Rio de Janeiro

Informações: (21) 2547-0156

Bilheteria – Horário de funcionamento:

Terça a sexta – de 9h às 20h; Sábados, domingos e feriados – de 13h às 20h

Classificação Indicativa: 12 anos

Duração: 90 minutos

FICHA TÉCNICA:

Texto: Ignasi Vidal

Tradução e Direção: Daniel Dias da Silva

Elenco: Thelmo Fernandes e Claudio Gabriel

Idealização: Daniel Dias da Silva, Renata Blasi e Thelmo Fernandes

Diretor Assistente: Sávio Moll

Figurino: Victor Guedes

Cenografia: Natália Lana

Iluminação: Vilmar Olos

Trilha Sonora: Daniel Dias da Silva

Projeto Gráfico: Raquel Alvarenga

Fotografia: Rafael Blasi – Vida Longa Audiovisual

Vídeos: Vida Longa Audiovisual

Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Assessoria – Gisele Machado & Bruno Morais

Gestão de Redes Sociais: Ana Lobo

Assistência de Produção: Julia de Aquino

Produção Executiva: Juliana Trimer

Direção de Produção: Renata Blasi e Ana Paula Abreu

Produção: Diálogo da Arte Produções Culturais

Realização: Blasi & Fernandes Produções Artísticas

  Diálogo da Arte Produções Culturais