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Para namorar a vida

Sim, namorar a vida. Não sabe como? Ora, não complique: vá ao teatro. Lá, diante de uma cena bem urdida, não há escapatória, o seu coração tomba, flechado para sempre, prisioneiro do mais puro amor. O resultado é natural – o teatro foi criado para isto.

Sim, a tese pode ser comprovada nos textos complicados dos filósofos. Note bem: textos de todos os filósofos! Uma pesquisa atenta pode trazer uma lista sem fim de argumentos. Aqui, numa conversa descontraída, dá para sustentar a versão nobre do nascimento do teatro por um caminho simples, muito embora inspirado num velho sábio grego.

Vamos partir de uma constatação primeira. O fato é que passam os tiranos, passam os estúpidos, passam os obtusos e o teatro fica. Por uma razão simples: o ser humano está condenado a aprender. Não tem escolha, não pode fugir.

Todas as criaturas humanas nascem indefesas e incultas, são apenas pura fragilidade quase vegetal. Um longo processo precisa ser vivido para conseguir fazer este fiapo de vida crescer e se integrar na ordem social, virar gente grande.

Neste processo, a representação e a imitação são essenciais para que a criatura consiga se formar. Não existe aprendizagem fora destes dois procedimentos. Vale dizer: não existe humanidade sem o amplo acesso a estes dispositivos. Uma sociedade violenta, subumana e grotesca só pode surgir quando os seus integrantes são privados destes mecanismos elementares de formação, ainda que execráveis déspotas possam tomar o poder cercados de arte. Mas este é um outro departamento: poderá existir força social legítima para derrubar o algoz, se…

O centro da reflexão reside no poder deste “se…”. É a chance de existir na sociedade um espaço de respiração para o requinte do humano, legítima garantia de perpetuação da vida. A arte do teatro acontece neste campo – ela é por excelência a arte da imitação, lida diretamente com a representação, seja qual seja a definição de representação que se pretenda defender. Sim, o teatro é inerente ao ser humano!

Claro, falar em “representação” no teatro é embarcar num vespeiro. Incontáveis vertentes enfrentam o conceito e lhe atribuem sentidos por vezes inconciliáveis. Para alguns atores mais suscetíveis, afirmar que eles ‘representam’ soa quase como uma ofensa, pois associam o ato a uma forma antiquada de ‘posar’  no palco. Para eles, eles ‘apresentam’, assinam uma visão autoral (e atoral) de um fato. Mas, no entanto,  vamos combinar, lá no fundo, eles mostram outra vez algo que participa da vida coletiva… portanto, representam, quer dizer, reapresentam. Não tem como fugir.

Reside neste ponto a grandeza infinita e a miséria abissal do teatro. Para apresentar ou representar, é fundamental trabalhar com algo conhecido, elementos presentes no imaginário e no ideário social. Ninguém faz teatro no vazio, a partir do desconhecido.

Portanto – e neste lugar reside a dificuldade do teatro para ser uma linguagem artística de corte profundo, de experimentação descabelada – o teatro em algum grau “rumina”, “repete” referências do senso comum, elementos da vida que está aí.  São sensações, imagens, pensamentos, conceitos em circulação. Porém, ao lidar com o familiar, o teatro revê o que é próximo, reativa a sua potência de forma inusitada, pois este familiar aparece em demonstração,  ‘desfamiliarizado’, uma sugestão de curto circuito, na medida em que se dá com ‘outro’ imaginário, o sujeito em cena.

O ato, assim, se torna ‘aula de vida’, aprendizagem: do mísero banal se faz o grande conhecimento do humano. De estalo, queiram ou não, o teatro tira a sua máscara de frivolidade para se afirmar como grande mestre das almas. Por isto as pessoas precisam de teatro: ele é um oxigênio existencial, alimento inefável essencial para a grandeza da vida em sociedade.

Lutar a favor do teatro, consequentemente, é obrigação de todos os cidadãos preocupados com a conquista – ou a manutenção – da qualidade da vida social. Não se trata de privilégio, firula ou passatempo, mas da defesa das almas e, na medida em que se vence por este caminho a boçalidade, da defesa das peles.

Muitas vidas poderiam ser preservadas ou elevadas da lama social mais abjeta se a sociedade brasileira trata-se de contar com o teatro na formação cidadã. Isto significa ter teatro como uma forma corrente de expressão nas escolas, nas igrejas e templos, nos clubes e associações, nas empresas, nos bairros. E, sem dúvida, nos teatros. Teatro a todo vapor, por todos os lados.

Fazer teatro não significa tornar-se ator ou artista – pode ser simplesmente um meio de refinamento de si, de lapidação da própria auto expressão e de sua conexão social. Conhecer melhor a sensibilidade de seu tempo é uma forma de viver em sociedade de forma mais plena.

Infelizmente, o caminho não é fácil. Um país avesso ao cultivo destes bens imateriais, como o Brasil, sofre o risco de se tornar um campo pantanoso pródigo em formas humanas grotescas. Fora do teatro, longe do palco, digamos, o que há é a barbárie. Nenhum namoro da vida, apenas desnamoro de si e do outro, transformados em coisas, em existências sangrentas.

Para não chegar a tanto, mudar o rumo, muitas experiências são válidas: não existe uma fórmula mágica única.  O mais importante é se entregar à busca do coletivo, perceber intensamente que cada um existe como parte de uma coletividade, colorida com os tons de um determinado tempo.

Todo estímulo ao acesso à cultura é bem vindo. A plena garantia da liberdade de expressão, desde que honre a integridade do outro, precisa ser regra de ouro. Apoiar a expansão da atividade teatral precisa se tornar um componente óbvio da rotina social.

Importa, por exemplo, ampliar os caminhos de contato entre as práticas jurídicas e judiciais e os palcos. Muitas iniciativas importantes já surgiram aqui no Rio de Janeiro. Se olharmos a História do Teatro, constatamos como a presença de advogados, juízes e assemelhados marcou a vida do teatro brasileiro: autores, atores, produtores, apoiadores, eles estão por toda a parte. No século XIX, duas grandes forças sociais militavam aqui a favor do teatro: o direito e o comércio.

Agora, um caso particularmente interessante está em cartaz no Teatro do Mezanino do SESC Copacabana. É imperdível – concilia esta visão do teatro como força e necessidade social com a carne viva da História do Teatro Brasileiro e a prática forense. Trata-se do espetáculo A Vida Não É Justa, concebido por Eduardo Barata a partir de livro publicado pela juíza Andréa Pachá.

Lea Garcia, Orfeu da Conceição, 1959.

O alentado rol de audiências, unidas sob uma sentença, a constatação de que a vida não é justa, título do livro, funcionou como matéria prima para a elaboração de um texto teatral, assinado por Delson Antunes, um nome experiente no trato com a dramaturgia. Para dirigir o espetáculo, o produtor escolheu um nome surpreendente – o ator Tonico Pereira, um exímio perito em percepção humana, o grande foco do trabalho.

Lea Garcia e Abdias do Nascimento – ensaio de Sortilégio, Teatro Experimental do Negro, 1957.

Quer um conselho amigo? Deixe este carnaval fora de hora de lado e corra para ver, pois a temporada vai só até o dia 24 de abril. Afinal, a ficha técnica não surpreende apenas na escalação dos líderes. Dois monumentos absolutos do teatro nacional estão em cena – Lea Garcia e Emiliano Queiroz. São atores mentores da alma brasileira, quer dizer, quando entram em cena, temos a obrigação incontornável de ir ver, pois eles sabem lidar intensamente com o nosso fluxo existencial mais profundo.

Emiliano Queiroz, Navalha na Carne, com Tônia Carrero e Nelson Xavier, 1969.

Mas tem mais, o elenco tem um número de integrantes generoso para as contas da crise.  Reúne ainda o arrojo profissional de Daniel Dias da Silva, um artista sinônimo de qualidade de desempenho, duas atrizes consagradas, conhecidas por sua entrega total aos papéis – Lorena da Silva e Marta Paret. E tem também dois jovens profissionais já marcados por um compromisso autêntico com a poesia da cena – a jovem Duda Barata e o inquieto Bruno Quixotte.

A partir desta equipe suntuosa, dá para imaginar um pouco o que acontece no palco: o comando artístico de primeira linha dá o corpo e a alma para pontilhar as emoções sutis de um roteiro composto por oito histórias, justamente aquelas pequenas histórias cotidianas capazes de traduzir o fluxo da vida no nosso tempo. Elas estão povoadas por conflitos, amores e desamores,  desencontros, buscas, vitórias e derrotas, enfim, a dificuldade corriqueira de viver, portanto,  humanidade destilada.

Emiliano Queiroz, Ópera do Malandro, 1978.

Então, corra.  Não perca tempo, pois o amor não espera: vá namorar a vida lá em Copacabana, num espetáculo banhado pelo ouro mais radiante do teatro nacional. A cena, além do mergulho em sublimes vivências humanas, lhe permitirá flertar com uma combinação artística notável:  o encontro com dois pilares maiores da nossa sensibilidade, com radiantes forças profissionais atuais e notáveis indicações de um belo futuro.  É para se apaixonar, não?

Por seu amor, o teatro brasileiro agradece. A recompensa? Ah, como num bom namoro, ela será uma intensa revitalização sua. Mas, como a felicidade é um bem coletivo e irradia, ela abençoará a todos ao redor.

FOTOS DE CENA: divulgação.

A Vida Não É Justa

FICHA TÉCNICA:

Texto original: Andréa Pachá

Dramaturgia: Delson Antunes

Direção: Tonico Pereira

Elenco:

Léa Garcia

Emiliano Queiroz

Duda Barata

Lorena da Silva

Marta Paret

Bruno Quixotte

Daniel Dias da Silva

Cenário: Paulo Denizot e Janaina Wendling

Figurinos: Fernanda Fabrizzi

Iluminação: Paulo Denizot

Trilha Sonora: Máximo Cutrin

Visagismo: Fernando Ocazione

Produção e Assessoria de imprensa: Barata Produções

Contato / Assessoria de imprensa: Barata Produções

SERVIÇO:

Local: Teatro Mezanino – Sesc Copacabana

Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana

Temporada: de 31 de março a 24 de abril de 2022

Horários: de quinta a domingo às 20h

Informações: (21) 2547-0156

Bilheteria: Horário de funcionamento: de terça a sexta, das 9h às 20h; e sábados, domingos e

feriados, das 12h às 20h.

Duração: 60 minutos

Classificação: 14 anos

Capacidade: 80 lugares