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O ator e as artes do tempo.

         Ator, quem é você? A pergunta tem uma força telúrica para o teatro. Decididamente, o ator é a razão de ser da cena, a raiz de tudo, o elemento insubstituível da arte teatral. Se a arte do palco for reduzida ao seu denominador mínimo, náo há dúvida, ele será o ator.

No caso brasileiro, a situação surge sob uma luz mais impressionante, o ator sempre governou a cena por aqui. Nunca se pode contar com uma estabilidade de produção estruturada o bastante para o ator curtir os seus louros deitado num canapé. Em consequência, o país conta, nestes dois séculos de história independente, com uma galeria de astros notável por sua variedade de tons, estilos, linhas de trabalho.

Em termos relativos, o ator brasileiro deve ser classificado como talento nato, moldado no calor da cena, portanto, espontâneo e autodidata – as escolas de teatro, fato recente, são responsáveis, até agora, pela formação de uma parcela reduzida de artistas, se forem considerados os nomes registrados ao longo da história. A maioria absoluta dos atores brasileiros, na história da cena nacional, nasceu e se fez na solidão da arte, sem escola. Livres, para o bem e para o mal.

Aliás, quando o assunto é escola de teatro, existem casos curiosos dentre os nomes históricos. O mais escandaloso é o de Procópio Ferreira (1898-1979). Vale lembrar, mesmo de forma rápida, um pouco de sua história. Afinal, no dia 8 de julho de 2023 deveríamos ter comemorado os 125 anos do seu nascimento. Ele bem que merecia. Nada aconteceu – o Brasil, país sério,  não gosta de festas! Festa para um grande cômico popular, então, seria um pecado imperdoável.

Mas vejamos a história. Reza a lenda que ele ingressou às escondidas da família na escola de teatro municipal (atual Martins Pena) e, num lance controvertido, abandonou os estudos sem se formar. Procópio estava muito longe de ter um físico de galã. Para surpresa de todos, estreou com sucesso em 1917, no Teatro Carlos Gomes, e iniciou uma carreira vitoriosa. Em 1919, no papel do Fogueteiro, de A Juriti, de Viriato Corrêa, aconteceu a sua primeira grande aclamação.

A consequência veio mais rápida do que qualquer foguete: a escola chamou o aluno sem título para que ele se submetesse a uma banca e fosse finalmente diplomado. A aprovação se deu com a declamação de um soneto, Cólera Naturium, de Duque Costa, poeta até hoje inédito. Segundo a memória do ator, registrada na Coleção Depoimentos, Coelho Neto, diretor da escola e integrante da banca, ficou maravilhado com o poeta e com o declamador.

Estudar a arte de Procópio permite situar um tipo de ator de uma força expressiva vulcânica. A chave do seu desempenho estava exatamente na arte de dizer, uma das disciplinas básicas do curso de ator, no qual não havia nunca atividades práticas. Ainda segundo o seu depoimento, o estudo do teatro se dava desta forma, ao redor das palavras, em busca do seu domínio – por isto as aulas e as provas de recitação constituíam práticas fundamentais.

Interessante observar – vale olhar na internet registros filmados de Procópio – como estes atores partiam da palavra para contaminar o corpo, botar a alma em movimento e contagiar a plateia. Eram dotados de vozeirões, uma forma de falar capaz de transformar a corporeidade, ainda que ficassem com frequência plantados em cena. Eram corpos falantes que se revelavam corpos falados.

No mesmo momento, ao lado destes atores oradores, existiam atores solares – quer dizer, atores aptos a levar a energia das palavras para os chakras inferiores, a partir do chakra do plexo solar. Dedicavam-se em particular ao teatro musical, sobretudo ao teatro de revista, e ao longo da primeira metade do século XX a sua potência para incendiar o próprio corpo e a percepção das plateias ampliou-se de forma admirável. No caso das atrizes e coristas, a trajetória foi das meias e malhas de corpo ao nudismo.

Logo a pirâmide de emoções interiores dos atores se inverteria – o teatro moderno, intimista, por vezes cerebral, com frequência confessional, trouxe uma outra estrutura expressiva. A partir dos sentimentos – trabalhados de diversas formas – o ator esculpia formas emocionadas de presença no mundo. Era preciso desencadear um redemoinho interior e transmiti-lo para a caixa de cena – ela devia ser menor para o truque funcionar…

Em cada um destes leques – o ator orador, o ator carnal, o ator emoção interior – um número incontável de subgrupos pode ser listado. O motivo é lógico: a expressão acaba por se tornar uma forma pessoal. Evidentemente há um limite neste desdobramento. O fato é que alguns atores, dotados de extrema força expressiva, são líderes naturais de gerações ou escolas: eles criam correntes expressivas ao redor de si..

Existem combinações entre as linhas – qual seria a classificação ideal para Marília Pêra (1943-2015), uma atriz que nasceu numa família de teatro, experimentou o teatro declamado, o teatro musical e se profissionalizou no moderno teatro emoção? Uma atriz tão impactante ao ponto de moldar o universo expressivo de inúmeras jovens atrizes?

Após o vendaval moderno, que se inclinou a desqualificar com fúria tudo o que fora feito antes, é possível dissociar a linha dos atores rapsodos, de apareciemnto recente, portanto declamadores, das velhas práticas do teatro do primeiro ator? Os rapsodos levaram o trabalho poético mais adiante, harmonizaram o corpo com o verbo?

Olhar a cena da atualidade significa localizar inúmeros indícios definidores da arte do ator – talvez por isto a escola tenha se tornado um lugar muito distante da velha casa que não conseguiu conter Procópio Ferreira. E que, por sinal, muito embora tenha diplomado o evadido, por ser tão pequena nos seus cálculos, foi desprezada por muita gente boa.

Hoje – fato inédito na história do teatro – atores consagrados buscam as escolas de teatro para estudar. A busca não se dá apenas por desespero profissional. Sim, alguns grandes atores tentam, hoje, quando o teatro vive um eclipse lamentável sobretudo no Rio de Janeiro, obter um diploma para ter acesso a uma vida profissional que seria menos instável…

Sim, além da crise teatral profunda, muitos artistas de nomeada aparecem mordidos por uma brutal sensação de incompletude da sua arte, diante de um mundo que não se acanha de mudar de forma e de valores numa velocidade alucinada. Como plantar os pés neste tablado movediço e lançar a voz nesta cena social cheia de ruído? Como ter formação em estado permanente? Como ser outro e outro sem parar?…

Existem coletivos que se consagraram por oferecer formação de atores como escola de cena – de certa forma, eles se tornaram a revisão moderna das velhas companhias de atores, a reedição revista e atualizada da commedia dell’arte. A chance é única. O aprendizado se faz de forma mais direta, no calor das luzes.

Um grupo consagrado por manter esta linha – o Grupo Tapa, uma bem aventurada criação carioca transferida para São Paulo – esta oferecendo uma rara oportunidade, no solo brasileiro, para pensar a formação do ator e a materialidade do trabalho do ator hoje.

Eles estrearam no dia 6 de julho uma nova montagem da peça Credores, de Strindberg, O texto está no repertório da companhia há mais de dez anos, já foi encenado com diversas formações de elenco, sempre sob a direção de Eduardo Tolentino de Araújo. Para quem acompanha a equipe, trata-se de uma aventura teatral preciosa: rever o texto com uma nova roupagem humana.

Para quem vai estrear na contemplação do texto, sem ter visto qualquer uma das montagens anteriores, há o privilégio de ver um texto dominado pelo coletivo, mais dominado do que bairro de periferia do Rio nas mãos da marginalidade… O teatro de repertório, raro no palco brasileiro, constitui-se num dos alicerces fundamentais para a existência de um teatro dotado de vitalidade poética.

Do outro lado da Serra do Mar, sob um outro clima, o balneário carioca contribui para a reflexão sobre a história da arte do ator com uma proposta no mínimo curiosa.  Vale ver para dimensionar o resultado alcançado. A novidade é o projeto Agora Vai – segundo a produção o primeiro sit com da cena brasileira.

O espetáculo esteve em cartaz no Teatro Cândido Mendes e reestreia no dia 16 de julho próximo no Teatro das Artes, para apresentações semanais; segundo a equipe, ele nasceu inspirado pelos seriados de televisão Friends e Sai de Baixo.

O projeto, idealizado por Alina Lyra e Hellen Suque sob a direção de Alice Demier, usa uma situação básica, vivida por personagens fixos, para rir de problemas urbanos bem atuais. A ação acontece em Copacabana, no apartamento de um herdeiro falido dotado de forte horror ao trabalho. Para sobreviver sem a renda da família, pois a empresa quebrou, ele aluga quartos para uma fauna representativa do panorama humano atual.

 Além da diversão e do exorcismo de conflitos bem atuais, a cena poderá ser avaliada a partir de sua capacidade para reelaborar antigos códigos da arte do ator, exumados pelo feitio da cena. Apesar da alegada originalidade e da pretensa inspiração na TV, múltiplos temas e formatos históricos estão envolvidos no trabalho.

Logicamente, o desafio maior é para os atores. O primeiro é a arte da composição – estruturar um personagem claro e preciso, desenhado na sua exterioridade e bem definido no seu eu interior. Dimensionar esta obra em relação às palavras propostas a cada episódio será uma diversão interessante.

A seguir, aparece a desenvoltura do ator nas tramas do improviso, condição natural para este tipo de cena. A partir daí surge, em decorrência, a capacidade de lidar com a quebra da quarta parede, a relação com o público.

Alguém já disse que o maior mérito do nosso tempo é a oportunidade da transhistoricidade – quer dizer, a possibilidade de contemplar a história plena, nos seus meneios, diante de nós, aqui e agora. Apesar de nossa eventual cegueira, a História não sai de perto de nós, passeia diante dos nossos olhos e nos desafia a reconhecê-la, para que haja algum crescimento da nossa parte. Se ficamos cegos ou indiferentes, nos tornamos anões do tempo.

Para o ator do presente, esta constatação parece conter um convite compulsivo, a indicação de uma forma de ser obrigatória. O ator precisa ser múltiplo do múltiplo, espécie de monstro de sete cabeças e infinita percepção do ser no mundo.

CREDORES

FICHA TÉCNICA

Texto: August Strindberg.

Direção: Eduardo Tolentino de Araujo.

Elenco: André Garolli, Bruno Barchesi, Felipe Souza e Sandra Corveloni.

Redes Sociais: Felipe Pirillo (inspira teatro).

Fotos: Ronaldo Gutierrez.

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes.

Assistentes de produção: Marcela Arruda, Nando Barbosa. Coordenação de Produção: Nando Medeiros.

Direção de produção: Ariell Cannal.

 SERVIÇO:

Galpão do TAPA
Quinta a sábado às 20h; Domingo às 18h

Rua Lopes Chaves, 86, Barra Funda, São Paulo/SP

Classificação: 14 Anos.
Duração: 90 Minutos

Ingressos: https://bit.ly/credores

SINOPSE

Dois homens e uma mulher se encontram em um balneário para um acerto de contas. Escrita em 1887, Credores de Strindberg projeta uma DR que atravessa dois séculos e, como diz a canção popular, ainda somos os mesmos como nossos pais.

AGORA VAI!

Ficha técnica

Idealização: Alina Lyra e Hellen Suque

Argumento e Redação final: Hellen Suque

Roteiristas: Hellen Suque, Claudio Torres Gonzaga, Mariana Cabral, Gabriela Amaral, Gustavo Klein, Silvia Spolidoro, Nelito Fernandes e Carolina Clark.

Direção: Alice Demier

Elenco: Bia Guedes, Eduardo Melo, Hellen Suque, Hugo Germano e Zé Alessandro.

Assistente de direção: Beatriz Daiha Vidal

Música original: Pedro Nêgo

Figurino: Vanessa Marques

Visagismo: Teddy Zany

Designer: Richard Vieira

Assessoria de imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)

Fotografia: João Salamonde

Direção de palco: João Paulo Damata

Produção: Eduarda Magluta

Direção de produção: Alina Lyra

Realização: Alina Lyra e Hellen Suque

Este projeto homenageia Alexandre Scapini (in memorian)

Serviço:
Temporada:
de 16 de julho a 27 de agosto

Dias e horários: Domingos às 20h. Episódios inéditos a cada domingo

Teatro das Artes: Shopping da Gávea: Rua Marquês de São Vicente, 52 – Gávea, Rio de Janeiro

Telefone: (21) 2540-6004

Ingressos: R$ 70 (inteira) e R$ 35 (meia-entrada)

Duração: 70 min

Classificação indicativa 14 anos

Vendas: Divertix.com ou na bilheteria do teatro

Assessoria de imprensa

Racca Comunicação