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         O quê é que mantém o teatro vivo?

Para você, no fundo da sua alma, teatro quer dizer drama? Ou, melhor dizendo: teatro significa um prazer especial, uma chance emocionante para contemplar gente como você, mas inventada, agindo sobre o palco?

Se a resposta for afirmativa, você compartilha um vício cultural profundo, algo que remonta, com muitas reviravoltas, ao século V a.C. – portanto, você, queira ou não, é um ser ocidental. E, lamento dar-lhe a notícia assim de chofre, como se dizia antigamente: você é um ser em plena decadência. Por favor, modernize-se…

Pois, no entanto, para desventura dos amantes do velho e bom drama, em tempos recentes, para a sua surpresa, andaram sacudindo as tábuas dos tablados. De repente, valores consolidados da arte dramática passaram a ser postos abaixo. De uma penada, ou melhor, de uma teclada, liquidaram com personagens, ação dramática, trama, conflito, peripécia, desenlace… Muita gente devota da cena concordou com hereges fanáticos que surgiam dos alçapões preocupados em gritar: o teatro morreu, morte ao teatro! Obviamente os dois grupos, antagônicos como se estivessem num teatro de drama, gritaram juntos por razões diversas, uns, entregues ao mais puro ufanismo, os outros mergulhados em desmedido terror.

A voga tornou possível desfilar no palco toda e qualquer forma de texto. Dizem as más línguas que se trata do retorno das velhas declamadoras, agora muito loucas, ensandecidas. Afinal, até bula de remédio e lista telefônica passaram à categoria de textos aptos para se poder cogitar para ocupar um lugar em cena!

Exageros de lado, teóricos densos estudaram as transformações do drama e trouxeram em diversas obras análises perspicazes dos fatos. Patrice Pavis, Sarrazac e Lehmann, para ficar nos nomes mais lidos, figuram na crista da onda de análise da nova cena. A leitura de seus textos ilumina a transformação da cena, mesmo sem conseguir cicatrizar os corações despedaçados. Teatro que segue.

A crise do drama se instalou de braços dados com a crise do personagem e o próprio lugar teatral passou por uma explosão. O acontecimento teatral – é preciso enorme cuidado para usar a linda palavra espetáculo – passou a se abrigar em recantos nunca dantes cogitados pelos atores profissionais.

O teatro do nosso tempo – sem que se fale do teatro do futuro – apresenta uma identidade repaginada, para não fugir da imagem maior do terremoto, a transformação radical do texto, se compararmos com o teatro de ainda agora. Parece, no fundo, uma profunda ironia: os atores se consagraram e se dedicaram a fazer o que queriam com os textos; autores e diretores se uniram e deram um chega prálá nos atores; autores se tornaram grandes musas; diretores e atores se uniram e zupt, derrubaram os autores… ou obrigaram os autores a assinar ponto nas salas de ensaio.

A peça deixou de ser um texto dotado de características convencionais, fugiu da prisão do gênero fixo – o gênero dramático. Tornou-se um coquetel genérico: pode ser lírico, épico, narrativo, poético, documental, quem sabe até algo dramático, ou tudo junto e misturado.

Hoje, um romance pode sair das páginas impressas diretamente para a cena. Para alguns estudiosos, peça de teatro é tudo o que alguém diz sobre um palco: o lugar de enunciação define a qualidade primeira do texto. De quebra, perceba-se, a noção de ator também está entre parênteses. Em várias peças da moda, qualquer um pode ser ator.

A reviravolta veio do palco euro-americano, claro, especialmente do teatro europeu. Não alongaremos o estudo do processo aqui – os historiadores do teatro situam o seu início no final do século XIX e apontam em Beckett o lugar de eclosão maior da ruptura no nosso tempo, ecoando de lá até hoje, numa cascata ou corredeira fervilhante de transformações. Em Beckett ainda existe o fantasma do drama, banido depois pelos tais hereges.

Foto Mario Castello, acervo CCSP.

Curiosamente, o Brasil tratou de embarcar na viagem de mala e cuia. A guinada se torna surpreendente por peculiaridades locais muito gritantes. Para se ter uma ideia clara do caso, vale ler um livrinho precioso que acaba de ser lançado, O Teatro de Meu Tempo, de Alfredo Mesquita, obra obrigatória na estante de toda e qualquer criatura interessada em teatro brasileiro.

O volume organizado por Nanci Fernandes, Maria Tereza Vargas e João Roberto Faria, edição da Perspectiva, reúne textos publicados em diversos veículos, entre 1950 e 1968. A leitura é, de saída, uma delícia, graças à elegância, ao humor e à imensa cultura do grande mestre do teatro paulista brasileiro.

A sua visão do nascimento do teatro moderno no país é de extrema sagacidade. A visão ácida dos “antigos”, particularmente a visão da arte e do perfil humano de Leopoldo Froes, acrescenta uma perspectiva impressionante a respeito do mecanismo de implantação do palco moderno.

O quadro histórico de “modernização” da cena surge das páginas com tons fortes. A importância de Jouvet, ainda não tão nítida nos estudos históricos, a disposição feroz dos modernos para instaurar uma linguagem inteiramente nova e alguns espinhos na relação Rio- São Paulo estão registrados.

A consciência a respeito da “falta” de diretores nacionais – e isto em 1950! – ao lado da certeza de que novos autores precisavam surgir se tornam constatações chocantes quando se percebe que este “moderno” se instalou aqui ao mesmo tempo, praticamente, que Brecht e Beckett. As exigências de Alfredo Mesquita a respeito da hipótese de um futuro promissor para Nelson Rodrigues como autor constituem leitura fundamental. Elas esclarecem como o dramaturgo se tornou maldito. As restrições à arte de Ziembinski, se comparado aos diretores italianos, possuem uma importância histórica ímpar.

E logo, neste pano de fundo tão ralo, aparece Beckett… Isto significa algo importante para pensar: a proposta de quebra do moderno começou a surgir, aqui, ainda no interior do nascimento do moderno. O teatro mal amadurecera os atores, em formação, sequer contava com diretores dotados de poéticas consolidadas e já começava a passear pelas ideias de demolir tudo…

Qual o maior risco desta aventura radical tão veloz? Talvez a perda de plateia. As condições de trato da linguagem seguem numa velocidade rápida demais e o público, ou uma parte razoável do público, fica para trás.

Talvez seja importante, para os que decididamente gostam de ter plateia, enveredar por formas de conciliação inventiva, formas poéticas que não suponham uma plateia mínima, de eleitos iluminados esclarecidos. Afinal, estes já têm o reino dos céus, valeria mais a pena cuidar das almas perdidas, ainda virgens ou quase de vivências teatrais.

Alguns espetáculos conseguem trilhar este caminho. Conciliam formas narrativas e dramáticas num grau por vezes até mesmo bastante ousado. É o caso de Kafka e a Boneca Viajante, cartaz do Teatro II do CCBB, lindíssimo trabalho de pura invenção poética, mistura inteligente de drama, narração e inserções musicais. É totalmente imperdível, com desempenhos apaixonados e apaixonantes.

O texto, originalmente um pequeno romance escrito por Jordi Serra i Fabra, conta com dramaturgia de rara inteligência assinada por Rafael Primot. A direção de João Fonseca entendeu a ousadia do projeto, pois, no fim das contas, trata-se de um episódio histórico que, ao que tudo indica, não aconteceu.

Kafka, no fim da vida, doente, não teria encontrado uma menina inconsolável por causa do sumiço de sua boneca e não teria imaginado uma forma de dissolver a dor da garota através da redação de cartas engenhosas da boneca viajante para a menina. A pura invenção foi ampliada por Primot, fez com que não só tramasse o encontro, quer dizer, estruturasse o episódio como ação dramática, mas apostasse também num passeio pela vida e pela obra do escritor.

Para ser fiel ao espírito da coisa, o diretor armou uma deliciosa brincadeira cênica, uma mistura pós-moderna de drama, narração, performance e musical. Alguns toques de preciosismo contribuem para potencializar o arrebatamento do público: a direção musical de Tony Lucchesi, a direção de movimento de Marcia Rubin capaz de tornar Alessandra Maestrini uma boneca irresistível, o cenário de Nello Marrese e a luz de Paulo Cesar Medeiros.

O elenco reunido coroa o projeto, faz a noite no teatro virar prazer absoluto – a equipe tem aquele fogo interior que fez com que a arte sobrevivesse através dos séculos. Dotados de potência dramática, fluidez corporal, magnetismo interior, espírito crítico e vozes apoteóticas, Alessandra Maestrini, André Dias, Lilian Valeska e Carol Garcia transformam Kafka em aula de humanidade. Uma cena arrebatadora.

Talvez esta cena, de uma beleza tão cristalina como os olhos das bonecas, possa atestar um jeitinho brasileiro de abraçar o contemporâneo sem abandonar as exigências do moderno que ainda não se conseguiu sedimentar plenamente aqui. O debate está aberto: há um conceito novo de drama por lá. Ele nasce de letras dedicadas a Kafka com um gosto brasileiro irresistível. Não dá para perder… se não prestigiamos, o teatro morre. Pode ser varrido por estranhos azares do tempo.

PARA LER SOBRE TEATROEDITORA PERSPECTIVA

 KAFKA E A BONECA VIAJANTE

Adaptação do romance de Jordi Serra i Fabra

FICHA TÉCNICA:

Alessandra Maestrini – Brígida, a boneca

Carol Garcia – Rita, a menina

André Dias – Sr. K (Kafka), soldadinho de chumbo

Lilian Valeska – Dora, Gaivota

Dramaturgia – Rafael Primot

Direção – João Fonseca

Direção musical – Tony Lucchesi

Direção de movimento – Marcia Rubin

Programação visual – Carlos Nunes

Cenário – Nello Marrese

Iluminação – Paulo Cesar Medeiros

Figurino – João Pimenta

Visagismo – Everton Soares

Fotos – Ale Catan

Idealização – Felipe Heráclito Lima

Produção Executiva – Luiza Toré

Direção de produção – Amanda Menezes

Coordenação de Produção – Maria Angela Menezes

Administração – Sevenx Produções Artísticas

SERVIÇO:

Estreia: 22 de junho de 2023

Temporada: até 30 de julho

Horário: de quinta a sábado, às 19h30, domingo às 18h

Local:  Teatro II – Centro Cultural Banco do Brasil

Capacidade: 155 lugares

Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro / RJ

Informações: 21 3808-2020 | ccbbrio@bb.com.br

Classificação indicativa: livre

Duração: 90 min

Ingressos: R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)

Clientes Banco do Brasil pagam meia-entrada com Ourocard

À venda na bilheteria física ou no site bb.com.br/cultura

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Assessoria de Imprensa: Leila Grimming