A alma do Brasil e o ouro de Minas
A alma brasileira tem dono – sabia? Pois é, não pense que o país vive despojado, com o pé nas estradas, ventania em qualquer direção, sem dono ou lei. Desde o nascimento, a alma brasileira obedece a um só governo: a música.
Dá para provar a afirmação sem medo de erro. Se você quiser conferir, nada pode ser mais fácil. Basta ir até um teatro brasileiro qualquer, uma cena que abrigue um musical. Lá dentro, no meio do povo, mais do que em qualquer show de música, você chegará à mesma exata conclusão: a alma brasileira é cegamente governada pela música.
E se você, desvairado filhote do mesmo país no meio do povaréu, conseguir permanecer frio e racional, faça o teste. Observe ao redor a vibração dos corpos, a elevação das temperaturas, a onda inexplicável de alegria que vai domando a plateia. Como a coisa contagia, provavelmente o teste vai durar pouco tempo, você sucumbirá sob a mesma febre. E, apesar de derrotado no seu desejo de ser fiscal, sairá recompensado, após viver um diálogo pleno entre almas enfeitiçadas. Afinal, você esteve sob o seu governo ideal.
Veja bem, a situação no teatro musical soa mais forte do que nos shows por uma razão simples – no teatro musical, vemos cenas da vida movidas por canções. A presença da música no miolo dos dias deixa a alma nacional em levitação paradisíaca. O impulso tem raízes profundas, estruturais, consolidadas. Ao que se sabe, aconteceu uma mistura histórica inusitada de fluxos anímicos musicais: Portugal, África, Itália, alguns judeus e quem sabe uns outros imigrantes líricos perdidos… Deu no que deu.
Detalhe importante: não há o que se possa fazer contra isso. Desde o século XIX, intelectuais de nariz empinado tentaram em vão desqualificar esta sólida inclinação nacional. Discursaram até contra o violão, como prova claramente o ilustre Policarpo Quaresma. Sem sucesso. A coisa ficou tão grave, mas tão grave, que chegamos agora a uma situação alarmante – talvez uma excelente peça dramática, entregue a um elenco divino, não consiga atrair uma enxurrada de espectadores por um bom tempo para um teatro de mil ou dois mil lugares… No entanto, um bom musical, arrebenta as previsões, provoca filas na porta, se torna a alegria de cambistas, baleiros e pipoqueiros. A casa ferve.
Historicamente, o eixo teatral do país, a dobradinha Rio/São Paulo, capitais nas quais existe um mercado estruturado e estável, se afirmou como o lugar de criação dos musicais. Consolidou-se aí um fluxo permanente de produção, não acompanhado pelo resto do território. As duas cidades funcionam também, ainda agora, como caixas de ressonância ou projeção para o resto do país. Nas demais regiões, não existe uma dinâmica de mercado capaz de sustentar uma produção teatral contínua; a classe teatral depende do trabalho em outras áreas para sobreviver.
Na música, no entanto, o quadro é diferente: fora do “eixo”, existe chance de sobreviver da arte. Com certeza tal condição se constitui como novidade, surgiu recentemente. Porém se tornou fato. Um dos quadros importantes que registram a mudança é o da música sertaneja: ela não depende do “eixo” para acontecer e sobreviver, ao contrário, até.
A partir do reconhecimento de tal processo histórico, se torna muito fascinante analisar alguns movimentos recentes da MPB. Num outro momento, seria oportuno também alinhavar as relações de cada movimento com o teatro.
Música urbana, de conexão com o mundo e presa à busca intensa de sintonia com os sabores do tempo, a música popular figura como uma das necessidades fundamentais do cidadão na modernidade. Ela está por toda a parte e em todas as pessoas, pontilha o cotidiano, tem a regência das vidas, para o bem e para o mal. Faz tempo que ninguém consegue mais viver sem música.
Os exemplos recentes mais importantes figuram na vida de uma multidão, surgiram como revoluções geracionais. A Jovem Guarda abriu um espaço impactante de expressão existencial para os jovens: cabelos grandes, minissaia, gírias pontuando a fala, intensa expressão dos corpos na dança…
O cenário ao redor não podia ser mais hostil; nele, os jovens deviam ser miniaturas dos adultos – miniaturas caladas, a bem dizer. No entanto, apesar da notável revolução de costumes provocada pela Jovem Guarda, para os engajados, jovens e velhos, comunistas ou tradicionalistas, a turma do iê-iê-iê era alienada e fazia uma inaudível música barulhenta.
Logo despontou um movimento também cabeludo, também desnudo, mas ainda mais estridente. A Tropicália em boa parte veio da Bahia, muito embora tivesse uma sintonia fina com Hélio Oiticica.
De fato e de direito, a Tropicália nasceu baiana e os baianos explodiram na cena brasileira, assumindo temas nacionais rascantes e atitudes contrárias ao bom mocismo – barroquismo e cafonália, fluidez e liberdade sexual, lirismo desenfreado.
A rigor, contudo, foi preciso um outro movimento para que se atingisse uma expansão lírica inacreditável, a reinvenção do eu interior, a incorporação da própria música como liberdade de criar e a descoberta da latinoamericanidad. Só podia vir de um lugar, claro: o mundo de Minas Gerais. Era o Clube da Esquina, êxtase de uma geração diante da liberdade de invenção que a música podia trazer.
Para quem era universitário naquele tempo, subjugado aos terrores humanos inerentes a uma ditadura militar, o clube da esquina, assim mesmo, com a intimidade da letra minúscula, trouxe um bálsamo para a capacidade de criação. Acontecesse o que acontecesse, percebíamos ali, filhos daquele tempo trevoso, que dentro de nós éramos livres.
Havia também um aceno, muito embora ainda tímido, contra o elitismo estrutural, ainda hoje tão intenso na sociedade brasileira, em particular no Rio, cidade dominada por elites surreais, que acreditam que não existe vida inteligente fora do litoral da Zona Sul. Minas trazia a ideia de grande família, da incorporação afetiva e efetiva de quem chega, movimento que nascia de um disco.
Foram muitas as surpresas – o Long-play Clube da Esquina, de 1972, era um álbum duplo, prática pouco frequente na MPB. Continha um banho interminável de canções. Recebeu a assinatura de dois nomes. Milton Nascimento, cantor que arrebatou o país no Festival Internacional da Canção Popular de 1967, com a sua belíssima voz deslumbrando a todos em Travessia. E Lô Borges – um desconhecido total, logo aclamado por uma plateia ávida por uma poesia libertária.
Para ir direto ao ponto, o clube da esquina significou exatamente isto – um lugar de respiração para os jovens, submetidos a diversas camadas de opressão. Havia, de saída o etarismo reverso do atual, inclinado a qualificar a juventude como ignorante; havia a polícia moral e comportamental dos velhos, ciosa das tradições; havia a polícia existencial dos engajados, comunistas e esquerdistas, preocupada em definir o verdadeiro revolucionário… Isto sem falar nos poderes oficiais propriamente ditos. O oxigênio para o indivíduo era raro.
A liberdade oferecida à exaustão no disco tinha uma identidade clara: abarcava desde a mistura de sons, as invenções de harmonia, os flertes com múltiplos estilos musicais, os efeitos dissonantes, a liberdade das imagens poéticas, a ousadia dos arranjos, as impactantes construções vocais, a salada de instrumentos, as evocações do iê-iê-iê, até a desconcertante ideia de obra coletiva assinada por nomes de alta qualidade musical.
Pois então, finalmente aconteceu. Como era de se esperar, o clube da esquina escapou do espaço plano do velho LP e se projetou no palco, está em cena em Clube da Esquina – Os sonhos não envelhecem. E quer saber o que mais importa neste caso? Corra para ver. Não perca de jeito nenhum. A montagem deverá alcançar o mesmo sucesso apaixonante registrado pelo disco, pois contém uma obra musical de voltagem rara na música popular, aquela música que inocula a mais fina sensação de liberdade no coração de cada um. No Brasil, a oportunidade de se sentir profundamente livre dentro de si é sempre imperdível.
O disco foi feito com um surpreendente conjunto de músicas-ícones decisivas para provocar este resultado – pense, por exemplo, em Cais, Tudo que Você Podia Ser, Nada Será Como Antes, O Trem Azul, Um Girassol da Cor de seu Cabelo, Um Gosto de Sol, San Vicente, Cravo e Canela. Agora, liberte a sua mente e imagine estas canções, entre outras, em cena, como se fossem parte do fluxo da vida? Dá para perder a chance de viver este sonho cênico?
Bom, importa seguir o trem, adiante. Algumas constatações são imediatas diante deste novo cartaz, programado para temporada rápida no Teatro Riachuelo, definitivamente o templo dourado carioca dos grandes musicais.
A primeira constatação integra o título do espetáculo – os sonhos não envelhecem. Nem morrem, vale sublinhar. O clube da esquina persiste, vivo, intenso, tão juvenil como no seu aparecimento. A garantia de que tal condição estrutura a cena do novo musical existe porque a dramaturgia do espetáculo, de Fernanda Brandalise, nasceu do livro memorialista Os Sonhos não envelhecem – histórias do Clube da Esquina, de Márcio Borges.
Uma outra constatação nasce da leitura da ficha técnica – a qualidade dos atores disponíveis para a cena musical brasileira viabiliza construções cênicas de extrema densidade. A montagem escalou para o papel título Tiago Barbosa, um jovem ator dotado de requintada habilidade para a composição sofisticada de personagens, a julgar pelas fotos e vídeos divulgados. A ficha técnica extensa reúne nomes já experientes nos musicais, como os excelentes Marya Bravo e Léo Bahia, ao lado de nomes jovens, escolha essencial para o tema em pauta.
Em resumo, a proposta acrescenta mais um capítulo emocionante à velha dinâmica do teatro brasileiro, marcada por uma pergunta rascante, ‘ter ou não ter alma? – eis a questão’. Embora muita gente insista em negar valor ao musical, teime em rotular a cena movida por canções como forma escapista de abordagem do que é humano, o esforço dos detratores cai no vazio.
No fundo, no fundo, o teatro sempre foi musical – dos gregos até os primeiros tempos modernos – mas o assunto brota deslocado aqui, até por ser muito extenso. Por ora, vale lembrar apenas, diante dos teimosos, que a alma brasileira definitivamente é musical. E que o casamento que assistimos agora entre teatro e MPB tem raízes bem antigas. Incontornáveis.
Não vale a pena continuar distante de coisas que ficaram muito tempo por dizer. Por isto, a conexão entre MPB e teatro assinala, hoje, uma condição nova para a cena. Simplesmente trata-se de uma chance única, rara, para o teatro voltar com força a se instalar no coração popular. Portanto, não perca o trem azul da história. Na estação final, você vai verificar que sim, o coração é quem move o mundo e o sol só vai iluminar a sua cabeça se você honrar a sua alma musical.
FOTOS: Júlio Mello – Divulgação.
FICHA TÉCNICA
Direção: Dennis Carvalho
Texto original: Márcio Borges
Teatro Adaptado: Fernanda Brandalise
Direção musical: Alexandre Kassin
Iluminação: Maneco Quinderé
Direção de movimento: Toni Rodrigues e Juliana Gama
Figurino: Marília Carneiro
Visagismo: Dicko Lorenzo
Cenografia: Keller Veiga
Designer e videografismo: Olivia Ferreira e Pedro Garavaglia
Redes sociais:
www.sonhosnaoenvelhecem.com.br
@musicalsonhosnaoenvelhecem @cdemusical @sonhosnaoenvelhecem
Elenco: Alan Ribeiro, Ana Elisa Schumacher, Cadu Libonati, Celso Luz, Daniel Haidar, Elá Marinho, Eline Porto, Gab Lara, Guilherme Ferraz, Léo Bahia, Marya Bravo, Oscar Fabião, Rafael de Castro, Rômulo Weber, Tiago Barbosa, Tom Karabachian e Vitor Novello.
Assessoria de Imprensa Nacional: Barata Comunicação e Dobbs Scarpa
SERVIÇO
CLUBE DA ESQUINA – OS SONHOS NÃO ENVELHECEM
Duração: 120 minutos, com 15 minutos de intervalo.
Classificação Indicativa: 12 anos.
TEATRO RIACHUELO:
Endereço: Rua do Passeio 38/40, Centro – Rio de Janeiro – RJ Lotação: 999 lugares
Temporada: 9 de setembro a 23 de outubro de 2022 (quinta a domingo)
Dias e Horários: quinta e sexta às 20h; duas sessões sábado, às 16h e às 20h30; domingo às 19h
Ingressos: Plateia VIP: R$ 240,00 Plateia Especial: R$ 220,00 Plateia: R$ 75,00 Balcão Nobre: R$ 75,00 Balcão: R$ 75,00
Vendas dos ingressos: Bilheteria do Teatro Riachuelo e no site www.sympla.com.br