A paixão e o colar de pérolas
Para Artur Xexéo
Chegou a hora de desinventar o teatro. Sim, desinventar. O verbo tem filiação com o suassunês – aquele idioma falado nas terras de Suassuna. E tudo isto quer dizer apenas uma coisa: paixão.
Sim, paixão. Uma vibração pura e fidalga. Esqueça a definição banal, reacionária, que circula pelas esquinas vadias e tentou desqualificar a paixão, reduzir o nobre ímpeto da alma a coisa menor, chama de fósforo.
Paixão é coisa séria. Paixão é entrega, elevação, pairar fora de si. Em uma palavra simples, sentimento. Para muitos filósofos, falar em paixão significa situar alguma energia básica da vida, quer dizer, mover-se.
Assim, todo e qualquer sentimento é paixão. Alguns a definem como movimentos (da alma, claro) suscitados pelas sensações, quer dizer, portanto, impulsos ditados pelo simples ato de estar no mundo.
Então, são muitas as paixões, e uma única razão, logo se vê. Descartes considerou como seis as paixões fundamentais ou primitivas: a admiração, o amor, o ódio, o desejo, a alegria e a tristeza…
Consequentemente, desinventar o teatro é procurar olhar para o seu oco, o seu miolo, aquilo que nele é mais típico, peculiar – logo, só pode ser a paixão. Mas, fiat lux, se trata da paixão em estado de comunicação. Para ser teatro, a paixão tem que ser revelada a alguém.
Então, teatro é isto: duas almas e uma paixão. Esqueça as velhas tábuas, aquela velha metáfora tosca do palco, pois madeira é alimento de cupim. Já era, a tal história carcomida de duas tábuas e uma paixão. O teatro de nosso tempo, verdadeiramente atual, acontece no ar: é pura exposição de alma. É on-line.
A verdade nua e crua, rodrigueana mesmo, é esta – o teatron veio para ficar. A conclusão despontou forte e inteligente num debate do sábado passado, uma conversa após a apresentação de Amanda, espetáculo solo da excepcional atriz, diretora, mulher de teatro Rita Clemente.
Ela está completando 30 anos de teatro. Portanto, foi uma festa teatral. O bate papo teve como convidada a atriz Mariana Muniz.
Na pandemia, Rita Clemente revisitou o texto (a versão original é de 2015). Infelizmente a temporada foi curta e não está previsto o retorno ao cartaz. O lamento nasce porque esta nova montagem permite reflexões contundentes – e lúcidas – sobre a condição atual do teatro.
Apesar da força exuberante do espetáculo, o mote da conversa acabou sendo o estado da arte hoje. A primeira constatação simpática – e importante – foi o argumento de que teatro é sempre teatro, quer dizer, ele é uma forma de fazer arte e de estar presente que ultrapassa o quadro material em que ele se dá. O teatro contamina a estrutura em que acontece.
A rigor, isto significa afirmar uma condição indigesta para muita gente boa: teatro on line é teatro, queiram ou não. E vai ficar, pois o teatron acontece naturalmente, como uma forma de atualização técnica de um fazer antigo, mais aproximada com o nosso tempo, o aqui e o agora. Estamos conectados, estamos on line, mudamos de estado civilizatório e, portanto, como sempre, o teatro irá conosco.
Afinal, todas as grandes invenções percorreram a cena e fizeram com que ela se deslocasse para uma outra aparência de ser – dos descampados urbanos toscos para os tablados ao ar livre, dos altares para os pátios das igrejas, da luz do dia para as velas, o gás e a luz elétrica… houve um longo e agitado caminho. O teatro incorporou o cinema, o radio, a TV, o mundo digital e virtual. Ele integra o ser e por isto não morre.
O fim da pandemia não conseguirá levar o teatro de volta para o passado. Limites foram vencidos, barreiras foram quebradas. A conquista mais notável diz respeito a este encontro de almas, este despojamento curioso, no qual, sob uma aparente superfície simples, no ar, um oceano tecnológico viabiliza a materialização, em estado puro, da paixão.
Contraditoriamente, Amanda e todo o debate se tornou possível graças à existência de Clementtina – um espaço concreto, objetivo, de cal e pedra. Um pequeno teatro íntimo, em Belo Horizonte, para experimentar e criar, cuja plateia bem diminuta, graças à internet, pode ser multiplicada ao infinito. Podemos, aqui do Rio, visitá-lo sem sair da poltrona.
Na conversa, Rita Clemente e Mariana Muniz afirmaram a importância absoluta de contar com um espaço-sede. E da necessidade da união da classe a favor do teatro – seja qual seja o teatro, comercial, experimental, musical, antigo, moderno… A união desponta como necessidade urgente, para a formulação e a proposição de políticas públicas prioritárias, tais como a criação de espaços-sede teatrais, a formação de público, a sedimentação de uma cultura teatral social.
Em certa medida, seria expandir o perfil formulado pelo SESC, digamos, a única instituição brasileira que conseguiu formular e manter por longo tempo uma política cultural relevante e de imensa repercussão. O modelo não é complicado e o efeito possível é revolucionário: a transformação decisiva da sensibilidade da sociedade brasileira.
Um exemplo impactante do acerto da política do SESC vai entrar em cartaz on line no dia 2 de julho, a peça Mãe de Santo, com dramaturgia de Renata Mizrahi a partir de textos e relatos de Helena Theodoro. Em cena, a intensidade comovedora da atriz Vilma Melo, sob direção geral de Luiz Antônio Pilar.
A proposta tem um viés curioso – oferece para a reflexão e para as sensibilidades as vivências de mulheres fortes, líderes religiosas e sociais, as mães de santo. Assunto muito sério, afinal, a sociedade brasileira é em boa parte um milagre feminino.
Pois esta incursão por um saber-sabor tão antigo, tão nosso, chão da sociedade brasileira, foi criada como teatro online, encontro do passado profundo com o futuro inquietante. O cruzamento de referências é com certeza inspirador. E poderá ser visto no canal do Sesc Rio, para aumentar a força do futuro entre nós.
Integra o projeto o oferecimento de uma oficina online, gratuita, ministrada pela atriz Vilma Melo – Ponto de vista: A criação da encenação individual. O tema é absolutamente urgente.
Vivemos uma época de solos e o teatro na internet acontece a partir de solos, mesmo quando o elenco é grande, pois cada um se apresenta no seu casulo. As novas peças exigem uma revisão da forma de atuar e em muitos casos fazem dos atores contrarregras e engenheiros, para que a cena aconteça.
Na oficina, a atividade será prática e teórica, com o estudo de cenas teatrais em monólogos, com protagonismo feminino. Estará sob o foco o debate destes temas e procedimentos técnicos, inclusive a construção do texto da montagem. Vale considerar, a partir das duas peças comentadas, alguns pontos particulares.
Há uma extensa possibilidade de debate diante de Amanda e de Mãe de Santo. Nos dois casos, temos mulheres do nosso tempo apresentadas por atrizes notáveis, impactantes, nomes que importam para a reflexão sobre o ser social feminino. De certa forma, Amanda é a mulher vencida, Mãe de Santo é a mulher que vence, ainda que o preço seja alto para as duas.
As duas atrizes, mulheres muito fortes, tratam de revelar para a alma que contempla a cena as cores de uma paixão intensa, o ser-mulher. É um desvelamento intenso e sutil, aniquilação e luta. As atrizes atuam sós, entregues aos seus destinos.
No monólogo, a forma da fala precisa ser clara, acontece entre narratividade ou apresentação, quer dizer, fala para um outro, ou solilóquio, quer dizer, diálogo consigo. Há um trabalho direto com as formas possíveis do épico e do lírico, com indagações formais lançadas para a expressão da alma e do corpo.
Apesar do receptor objetivo das palavras, é preciso definir o destino do fluxo da fala/energia: o fluxo define bastante a intensidade da arte. A atriz pode falar para si, para a câmera, para o vazio, para o espaço, para o espectador ou para o mundo. Ainda não vi o trabalho de Vilma Melo.
Rita Clemente fala para o mundo – mesmo que simule variar o ponto de atenção, para a sala, os objetos, um interlocutor imaginário, o cinegrafista… Ao comentar, com Mariana Muniz, a importância da técnica preciosa de mostrar o colar de pérolas, Rita Clemente revelou a sua grandeza de atriz, fenomenal. Ela é bem aquilo que se convencionou chamar de monstro de teatro, capaz de adquirir em cena uma estatura super-humana.
Mostrar o colar de pérolas. Sim, trata-se de uma técnica reveladora. Decisiva. A primeira vez que ouvi falar dela foi nas aulas de Angel Vianna. Ao mostrar o colar de pérolas, a atriz exibe o colo, disponibiliza o coração. E assim, a partir de um gesto de aparência simples, uma combustão intensa acontece: surge diante do olhar um ser que se constrói e se doa como alma impregnada de paixão para a contemplação do outro.
Em termos diretos, graças à delicada projeção do corpo, a atriz simula a proximidade do eu, como se estivesse presente em pura realidade. E, no lugar do eu, lança um fluxo arrebatador de sentimentos. Ela se projeta, atrai o outro, para jogá-lo no abismo sem fundo do livre sentir.
Então, desinventa o teatro por duas vezes – primeiro, ao simular oferecer o próprio coração, segundo, por estar na incalculável distância da rede. E aí desfalecem os descrentes, sem remédio, estamos no puro reino da paixão: o teatro acontece. No desinvento, ele é inventado outra vez.
AMANDA
FICHA TECNICA
Clementtina Cultura (YOUTUBE)
Direção, Concepção e Atuação: Rita Clemente
Texto: Jô Bilac
Codireção (2015): Diogo Liberano
Trilha Sonora Original: Márcio Monteiro
Direção de Fotografia: Kleber Bassa e Régelles Queiroz
Iluminação: Régelles Queiroz
Câmera: Kleber Bassa e Iallysom Marciel
Transmissão: @casadobassa
Programação Visual, Foto e Assistência de Produção: Priscila Natany
Coordenação Geral e Direção de Produção: Analu Diniz
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
SERVIÇO
Não há previsão de retorno ao cartaz.
MAE DE SANTO
FICHA TÉCNICA
Argumento/texto Helena Theodoro
Direção Luiz Antônio Pilar
Com Vilma Melo
texto Renata Mizrahi
Direção de Arte Clivia Cohen
Assistente de direção Ruth Alves
Direção de Fotografia Daniel Leite
Trilha Sonora Wladimir Pinheiro
Sonoplastia Vilson Almeida
Iluminação Anderson Rato
Programação Visual Patrícia Clarkson
Designer, comunicação e Mídias Sociais Rafael Prevot
Assistente de Mídias Sociais Ana Nerys
Assessoria de Imprensa Alessandra Costa
Direção de produção Bruno Mariozz
Produção Palavra Z Produções Culturais
SERVIÇO:
Temporada: de 02 a 25 de julho de 2021
Horário: 21h
Exibição online: www.youtube.com/portalsescrio
Duração: 40 min
Ingresso: acesso gratuito
Classificação indicativa: 12 anos
SERVIÇO OFICINA:
Carga horária: 10 encontros – 3 horas cada – 30 h
De 13 de julho a 3 de agosto – terça, quarta e quinta – de 9h às 12h
Classificação etária: a partir de 18 anos.
PARA LER SOBRE ATOR RAPSODO E NARRATIVIDADE:
Veja o artigo do Prof. Dr. Luis Artur Nunes, in
Livro de textos do I Colóquio Teatro e Sociedade: Novas Perspectivas da História Social do Teatro.